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20.3.12

as garras da felina me marcaram o coração.

mas as besteiras de menina que ela disse, não.



Uma tigresa de unhas
Negras e íris cor de mel.
Uma mulher, uma beleza
Que me aconteceu.
Esfregando a pele de ouro marrom
Do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel.

Enquanto os pelos dessa
Deusa tremem ao vento ateu,
Ela me conta, sem certeza,
Tudo o que viveu:
Que gostava de política em mil
Novecentos e sessenta e seis
E hoje dança no Frenetic Dancin? Days.

Ela me conta que era atriz
E trabalhou no Hair.
Com alguns homens foi feliz,
Com outros foi mulher.
Que tem muito ódio no coração,
Que tem dado muito amor,
Espalhado muito prazer e muita dor.

Mas ela ao mesmo tempo diz
Que tudo vai mudar,
Porque ela vai ser o que quis
Inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz,
Vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão.

As garras da felina
Me marcaram o coração,
Mas as besteiras de menina
Que ela disse, não.
E eu corri pra o violão num lamento
E a manhã nasceu azul.
Como é bom poder tocar um instrumento.

Difícil é ter 23 anos e se identificar com cada vírgula dessa música há pelo menos três. Não queria me sentir essa "mulher fatal" no fundo cansada e amarga, que tem esperanças em vão. Triste. Porra, Caetano.

(Isso não é uma indireta em hipótese alguma. É só uma constatação pessoal da madrugada. Catárse musical. Identificação anterior.).

se chega é pra dizer: vou embora.

Me olho no espelho repetidas vezes. Esse rosto com esse cabelo não é meu. Identidade é um conceito flutuante, não é? Nunca soube quem eu sou. Nem loira, nem morena, nem ruiva. Hoje só estou cansada. De existir. Ouvi uma música hoje, depois de dois anos dela dedicada pra mim e só agora fui entender o que ela significava. Hoje, quando a gente não se ama mais. Se é que eu te amei um dia. "Guess how much I love you? Much more than that". De fato, ele me amava mais. Bem mais do que eu imaginava. Mas eu quis duvidar. Eu o amei bem pouco. Uns quatro ou cinco meses. Apaixonadamente. Depois virou amor. Depois amorzinho. Depois descobri o amor da minha vida ali do lado, e hoje nem amor da vida eu tenho mais. Não fazemos mais sentido. Tanto não fazemos sentido que ontem vi o amor da vida numa foto com a garota dele e quis desejar felicidades. Ele era um cara legal, ela faz ele feliz, ele merece. Só que ele ia me achar louca. Desejei baixinho: que sejam felizes. Não tem mais rancor. É a vida. "Não era pra ser". Queria meus livros de volta. Os meus malditos livros com as anotações, porque sou egocêntrica. E o pequeno príncipe da minha mãe com as minhas anotações infantis, mas foda-se. Sei lá onde ele enfiou essas coisas. Vai ver escondeu. Penso em comprar esses livros de novo. Pela primeira vez deixo de acreditar na estante compartilhada dos livros que o destino iria juntar. Procurar novos exemplares dos livros que ficaram com ele é a maior prova de que ele não existe mais em mim. Nem ele, e nem o sonho de uma estante compartilhada. Nada existe.

Nada existe e é mais difícil viver assim. Estou completamente sozinha. O fantasma do amor da vida não me assombra mais. Não comparo com os referenciais de outrora. Se alguém me deixar, o destino não vai me juntar de novo com o "amor da minha vida", porque já não existe ninguém ocupando esse posto mais. O amor da minha vida não era o amor da minha vida. É o amor da vida dela. Dá pra ver. Eles saem bem nas fotos e tem gostos parecidos. Nem tão parecidos assim. Mas não é disso que são feitos os amores. Os amores são feitos de atrações inevitáveis, e eu devia ter desconfiado que o amor tinha acontecido de verdade pra ele desde o dia que ele me deixou chorando na cadeira e foi embora com ela. Se ele me amasse, teria me buscado na cadeira. O amor da vida volta e busca a gente na cadeira chorando. Mas ele pegou ela pela mão e foi viver a vida dele. Hoje estão felizes. Difícil é ver que eu demorei quase dois anos processando o luto. Tudo bem que ele está mais magro, e mais feio, mas isso também pode ser porque eu não enxergo mais ele com os olhos do encantamento. Acabou-se. O amor da minha vida não era esse, esse é o amor da vida dela. E o amor da minha vida, quem será?

