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2.6.13

essa não é uma carta de amor

para um nhô

Pensei em te dizer inúmeras coisas antes de partir - porque eu sabia que ia partir, e sabia exatamente o dia e hora em que o faria - mas desisti momentos antes. a conclusão era certeira: você não entenderia. acho que tentei, meio descompassada, te explicar que eu estava indo. que eu ia, sabe? que eu ia e você nunca mais ia falar comigo. nem mostrar um poema, uma crônica, nada. eu queria te deixar ciente das minhas razões, elencando em tópico pra que você entendesse. você não entendeu. eu tentei um pouquinho. lembro que você me disse - meio bravo, até - que então era isso, que eu não queria mais conversar com você caso a gente não pudesse mais ter um envolvimento amoroso (na verdade você usou outros termos, mas há de se manter a qualidade literária da carta). acho que você pensou que eu te tratava, naquele momento, como uma coisa descartável. como essas garrafinhas biodegradáveis de água que a gente amassa e joga no lixo no momento em que termina a água. uma garrafinha tão vagabunda que não serve nem pra guardar água na geladeira depois, ou pra levar suco de pozinho pro trabalho. tentei te explicar que não era, que era outra coisa, que era uma coisa aqui dentro que me machucava e que era melhor pra mim que a gente se afastasse. você continuava sem entender e eu ia ficando pequena. já não tinha mais coragem de falar nada. não falei nada. não tive coragem. disse que era melhor que ficasse assim, então. que fosse indo. um dia a gente descobria o que ia ser da gente. você concordou, mas eu sabia que estava indo embora.

no começo foi difícil. era difícil não querer saber de você. daí eu ficava me distraindo com outra coisa pra não falar com você. se ainda estivéssemos nos tempos do telefone eu teria apagado seu número. não estando, desapareci. desapareci muito mais por mim do que por você. eu gosto muito de conversar com você e era dificílimo lidar com as minhas urgências de te contar as coisas que aconteciam na minha vida - embora não fossem muitas, porque nunca são. as razões de porque eu fui embora eram muito particulares. não porque você era descartável, e muito menos porque eu queria te exterminar da minha vida como coisa que não serve mais. eu só fui embora porque estar com você mexia comigo de um jeito que eu não sabia o que era. e machucava. machucava porque eu não tinha certezas. machucava porque eu lidava mal com todas as outras mulheres que eu sei que fazem parte da sua vida. elas aparecem em fotos, por vezes. em outras é num poema. li com o coração doendo um ou dois poemas que eram dedicados a pessoas que não eram eu. um deles eu li na rodoviária, pouco depois de chegar na cidade que é muito mais sua do que minha. tinha uma foto, uns livros, umas coisas-todas de uma história que me machucava mas eu não queria mexer. era isso: eu não queria mais ser a inquisidora da sua vida. e eu sabia que estando perto, fatalmente eu iria. longe eu podia pelo menos começar a entender o que tudo aquilo queria dizer. 

eu nunca disse que te amava. e se me perguntarem, eu vou dizer que nunca nem cheguei perto de te amar. não sei mais o que o amor faz, e então diria isso muito mais por inexperiência adquirida do que por certeza. pode ser sim, que eu tenha te amado um pouquinho em algum lugar pelo percurso em que você disse alguma coisa bonita ou em que eu deitei no seu ombro acreditando que estava salva de todos os males do mundo. eu sempre te ouvia dizer de um jeito meio debochado que só justificaria eu agir louca daquele jeito se eu estivesse muito apaixonada por você. você tinha uma flexão na frase, como quem diz uma redundância. eu dizia que o louco era você. às vezes eu ficava pensando em responder "e se eu estiver?" só pra que você me respondesse alguma coisa. mas você sempre tinha pressa, me levava pelos corredores da sua universidade apressado, me mandava embora de casa, se irritava com os meus jeitinhos. achei que não compensava. inclusive, da última vez que nos vimos achei que estávamos caminhando pra nos tornar aquele casal que já não deu certo e virou amigo. você não me beijou direito nenhuma vez. mas aquelas alturas eu já não queria questionar nada, e fiquei pensando que são paulo tem um dos por do sol mais feios que já vi na vida. eu prefiro o da sacada lá de casa, mas o da sacada de casa não tem você. 

