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27.5.13

eu também sei dançar se não for com você

Foi ele que me fez dançar de novo. Coisa besta dessas, pensei enquanto descia do carro, numas das mil e uma vezes em que ele me deixou em casa. Às vezes as pessoas ficam na vida da gente e a gente não percebe. Custei a perceber que foi ele que me ajudou a encarar aqueles dias horríveis de cinza e medo, enquanto me levava pra passear nos lugares conhecidos da minha cidade velha. Nem sei se ele dançava, antes de mim. Imagino que não, acho que lembro de uma vez em que ele me disse que fazia anos que estava aqui, mas nunca tinha ido em lugar de dançar. Fomos em lugar de dançar, e você dançava esquisito e daí eu podia dançar esquisito também. Não lembro, antes dele, quando é que tinha dançado. Talvez com um outro, um pouco antes dele, é verdade, que me fez dançar na sala. A gente só se beijava quando dançava, coisa esquisita. Mas depois desse veio um outro, que não me fez dançar e não me fez feliz, e aí eu parei de dançar. Parei de gostar de mim, também. E aí ele apareceu e aos poucos foi me fazendo dançar de novo. Foi ele que me fez dançar de novo. 

A vida é cruel. Sentada no meu quarto, depois de uma longa viagem, percebo o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Nas gavetas da escrivaninha, o manual da câmera que meu tio me deu logo que eu comecei a tirar fotos. A câmera empoeirada, num canto, com o filme da minha última viagem pra Curitiba. Nunca mais fotografei nada, eu disse assim, baixinho pra mim, como quem conta um segredo triste. Perto das câmeras, meus trinta e poucos livros não lidos. Não lembro quando, exatamente, eu parei de tirar fotos ou de ler livros. Só sei que aconteceu. Aconteceu eu, ali, perdida na vida e de frente pro meu computador querendo achar um sentido qualquer pra existência e falhando miseravelmente. Quietinha embaixo das cobertas, no frio, um ano atrás, eu não tinha vontade de viver. Só sabia escrever. E sei que escrevia porque esse era o meu único jeito de dizer que eu ainda existia. Existência besta, eu sei; mas ainda existência. Depois que tudo aquilo aconteceu eu me perdi de mim. Eu não sabia dançar, eu não sabia ler, e eu nunca mais tirei nenhuma foto. Numa pasta velha no meu computador, encontro fotografias de shows que eu fui. O mundo visto através das lentes ruins da minha câmera ruim. A voz do meu tio me perguntando a quantas anda a fotografia e eu respondendo baixinho, como quem sentencia uma morte: nunca mais fotografei. Nunca mais. 

Foi esse ano que voltei a dançar e que, timidamente, voltei a ler alguns livros. Concentração me falta, e vez ou outra eu prefiro mesmo ficar na internet perdendo tempo com a vida das pessoas que não são eu. A vida dos outros não é melhor que a minha, mas tem como grande qualidade: não ser a minha. Estive bem. Estive tão bem que parei de falar de mim. Não precisava, não tinha o quê e o mundo parecia ter, agora, algumas nuanças. Eu tinha voltado a dançar com ele. Eu, ainda que devagar, ia riscando a lista de livros a ler. Ia vivendo. Não era ainda o melhor jeito de viver, mas era um jeito. Um jeito meu. No meio disso tudo até peguei a câmera de novo e tentei tirar umas fotos, acho que uma orquestra, não lembro bem. O filme deve estar velho e é bem capaz que ao revelar amarele ou queime tudo. Não importa. É um pequeno registro de quando eu voltei a ver. Voltar a ver é importante. Voltar a ser, parece imprescindível.

