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19.2.13

Despedir dá febre


Ao encontrar com ela depois de tanto tempo eu não sabia o que dizer. Ela não tinha mudado muito. Não tinha mudado nada, eu podia dizer. Tinha mudado bem pouco, essa era a verdade. Apareceu pra mim com uns cabelos bem curtos, umas roupas um pouco diferentes, mas sorria do mesmo jeito. Aquele mesmo jeito de sorrir colocando a língua por de trás dos dentes e franzindo o nariz de um jeito que eu acho que só ela consegue. Provavelmente não também, né? Várias outras mulheres no mundo devem saber franzir o nariz do jeito que ela faz, e talvez até sorriam colocando a língua por trás dos dentes, mas acho que isso de gostar muito de alguém, ou pelo menos lembrar muito de alguém faz com que a gente ache que essa pessoa é única. Pra mim, naquele momento, ela era a única pessoa no mundo capaz de rir franzindo o nariz e colocando a língua por trás do dente. Nenhuma outra mulher no mundo, nem as mais lindas teriam essa habilidade. As mulheres da red light street em amsterdã poderiam saber todos os segredos do sexo, todas as posições proibidas, segredos milenares escondidos para dar prazer a um homem, mas isso não me importava, eu não trocaria ela por nenhuma delas. Por nenhuma puta, nenhuma artista de tevê, por nenhuma menina bonita que conheci andando na rua. Não trocaria ela por ninguém porque só ela me importava. Ela, aquele cabelo curto preto jogado de lado, os óculos de armação surrada, a mania de quase-nunca usar vestidos, o jeito de sorrir franzindo o nariz e colocando a língua por trás dos dentes.

Fazia anos que eu não a via. Havíamos nos encontrado numa dessas festas de faculdade sem muita importância. Ela fazia ciências sociais, eu fazia jornalismo, ela passou a festa inteira segurando um livro de capa vermelha que depois acabei descobrindo que era "grande sertão: veredas". Ela gostava de guimarães rosa e eu também, eu gostava de cerveja e ela também, ela gostava de dançar e eu não muito. Ela parece não ter me ouvido quando eu disse que não, não ia dançar coisa nenhuma e acabou me puxando pelo braço, me levando pro meio da festa e dançando "here comes your man" do pixies, que na época fazia algum grande sucesso nessas festas universitárias. Era 1996, logo depois disso começou a tocar skank, ela disse que não gostava, eu gostava mas não quis dizer que sim e ela acabou me levando lá pra fora pra gente conversar. Foi a primeira vez que ela me sorriu franzindo o nariz e colocando a língua por trás dos dentes, mas na hora eu acho que não percebi nada disso. Ela me ofereceu um cigarro, eu disse que não fumava, ela perguntou se eu me importava que ela fumasse, eu disse que não e aí ela começou a contar da vida dela. Contou tudo, contou do curso, dos seus dezoito anos recém feitos, contou que gostava muito de música, de literatura, do David Bowie, do Radiohead, que ouvia Smiths antes de deitar, que detestava o Skank, e que simpatizava com essa nova onda de axe que ia tomando conta do Brasil. Aí ela ria, dizia que todo mundo tem que descer na boquinha da garrafa um dia se quiser ser feliz mesmo de verdade. "Se quiser ser feliz mesmo de verdade a gente não pode se levar a sério", ela concluiu. Lembro disso até hoje, foi nessa hora que eu acho que comecei a gostar dela, gostar assim de querer levar pra casa e dizer qual era meu filme preferido e mostrar meu filme preferido pra ver se de repente ela gostava. Ela falava tudo, sobre todas as coisas e eu ficava meio quieto balançando a cabeça. Depois ela me confessou, numa outra conversa, que não gosta de silêncios e tentava ocupar os espaços do meu silêncio falando e falando e falando. Até que teve uma hora que ela parou, olhou pra mim e disse "E você? me conta de você". Não soube responder. Dei uma gaguejada e disse "Eu?…Eu não sei, eu gosto do Skank". Daí ela riu e ficou me olhando. Daí eu dei um beijo nela porque eu já não sabia mais o que fazer, e ela parece ter gostado do beijo e até um pouco de mim porque me deu o telefone dela e disse que eu podia ligar quando quisesse, pra assim, quem sabe, tomar um café.