é difícil te explicar porque eu quis ir embora. faz quase um mês e eu ainda não entendi. tem uns fins de noite que eu acabo cedendo e perguntando como vai você. no último você respondeu bem, hoje você foi seco. você foi seco e eu fiquei pensando que deve ser bem chato ter que lidar com alguém que some e volta assim, sem explicar porquê. quem sabe você ficou se sentindo uma dessas garrafinhas biodegradáveis que a gente joga fora assim que acaba a água, embora você pareça feliz sem mim. qualquer carta de amor soaria muito mais bonita se eu dissesse: fui embora porque te amo. por mais que você não me amasse de volta ia ter um quê de sofrimento que justificaria qualquer um dos meus atos - por mais impensados que eles sejam. não posso te dizer isso, mesmo pra fins literários soaria exagerado. fui embora porque não sei. fui embora por todas as coisas que não sei. fui embora pra nunca mais ter que te perguntar quem é a menina da foto ou quem é a garota que recebe poemas no meu lugar. fui embora porque estive cansada do meu descompasso e porque minha vida com você é um dançar na batida errada sempre sempre. e você sabe, eu fiquei cansada de dançar sozinha e fora do tom. seria bem mais fácil se eu passasse por cima dessas dores todas e continuasse a engolir todas as vezes que eu percebo que além de mim há outras várias e que talvez eu nunca venha ocupar um lugar de destaque - embora nos conheçamos há muito tempo, e meses atrás você parecesse gostar muito de mim. 

eu não sei o que aconteceu com a gente e foi por isso que eu fui embora. pra não te desgastar com perguntas bobas e sem resposta. pra não te exigir estando longe. pra não me doer num contato que vai me mastigando por dentro. eu te deixei pelas coisas que não sei. pelas coisas que eu não sei te explicar. eu resolvi te deixar depois da nossa última briga. ver você com outra me machucou. e outra que eu sei, por conhecimento de causa da sua vida passada, que já existe há muito tempo. bem antes da gente retomar isso que a gente tem - seja lá o que for isso. outra que eu trombei no corredor da sua universidade e você agiu como se eu fosse invisível. o fantasma da outra me deu um embrulho no coração. não soube agir naturalmente, nem te dizer as coisas com clareza. te disse coisas que não sei. e são essas coisas que não sei que você faz nascer em mim que eu não quero mais. doeu tanto. tudo doeu tanto. doeu tanto você me dizendo que você tinha o direito de colocar aquela foto em qualquer lugar. doeu tanto você me dizendo mil e uma coisas. doeu quando lembrei que eu também tenho com você uma foto quase igual. tudo doeu tanto que eu chorei na sacada sem saber porquê. chorei tanto. chorar tanto assim pelo que eu não sabia me fez pensar que só tinha um jeito: ir embora. ao menos de longe, se doesse de novo, eu não ia agir com você de um jeito que não sei. ia ser melhor pra nós dois. 

não está sendo fácil. hoje mesmo quis perguntar como você está, e fui. tem um monte de coisas que às vezes eu quero te contar e não conto. viver sem você sempre foi complicado, tanto que quando estivemos separados eu te escrevia umas cartas que eu achava que você nunca leria (mas leu). eu fui embora porque eu não sei o que sinto por você. e enquanto eu não descubro, ser uma coisa indefinida me dói. a cada vez que eu estou perto eu sei de coisas em você que eu gosto e aí por vezes eu relembro porque é que eu nunca te deixo. eu tento te falar aqui das coisas que eu não sei. com a distância você vai sumindo. tem dias que eu esqueço de pensar em você. depois você aparece me mostrando pedaços da vida da qual não faço parte e eu fico triste. às vezes eu destilo tudo isso em forma de rancor. no fundo eu queria que você fosse mesmo um dessas garrafas que a gente joga no lixo. você ia me odiar um pouco, mas logo ia passar, e eu ia viver bem. eu ia viver longe dessa infinidade de coisas que eu não sei, pelo menos. eu não consigo ser só sua amiga porque me machuca a idéia de você gostar de outra pessoa e essa pessoa não ser eu. também fico pensando e não sei se seria sua namorada. daria certo? todos os seus amigos me odeiam, a gente brigaria infinito pelo meu jeitinho e você ronca. eu sempre consegui ser mais uma no meio de várias, sendo também uma que tem vários. por que com você não? por que você me aperta o coração de um jeito estranho e porque o vislumbre besta de "te perder" me faz chorar na sacada? quanto sentimento mesquinho, eu nunca fui assim. coisas que não sei.