Me faço essa pergunta e acho uma bobagem. Às vezes queria voltar a ter 21 anos e estar naquela cadeira chorando por ter perdido meu grande amor. Tudo parecia mais puro quando eu tinha algo em que acreditar. Isso soa clichê. E babaca. Mas é pra ser assim mesmo. Hoje perdi a vontade. Sei que perdi a vontade quando repito baixinho pra mim mesma "o amor da vida não existe". Às vezes até caio na máxima aquariana de dizer que "todo mundo que passa pela nossa vida é um pouco o amor da vida da gente", mas fiquei velha pra isso. Velha pra isso e pra aquele ideal louco de liberdade que me encantava há alguns anos (ou meses) atrás. Preciso um pouco de coisas concretas. Coisas palpáveis. Coisas ditas de verdade. Canso de tentar entender o que me dizem no meio das entrelinhas. Não tem mais beleza nisso. Disse pro tal amor da vida uma vez, que ele não sabia brincar de amor e que eu estava muito velha pra ensinar, e que portanto deveriamos botar as coisas às claras logo de uma vez. Ou nos perderíamos. Não botamos as coisas às claras, mas acho que nos perderíamos de qualquer jeito. Hoje me sinto mais velha ainda. E mais cansada. Acho que qualquer pessoa vai se perder de mim de qualquer jeito. Até o amor da minha vida, se ele existir. Ele vai me ver sentada na cadeira chorando e eu vou sair correndo. Não acredito mais em nada. Nem em mim eu acredito. Sinto uma coisa e depois não sei exatamente o que foi isso, daí desacredito. Lido com tudo como se fosse acabar no momento seguinte, porque eu acho que vai. Não acredito que ninguém seja capaz de me amar e acho que tudo está fadado a estar perdido desde o princípio. Tenho medo. Desde aquele dia, naquela cadeira, tenho muito medo da vida. Fui abandonada chorando da única vez que resolvi admitir que amava de verdade. Não sei se aguentaria se acontecesse de novo. Sempre acho que o passo posterior a admitir que eu amo alguém verdadeiramente é ser abandonada numa cadeira. Chorando. Enquanto o ser em questão sai de mãos dadas com o verdadeiro amor da vida dele. Não tenho mais coragem.