Liguei, tomamos aquele café, vários outros cafés em vários outros dias, nos encontrávamos nos intervalos das aulas, nas tardes que faziam sol e nas que choviam também e ela me contava dela com um fervor admirável, e me contava dos livros que lia, dos filmes que viu, me detalhava o nome dos diretores e vez ou outra aparecia com VHS que tinha alugado na locadora mas gostado tanto que queria que eu visse também. Depois ela pegou intimidade e levava logo a fita pra gente ver o filme juntos. Quando eu percebi eu também já contava as minhas coisas, as minhas angústias, todas essas coisas sobre o mundo que a gente tem ânsia de compartilhar com alguém que gosta de estar junto. Às vezes eu deitava no colo dela e sentia medo de tudo que eu dizia. Medo porque ela podia não gostar e eu tinha tanto medo que ela não gostasse de mim e parasse de aparecer com aqueles filmes, com um CD novo, que parece de ligar o rádio e cantarolar axé enquanto a gente ficava deitado na cama. Eu tinha medo que ela fosse embora então às vezes não falava nada, só escutava ela falar sobre todas aquelas coisas, e aquelas imensidões, e esperava ela trazer seus livros grifados com as suas partes preferidas pra me dizer "olha, olha isso que lindo!" e aí eu concordava que era lindo mesmo e ela me olhava meio de canto de olho como quem desconfia e aí dizia rindo "você gosta de tudo que eu gosto, assim não vale!". Daí pulava em cima de mim e me beijava feito louca e foi num desses dias que eu pensei que até podia viver sem ela se eu precisasse o problema é que eu não queria mais viver sem ela, daquele jeito dela de falar feito louca, de dançar no meio do quarto de rir franzindo o nariz e colocando a língua por trás do dente. Só que eu não sabia até que ponto podia ir, não sabia se a gente podia se mandar bilhete de amor, se eu podia dizer no meio do café que senti saudades de dormir com ela quando ela não dormia lá em casa, não sabia quando seria permitido chamar de "amor" (se é que um dia seria permitido), não sabia direito onde colocar a mão quando a gente andava na rua, não sabia se podia dizer que gostava dela assim, desse jeito de querer acordar de manhã e ver ela dormindo encolhida na minha cama de solteiro segurando a pontinha da coberta. É que o começo do amor é isso, é esse bebê que não sabe se equilibrar e a gente vai andando meio torto, sempre com medo de cair e o meu medo era dar um passo em falso e perder ela, por isso eu nem falava muito de sentimento nem nada, só ficava ali abraçado com ela enquanto ela trazia os filmes, os livros, as músicas; enquanto ela fazia as comidas, os bolos, as tortas e enquanto ela tentava tímida descobrir coisas sobre mim que eu nem sempre contava, mas às vezes tinha urgência de contar também e aí enchia os ouvidos dela de bobagens. Tinha ficado aquilo: a urgência de compartilhar tudo de importante com ela, sempre com medo dela me achar bobo, um pouco burro, desajeitado, incapaz. Às vezes tinha com ela longas conversas sobre o que eu queria ser, sobre as coisas que eu gostava, e às vezes até coisas mais sérias como as minhas inseguranças, como o fato do meu pai ter me abandonado quando criança e aí ela se compadecia toda e me colocava no colo daí acabava dizendo de novo que se a gente quisesse mesmo ser feliz não podia levar a vida tão a sério e no fim me beijava o nariz, ou subia em cima de mim e fazia alguma gracinha infantil pra tirar o clima estranho que fica toda vez que alguém que nunca desabafa acaba dizendo algo delicado.