em resumo, eu gostaria que você soubesse que eu gosto muito de você. e muito me encantaria continuar na sua vida, e quem sabe até ser esse arquétipo louco da grande amiga com quem a gente sai pra conversar e dividir impressões sobre livros, e de vez em quando transa,e de vez em quando dorme junto e eu queria muito ser o que eu sempre fui com o resto do mundo com você e ouvir com distanciamento as histórias das suas outras garotas, e aí eu te contaria sobre os meus encontros casuais enquanto dividimos um café. mas com você eu não sei. não te deixei porque você não me serve. eu fui embora porque você desperta em mim coisas que eu não sei. coisas que vão além. essa carta mesmo, não faz o mínimo sentido. quase consigo pensar em você me dizendo qualquer coisa como: isso só se justificaria se você estivesse mesmo muito apaixonada por mim. você diz isso sempre com um ar de deboche meio convencido e eu rio dizendo que até parece. e se for? imagina o estrago? estrago já teve. mas acho que ficaremos melhores sem isso. nós dois. prometo que volto às vezes, quando sentir que posso conviver com você sem enlouquecer dizendo dessas tantas coisas que não sei explicar. espero que você continue escrevendo, que a sua casa nova seja aconchegante, que a faculdade não te mate e que tudo isso que sempre foi continue sendo. tudo isso que você é e eu não sei lidar. por aqui continuo descompassada, meio ansiosa, sempre sofrendo de gripes e sem ter a mínima idéia do que eu faço com a minha vida. desculpe pelas vezes que te ignorei. era preciso. pra que minha vida siga adiante, diriam os los hermanos. 

eu nem gosto de los hermanos, aliás, mas dia desses ouvi essa música aí que eu acho que chama "adeus, você" e acho que posso terminar te dizendo pra que você acalme e te sustente, e não pense que eu fui por não te amar. também não pense que eu fui por te amar. eu fui porque eu tive que entender todas as coisas que você faz nascer em mim e eu não entendo. sigo os seus conselhos, por vezes. em outras percebo que gosto bastante de algumas partes de mim que você detesta. um dia você me disse, convencido, que era difícil achar alguém melhor que você. eu ri achando uma bobagem. não espere que eu diga agora: você tinha razão. não é nada disso. é que eu percebi que quando a gente gosta de alguém, seja lá do jeito que for, ela acaba por ficar única do jeito dela. e então eu te digo que achar alguém como você deve ser mesmo um pouco difícil. razão pela qual eu percebo, depois de quase um mês longe, que eu não quero de novo ser louca, romper contatos abruptamente e esperar que alguém te faça sofrer. espero que você seja feliz e que eu ainda leia alguns dos seus textos e alguns dos seus trabalhos, embora eu saiba que eu conto com várias assistentes pro posto. talvez um dia você ame alguém e me esqueça de vez. talvez aconteça antes comigo e a gente se encontre de vez em quando pra contar as novidades. não sei da vida. pensei em te dizer muitas coisas antes de partir, mas acho que podia ter deixado só um bilhete: "se eu for embora saiba que não foi por não gostar de você, e sim pelo avesso disso". mas eu nunca penso em soluções inteligentes quando o assunto é você. continua sendo feliz, não me odeia, eu sou desajeitada, mas tenho o coração bom.

esperando que você leia isso e mantendo a tradição da comunicação indireta, me despeço como quem deixa uma carta em cima da mesa e parte com as malas. te mandar diretamente exigiria respostas e esse é tipo de coisa que, acredito eu, nem carece de resposta (a não ser que você queira). sinto uma coisa bonita por você, um negócio que me faz querer que todas as suas potencialidades sejam postas em prática logo, uma urgência de te ver bem, feliz e fazendo o que gosta. acho que é recíproco e imagino que esse seja o porquê das suas incontáveis broncas. quando penso na gente se dando bem (o que exclui os meus surtos e suas grossuras) me dá vontade de sorrir. é isso que vale. 
eu volto logo, 
lembra de não me esquecer. 
te gosto muito, sempre, ainda que preferisse não às vezes. não por nada, é que acho chato. só isso, acho chato.  
um beijo, 

eu 
(que sempre assino as cartas egocentricamente).