Quando eu achava que ele vinha me buscar na cadeira era mais fácil. Desilusões atrás de desilusões porque eu tinha que continuar naquela cadeira esperando o dia em que o amor da minha vida viesse me buscar. E agora que eu sei que não é ele, como se procede? Não tem cadeira nenhuma pra continuar esperando. Não existe ninguém. Ninguém. Eu estou sozinha no mundo sem ter ao menos o fantasma da idealização pra me apegar. Tenho muito medo. Fico esperando certezas e sei que elas não virão. E mesmo que vierem, será que um dia eu vou conseguir dizer tudo isso de novo? Dizer tudo isso sem o medo de no momento seguinte a pessoa digna do amor sair por aí de mãos dadas com aquele que era o par dela? Estou velha demais pra acreditar em destino, designios, "se tiver que ser será". Até me forço, mas canso. Estou cansada, tenho medo. De repente você se ferrou tanto, sofreu tanto, passou tantas noites em claro que fica repensando se vale o sofrimento. Acho que não sei me jogar de cabeça. Também não sei ponderar, entrar em jogos de ego, ir passo a passo. Me desgasto. Me desgastei. Quero ficar naquela cadeira pra sempre chorando até que alguém venha me buscar. Alguém que prometa não machucar esse coração esquisito, cheio de feridas. Não sou a pessoa leve que eu era. A vida me botou muito peso nos ombros. Não tenho mais tolerância à frustrações. Não sei botar a cara pra bater. Não quero amar mais ninguém que não me ame de volta. Não quero mais aquela cadeira em que eu fui abandonada, chorando de moletom roxo. Mesmo que eu não use mais moletom. Mesmo que hoje eu saiba maquiar as feridas com corretivo e batom vermelho. Mesmo que meus all stars furados tenham sido trocados por sapatos de mulher. O coração cresceu dois anos e explodiu. Se aquece com moletons, usa all-stars furados e borra o lápis preto enquanto chora. Bate desajeitado, medroso, se encolhe na cadeira e não se atreve. Eu não me atrevo. Volto a ter vinte um anos, os mesmos cabelos descoloridos, o mesmo medo, fico encolhidinha no cantinho e choro baixinho pra ninguém perceber. Enxugo as lágrimas na manga do meu moletom manchado de comida. Não sei me portar perante a sociedade, erro as vírgulas e não quero mais sofrer por amor. Não tenho mais estrutura. Quebrei o espelho, torci o joelho, não vou mais jogar. 

I'm pretty fucked up.

19.3.12

e pela lei natural dos encontros.


Todo mundo é mais solitário em uma multidão. O não-pertencimento a um lugar cria na pessoa a verdadeira sensação de ser um universo sem par. O estar sozinho pode ser feito da escolha. O universo das paredes beges e descascadas do meu quarto não me amedrontam, o que me amedronta é a vida. A obrigação, a companhia silenciosa que não preenche o vazio de existir. O mundo às vezes é cruel, coloca a gente de frente com o terrível pavor que nasce em cada ser humano de ter que levar a trajetória de sua vida sem ter alguém pra segurar a mão. Parece um estado inadequado, uma causa-mortis do existir. Uma vida existe e, existindo a vida ela deve ser compartilhada. Compartilhada, gritada, postada, assim como vídeos de internet que a gente sente a vontade de espalhar em todos os cantos, porque assim sente necessário. 

Todo o medo provêm do pavor do vazio. Terrível mesmo é ter o peso de levar toda uma existência nas costas, sem ter com quem dividir. Às vezes o mundo dói e é preciso que alguém empreste suas sacolas pra levar pedaços de nossos mundos nela. Nossas sacolas rasgam, estragam, se perdem pelo caminho. É preciso ajuda pra completar a trajetória do existir. O que acontece às vezes é que todos os carregadores de sacola parecem inadequados e não há com quem dividir o mundo. Várias pessoas carregando sacolas e a gente as considerando indignas dos nossos pedaços de mundo. Podiam quebrar se pegassem na mão, não iam saber cuidar direito, ou simplesmente não iam entender o porquê de terem que ajudar no caminho. A solidão não é um fantasma. Se vive com ela, dá-se a ela o que comer e ela te invade e passa ser confortável. Às vezes a nossa existência precisa pertencer apenas a gente. Às vezes é preciso de tempo pra encontrar alguém que mereça carregar nossos pedaços de mundo. 

Dei um tempo, botei meu mundo na minha sacola.


(nem lembrava que tinha escrito isso e li com os olhos de quem lê texto alheio, mas coube tão bem).  

16.3.12

Continuo odiando tati bernardi,

(mas tem dia que até o que a gente odeia fala pela gente).


O amor chega em uma hora.