Teve um dia que ela foi em casa e aí contou do curso, dos novos sociólogos, e tudo com muita empolgação e aí eu só olhava pra ela rindo que nem bobo até que percebi que era isso, eu gostava mesmo dela, não tinha mais jeito e aí danei a ficar pensativo, olhar pra frente, não falar mais nada porque se eu falasse qualquer outra coisa ia acabar me revelando. Aí ela percebeu e acabou perguntando "o que foi, tá tão quieto" aí eu ia dizer que não era nada, bobagem, coisa da sua cabeça, fiquei estudando até tarde, qualquer bobagem assim, mas acabou que falei "muita coisa importante falta nome". Aí ela sorriu, reconheceu a citação e falou "acho que não precisa inventar neologismo pro amor não, já inventaram a palavra". Aí eu sorri de volta até que ela perguntou de vez "Você acha que a gente ia dar certo namorando?" Aí eu respondi que sim, ela concordou que sim e resolvemos dar nome àquilo que na verdade já acontecia há muito tempo. Namoramos os quatro anos da faculdade e eu me lembro de poucos períodos na vida em que tenha sido mais feliz. Ela melhorava meus dias, dava vida a qualquer coisa dentro de mim que eu nem sabia o que era e nossa estante de livros, vhs e cds foi ficando cada vez maior. A gente dividia um quarto e sala modesto perto da universidade, e a casa tinha o jeito dela mas tinha o meu também. Daí eu me formei, ela se formou também, a gente mudou pra um apartamento um pouco maior no centro, ela se encarregava de uns afazeres, eu fazia o resto, a gente transava em todos os lugares da casa e eu achei que a gente ia durar pra sempre. Até que um dia me chega ela com uma carta, diz que recebeu uma proposta de trabalho na alemanha, que era pra fazer um curso e trabalhar lá "um ano, talvez mais, daí depende"  e antes que eu pudesse dizer que eu ia com ela até pra sibéria se fosse necessário ela disse "mas vou sozinha, acho que não tá dando mais. Preciso disso, assim, longe de você. não sei o que é, é muita coisa importante falta nome". Me lembro de quase querer jogar ela da sacada quando ela me veio com essa de usar pra terminar o relacionamento a frase que eu sei pra dizer que amava ela. Tentei insistir, ela dizia que não, que não dava que olha o que a gente estava fazendo com a nossa vida, nem vinte e e dois anos e já com planos de casar e isso e aquilo e ela dizendo que ela nunca conheceu outra vida que não eu, que precisava disso, que precisava ir embora pra ver se ela voltava pra mim um dia que era assim que ia ser e pronto. Fez as malas e em uma semana estava na Alemanha. Não me deixou ir no aeroporto, só deixou o grande sertão comigo com a frase "a gente só sabe bem aquilo que não entende. Te amo" escrita como dedicatória. Deixou também uma carta que ela tinha uma mania de carta e na verdade ela nunca voltou da Alemanha. Fiquei sabendo dela, quase casou por lá, depois descasou, depois voltou pra cá e namorou uns outros caras mas nunca quis saber de me procurar. Até que um dia toca o telefone e é ela. Sete anos depois. Sete anos inteiros depois ela resolve me procurar e bagunçar tudo aquilo que eu tinha conseguido ser sem ela. Logo que ela foi embora foi o inferno. Não conseguia sair de casa, me afundei, achei que nunca mais ia conseguir escrever uma matéria de jornal e o que dirá amar de novo. Amar igual amei ela não amei mesmo, mas encontrei umas garotas legais, pensei em casar, depois despensei e meu emprego ia muito bem, eu já era um jornalista de renome. Estava tudo certo na minha vida até que eu ouço a voz dela naquele maldito telefonema e ela marca comigo num café e eu não consigo dizer não porque naquelas alturas nem mágoa mais eu tinha. 

Ela continuava quase do mesmo jeito, exceto por um certo cansaço. Perguntei da Alemanha, ela disse que foi tudo bem por lá, que ela precisava daquilo, que se a gente tivesse continuado do jeito que estava a gente teria tido uma separação traumática e nos odiaríamos pra sempre. "Traumática foi", pensei. "talvez não pra você, mas traumática foi bastante". Não disse nada. Deixei ela contar e ela me disse que tinha virado pesquisadora, tinha alguns livros publicados, e acabou fazendo doutorado por lá. Estava bem estabelecida, decidida e bastante jovem pra uma mulher de quase trinta anos. Não tinha mudado nada da menina de dezoito por quem me apaixonei, a não ser pelos cabelos curtos e porque agora se arrumava mais (embora tenha confessado que ainda não gosta muito de vestidos). Aí contei de mim, do meu trabalho, que estava bem, que tinha dado certo na carreira de jornalista que me trazia tantas dúvidas na época em que namorávamos e ela me ouvia compenetrada, embora continuasse com aquela mesma mania de contar tudo que podia sobre ela como se o mundo fosse acabar no próximo minuto. No começo foi tudo esquisito, a gente não sabia muito bem sobre o que podia falar e sobre o que não podia. Ela falava bem mais que eu e eu me sentia de novo naquela festa em que nos conhecemos. Eu era de novo aquele cara do lado de fora ouvindo ela contar sobre todas as coisas que achava, e nem percebia, mas achava tudo encantador. De repente ela me tira da bolsa um DVD e diz "Manhattan ainda é seu filme preferido? O Woody allen tava fazendo uma noite de autógrafos em nova york quando eu passei por lá, era de um livro na verdade, mas daí lembrei de você, que era seu filme preferido e resolvi te trazer". Aí eu não sabia mais o que fazer, ficava pensando se ela vez ou outra lembrava de mim enquanto andava pelas ruas da Alemanha fria. Se já tinha pensado em me ligar. Se ficava na sacada relembrando das coisas que eu tinha lhe dito. Se alguma vez releu grande sertão e chorou. Não quis perguntar nada, não era hora. Só agradeci muito o presente e disse: "Acho que ainda gosto muito, mas não tive mais coragem de ver". "Também não tive", ela respondeu. E me contou que na verdade tinha o DVD fazia pelo menos uns três anos e tinha tido bastante vontade de me dar, só que aí não sabia como, não sabia como me ligava, se podia ligar, se eu um dia ia querer falar com ela de novo. "Daí guardei, só te liguei agora porque achei que não tinha nada a perder" "E da fato não tinha", respondi. Aí continuamos a conversar, mas de certa forma eu tinha medo de dizer qualquer coisa, errar o tom, fazer ela ir embora me achando um completo idiota. Também não tinha sentido nos reencontrar e dizermos que nossa, na verdade sempre nos amamos e devíamos começar a história de novo agora. Tantos anos, tanto tempo, tanta gente na nossa vida. Não é simples assim. Daí enquanto ela comia um pedaço de bolo me disse "Sabe, eu te deixei aquele livro com aquela frase na dedicatória. Sempre gostei muito disso, dessa sensação da gente só saber bem aquilo que não entende. Eu fui embora quando eu não sabia mais o que eu sentia por você. Não entendia, não dava, não dava liga. Acho que não entendo bem até hoje, mas sei. Sei, sempre soube que um dia ia ser isso, a gente ia se encontrar de novo e não ia ter estranheza nem mágoa, eu sempre soube que você não ia pisotear em cima do DVD do woody allen nem nada porque eu acho que eu sei muito sobre você, eu sei muito sobre a gente, eu sei muito sobre isso que a gente não entende e eu sei que você sabe também". Naquela hora me senti exatamente do mesmo jeito que me senti quando ela me perguntou "E você, fala de você". Daí respondi meio idiota "Eu sei, eu sempre soube sobre a gente". Ela me sorriu. Ela continua tomando café forte e sem açúcar, gosta dos mesmos escritores, descobriu uns outros, amadureceu, diz que não tem mais vontade sair correndo toda vez que sente que está indo rumo a algo mais sério (seja no amor, seja na profissão), ela ainda é de esquerda só que nem tanto e continua me dando olhar desconfiado quando eu digo que concordo com ela. Ela continua. Essa era a verdade toda, ela continua. 