Daqui a uma hora ele chega. Não deu tempo de consertar o esfolado da minha unha e de esfoliar decentemente os pêlos encravados. Esfolado, esfoliado. Tudo parece música e rima mas é só porque você chega em uma hora. Tem um carro que passa lá longe, enquanto eu tento abrir os olhos e encarar esse dia em que você chega. Esse carro não sabe, mas foram mil anos abrindo os olhos e ouvindo carros e ouvindo ruas e não ouvindo a sua voz. E agora a sua voz existe e você chega em uma hora. Não estou pronta. Minha barriga dói. Eu tenho vontade de vomitar. Eu não consigo comer de tanto medo que eu estou sentindo. Eu quase desmaiei agora de manhã, porque pra piorar está calor. Não lido bem com calor. Não lido bem com nada que não seja eu em minha bolha arejada de imaginações. Mentira, não lido bem com minha bolha arejada de imaginações também. Não lido bem com nada. Não deu tempo de virar mulher. A hora que ele aparecer no desembarque do aeroporto, com sua cara de homem, com sua voz de homem, eu vou ter vontade de pedir que ele volte de onde veio e espere mais cem anos. Porque não deu tempo de eu virar mulher. Eu vou ter vontade de pedir que ele me carregue no colo até a casa da minha mãe e me entregue pra ela. Eu queria tomar sopa na casa da minha mãe. Eu lembrei agora que minha mãe me dava Sustagem quando eu ficava assim, tão assustadoramente encantada pelo mistério das coisas. E ela temia que eu desintegrasse. E agora? Como faz quando se é adulta? Qual é a sustagem de agora para que eu não desintegre? Como é que se ama com um corpo de trinta e três anos se por dentro eu tenho cinco anos e estou tremendo, apavorada, pressentindo o estrago que as coisas de verdade podem causar. Por que eu chamo de estrago quando sei que, na verdade, estrago é o que as coisas que não são de verdade causam. Eu tenho tamanho pra suportar o tamanho das coisas de verdade?

O amor chega em uma hora e eu ainda não consegui comer, escolher a roupa, arrumar minha franja, decidir se já posso amar. O amor chega em uma hora e vai quebrar meu gesso mas eu não decidi se os ossos já estão bons o suficiente. Mas ele vai chegar com trinta martelos e eu vou estar esperando, forte e decidida, pra receber a porrada. E o ar que vai entrar. E mais dor. E o ar que vai entrar. E quem sabe então alguma felicidade, já que fui corajosa. Quem sabe a felicidade seja a harmonia entre a dor e o ar que entram pelos poros que temos coragem de abrir? E quem sabe só o amor seja o martelo possível?
Escrevo isso e choro. Porque quero tanto e não quero tanto. Porque se acabar morro. Porque se não acabar morro. Porque sempre levo um susto quando te vejo e me pergunto como é que fiquei todos esses anos sem te ver. Porque você me entedia e dai eu desvio o rosto um segundo e já não aguento de saudade. E descubro que não é tédio mas sim cansaço porque amar é uma maratona no sol e sem água. E ainda assim, é a única sombra e água fresca que existe. Mas e se no primeiro passo eu me quebrar inteira? E se eu forçar e acabar pra sempre sem conseguir andar de novo? Eu tenho medo que você seja um caminhão de luz que me esmague e me cegue na frente de todo mundo. Eu tenho medo de ser um saquinho frágil de bolinhas de gude e de você me abrir. E minhas bolhinhas correrem cada uma para um canto do mundo. E entrarem pelas valetas do universo. E eu nunca mais conseguir me juntar do jeito que sou agora. Eu tenho medo de você abrir o espartilho superficial que aperto todos os dias para me manter ereta, firme e irônica. Minha angústia particular que me faz parecer segura. Eu tenho medo de você melhorar minha vida de um jeito que eu nunca mais possa me ajeitar, confortável, em minhas reclamações. Eu tenho medo da minha cabeça rolar, dos meus braços se desprenderem, do meu estômago sair pelos olhos. Eu tenho medo de deixar de ser filha, de deixar de ser amiga, de deixar de ser menina, de deixar de ser estranha, de deixar de ser sozinha, de deixar de ser triste, de deixar de ser cínica. Eu tenho muito medo de deixar de ser.

Agora é menos de uma hora. Você vai chegar e automaticamente minha agenda de milhares de regras e horários e controles vai desaparecer. E eu vou ficar apavorada porque só o que eu tenho é o contorno mentiroso que eu dou para os meus dias. E você, porque me abraça e me dá outro desenho, é o vilão da minha vida programada. Você é o tufão de oxigênio que invade meu nariz mas, porque estou com tanto medo, mais parece falta de ar. Agora é menos de menos de uma hora. Preciso terminar esse texto. Mas eu tenho medo, sobretudo, de terminar esse texto. Sobre o que eu vou escrever se você for melhor do que esperar por você.

Tati Bernardi, in: http://www.tatibernardi.com.br/blog/post.jsp?idPost=104  dizendo aquilo que eu devia escrever, mas acho cafona demais. 

14.3.12

Londrina, não existe amor em.

Ia escrever um texto, mas a palavra me tirará o tempo da corrida.
São necessários os cafés da manhã sem pão, sem carboidrato.
Por dois dias.
Londrina tem menos amor do que São Paulo.
Aqui as pessoas te atropelam nas ruas e ficam em suas casas.
Aqui as pessoas namoram e esquecem que existem outras vidas.
Aqui as pessoas precisam de carros.
E gritam seu nome na rua.

O universo egoísta dos exercícios no zerão.
Os guardas municipais.
A elite decadente.
O calor insuportável de uma cidade que quer crescer e não cresce.
O amor cego de todos aqueles que aqui vivem e não conhecem outra coisa.
Qualquer amor é verdadeiro quando não existe outro referencial.

Não existem mais quiosques no calçadão.
Os velhos não tem mais onde sentar.
A melhor coxinha da cidade não é tão boa assim.
Vocês não sacrificariam meia hora de ônibus pra me ver,
Enquanto na cidade em que todos se odeiam,
Eles passam horas no metrô para me encontrar por meia hora.
Por duas horas.
Eles trabalham amanhã e vocês não sabem andar de ônibus
Não sabem pegar sol.
Não se sacrificam.

Depois me encontram e me dizem
"tudo ficará mais difícil se você continuar insistindo em não amar isso aqui"
É que amor não se obriga,
acontece.
E eu não amo mais Londrina,
nem as ruas que não são mais as ruas da minha infância
nem as desculpas débeis
nem as saudades fingidas.
Não amo mais vocês.

E se corro oito quilômetros
e se me entupo de clara de ovo e colesterol
e se pinto meu cabelo de loiro
é porque quero fugir de mim, e disso tudo
No dia da poesia escrevo os piores versos que os poetas já tiveram notícia
Perco a hora
Maldigo a pátria mãe e quero ir embora.

Sei que todas as pessoas com alma já foram embora daqui.
(ou irão).

8.3.12

Não existe amor em SP.