E aí eu queria dizer pra ela sobre todas as coisas, sobre a infinidade do universo, sobre todos os textos que eu tenho escrito, sobre esses prêmios que me deram. Queria contar pra ela de todos os livros que li e pensei nela achando que ela ia gostar. Queria dizer sobre os CDs que guardei numa caixinha pensando que seria legal ouvirmos enquanto conversávamos e tomávamos cerveja. Ela gosta de cerveja e eu também. E era tanta coisa que eu queria falar pra aquela mulher que no fundo era a mesma, porque eu também era o mesmo e eu queria levar ela pra ver meus filmes preferidos pra ver se ela também gosta dos meus filmes preferidos e eu queria contar de todos os mistérios do mundo, dos escândalos, das verdades, das mentiras, das músicas bonitas que fizeram e não ouvimos juntos, das coisas que tenho feito, de tudo que mudei e ela ainda não sabe, de tudo que permaneço e ela já sentiu. Era tanta coisa que eu queria dizer e tanto medo de que ela não gostasse de nada disso que eu tenho pra falar, que eu quero falar em madrugadas eternas que passaríamos acordados. É tanta coisa que que quero dividir, eu quero mostrar meus textos e todas as pessoas que eu conheci e eu quero ensinar pra ela tudo que ela ainda não sabe sobre mim e quero que aprendamos juntos tudo que a gente ainda não sabe sobre nós e sobre o mundo, e sobre fotografia, cinema, física quântica, gastronomia, jogar tranca, buraco, regras de tênis, qualquer coisa. Eu queria falar, eu queria pegar ela pela mão e não parar de falar nunca mais só que eu tinha tanto medo que acendi um cigarro, perguntei se ela queria, ela disse que não fumava mais, perguntei se ela se importava com o cigarro e ela disse que não, e aí  fiquei ouvindo ela contar aquelas banalidades que ela gostava tanto. Ela me disse que eu continuava muito quieto. Eu retruquei "E a senhora sabe o que é o silêncio? O silêncio é a gente mesmo demais". Ela sorriu. Lembrei do livro dela e capa vermelha dentro da minha pasta e devolvi. Ela me sorriu franzindo o nariz e colocando a língua atrás dos dentes. Eu novamente não sabia o que dizer pra aquela menina que segurava um livro de capa vermelha e me perguntava "E você? Me fala de você!".  "Eu?… Acho que eu não gosto mais de Skank".  Ao encontrar com ela depois de tanto tempo eu continuava sem saber direito o que dizer., só que dessa vez não lhe dei um beijo. Vai que apresso demais as coisas, vai que a gente se atropela e se perde. O diabo é isso de se sentir menino de novo já sendo meio velho. O diabo é ela, outra vez. Ela diz que se a gente quisesse mesmo ser feliz a gente não podia levar nada tão a sério. Aí sorrimos. Recomeça. 

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