A vista do meu quarto dá para prédios cinzas. Tudo que vejo da minha janela é uma sucessão de concretos. Os quartos de hotéis são muito impessoais, e de repente me sinto sozinha. São Paulo é essa cidade em que a gente se sente sozinho no meio de uma multidão. A multidão que te atropela com seus celulares e suas mochilas, pelo lado esquerdo das escadas. Mantenho sempre a direita, não tenho pressa nesse lugar que (ainda) não é a minha casa. Talvez seja isso. Talvez São Paulo nunca seja a minha casa. Talvez a casa da gente seja lugar nenhum. Não sinto saudades de casa, ou de alguém, mas me sinto triste. Tomaria três banhos se possível pra me limpar de tudo que eu não quero mais. Banhos que esfolariam a minha pele e me deixariam em carne viva para que nascesse de novo. Uma nova pele pra um corpo muito cansado. A segunda visita não tem a mesma poesia da primeira vez, não tem cadência nem samba, só tem isso. Isso que a gente acostumou, que é assim, esse descaso, essa normalidade. Me acostumei com São Paulo, com as estações do metrô, não sinto mais medo de me perder por entre as linhas porque sempre há um jeito de voltar. Sei os sentidos da Av. Paulista, procuro lugares pra comer no foursquare onde gente também sozinha deixou dicas. Seguro a minha bolsa com o medo de uma londrinense, e não sei atravessar direito as ruas. Tenho medo dos ônibus, dos cobradores que adormecem, dos lugares afastados. Tenho um pouco de medo da vida, enfim. A vida que aqui é mais rápida e mais cruel. A vida que aqui tem um sorriso cafajeste, que e acarinha antes de te foder com vontade. Não sei se dá pra ser feliz entre os metrôs lotados, a impessoalidade dos enormes prédios, os cafés onde nunca há lugar pra sentar, as livrarias onde há barulho demais e gente falando em inglês. Minha solidão se sente invadida na cidade que nunca dorme, onde as pessoas sempre correm. Fico deprimida na "cidade-em-que-tudo-acontece". Sinto medo também de tudo que descobri aqui, e que de repente parece incerto. Incerto demais. Um sentimento de que tudo que havia já desabou, ou vem desabado. Tem um ar de casualidade em tudo que envolve essa cidade. Nada nunca dura demais, não se pode confiar nunca, o tempo passa, o tempo é dinheiro, há muito o que se fazer, tem muita gente pra se conhecer. O tempo todo. Há sempre uma outra opção de lugar na cabeça para o caso do lugar escolhido estar cheio demais. As pessoas não tem tempo pra esperar as mesas vagarem na cidade-em-que-tudo-acontece. As pessoas não tem tempo pra esperar. Você não tem tempo pra me esperar. Eu leio um livro inteiro que fala sobre demônios enquanto a cidade corre. Do meu lado tem um velho de cadeira de rodas que disse que o filho acaba de sair do hospital, depois de levar tiros num assalto e que agora se sente muito feliz. Ninguém tem tempo de ouvir o velho. O filho dele ouve CDs na livraria e redescobre a música. O velho deixa um boné na mesinha onde se colocam os livros e todos o olham como se ele fosse inadequado. Todo mundo é inadequado em São Paulo. Todos nós deveriamos estar mais bem vestidos e os velhos não deveriam colocar seus bonés nas mesas das livrarias da Av. Paulista. O filho do velho se sente feliz olhando CDs. Eu não lembro a última vez que me sentia feliz, mas arrisco que foi naquela mesma livraria, por entre as estantes, enquanto tudo aqui ainda parecia novidade. Tudo em São Paulo é velho. Até os enormes prédios com fachadas de vidro já estão desgastados. Tudo aqui nasce e já se desgastou. Tudo que eu conheci está desgastado. Queria o frescor da primeira vez quando eu ainda não conseguia enxergar as rachaduras nos prédios da Av. Paulista. Queria o tempo em que não era possível apontar as rachaduras em mim. Hoje já são muitas, várias. A vida corre e eu tento me encolher num canto sem barulho pra ler a história do policial. O policial se apaixonou por uma travesti chamada Cibele e sabia que aquela seria a sua ruína. A paixão é a ruína de tudo. Se eu me apaixonar por São Paulo, ela cairá na minha cabeça. Me atropelará pelo lado esquerdo da escada, segurando um smartphone. A vida é rápida demais pra que eu possa ter sonhos. A vida aqui é rápida demais para que eu queira um lugar sem barulho no meio da Av. Paulista. Tenho a roupa errada. Carrego uma sacola feia. Esqueço o troco do metrô com a moça que me grita. Erro o lado de descer do ônibus. Nunca sei o ponto, nunca sei onde estou. Minha vida dói. Ninguém anuncia a próxima estação paraíso. Nos perdemos. Tem muita gente nessa cidade para que alguém se encontre. Sei que São Paulo vai me abandonar, então peço pra ela me preparar um chá. Quando ela volta já fui embora. Não há tempo de se esperar por ninguém em São Paulo. Não existe amor em SP.