Uns dois meses atrás - talvez menos, não me lembro bem -  entretanto, as coisas voltaram feito filme de terror. A mesma história. De novo, aquilo, a mesma conversa. Que saco sou eu que não sei viver a vida que nem gente, sempre nos meus tempos estranhos, na minha falta de planejamento e urgência, nos meus livros não terminados. Que saco sou eu, sempre andando em círculos, sendo pouco atraente, com o cabelo estranho, seco, toda fora de compasso e sempre conferindo o sentido certo do metrô. Merda de cidade enorme em que a gente chora no meio da rua e ninguém percebe. De novo eu chorando na rua e me perguntando porque é que eu me maltratava assim? Desci dois pontos antes do que devia de medo de não chegar no lugar certo. Minha ansiedade ainda ia me matar. Um dia ainda mata, essa merda que não sei controlar ainda. Mata também essa urgência besta de querer ser feliz e se atrapalhar, sempre atravancada pela vontade dos outros. Tudo de novo. O quarto escuro, o sono que não passava, uns tremeliques que vinham do nada. Eu, encolhida entre cobertores paraíba, numa cidade que nem frio fazia, chorando de vontade não viver nunca mais. E lá na escrivaninha se formavam de novo pilhas de livros que não lia mais e uma câmera que empoeirava. Eu já não queria que ninguém me tirasse pra dançar. Tudo chato, não adianta, eu sou um desastre. Queria dizer pra todo mundo ir embora de uma vez. Eu não ia dar certo. Não tinha como. Não tinha como alguém descompassada como eu dar certo. Era necessário que todos soubessem logo disso. Eu ia gritar pro mundo: eu sou um fracasso. Era isso, fracasso. Nunca terminarei de ler um livro, que dirá escrever meu próprio, e sou um fracasso.

Os dias iam passando feito assombração. Era tudo lento, tudo triste, tudo cinza. Cinza feito as olheiras imensas que iam se formando embaixo dos meus olhos que agora já tinham voltado a ser tristes. Tudo vai indo porque tem que ir. Eu não queria dançar. Não queria fotografar. Não queria saber o fim dos livros que comecei. Não queria nunca mais aprender alemão. Nem francês. Nem nada. As pontinhas dos meus dedos formigavam e no coração tinha uma espécie de peso que é difícil de explicar. Eu queria que tudo isso desse um conto bonito, mas eu não conseguia escrever. A duras penas ia completando as minhas atividades, até que as coisas foram ficando mais leves. No começo da semana ele tinha me levado pra dançar. Meus coturnos pesados atrapalhavam tudo, mas ele tinha esse jeito torto de me fazer sorrir no meio da tragédia. De vez em quando a gente tinha que perder a hora dos compromissos do outro dia. Fiz tudo que devia. Ia renascendo no meu tempo, mas ia. Sou meio desorientada, mas ia dar conta. Estava dando. Tudo parecia leve. Eu ia suportar. Até que vem tudo de novo. O mesmo inferno. As mesmas brigas. Você é louca você é louca você é louca sendo repetido como um mantra. Eu quase acreditei. Eu era louca mesmo, não era? Por que é que eu me maltratava assim? Não sabia responder. Olhava pra sacada tentando entender tudo aquilo que ele tinha me dito e o mundo rodava esquisito. O mundo não girava. Era isso. O mundo tinha empacado de novo e eu tinha ficado. Besta. Sou cheia de bestagens. Eu era um fracasso. Era isso, eu ia fracassar de novo. Perdida em pensamentos e naquelas mesmas desilusões no dia de começar de vez um projeto. Adeus, mestrado. Adeus. Eu te deixei por conta de uma desilusão. Chorava feio, daqueles choros de criança sentida. Até soluçava. Não era possível. Mais uma vez. A gente cansa de se reerguer. Eu já tinha decidido: nunca terminarei nada e sou um fracasso. 

Ia ser mais uma nas coisas que eu deixei pra trás. Sonhos ali empilhados na estante junto com uma máquina com filme pela metade e uma porção de livros que pouco me interessa o final. Tudo inacabado, feito eu. A única coisa que eu conseguia sentir era dor. Punhal enferrujado no coração devia doer uma dor feito aquela. Desilusão. Mais uma pra botar na estante. De novo. O inferno. Tudo que lembro daquele dia foi ter me enfiado numa cama qualquer com um desses caras de sempre e quase ter chorado baixinho no começo de tudo. Mas depois gozei. Acho, nem lembro. Só lembro dele me dizendo que ia ficar tudo bem enquanto me dava suco pronto de maracujá. Desses de pozinho. Era tudo que eu precisava, no fim das contas. Aí decidi que não dava pra negligenciar a vida por mais um ano. Fui lá e fiz. Chorando, mas terminei tudo que tinha que fazer. De novo estava eu naquela cidade chata carregando documentos e subindo ladeiras. Conferindo no mapa o sentido do metrô. Dóia um pouco ainda. Lá dói um pouco mais. Inferno de cidade empacada. Mas eu ia sobreviver. Ia colocar a desilusão do lado das coisas que eu não uso mais, ali na estante. Estante das desilusões. Era problema de quem esperava demais da vida. Certamente. Depois tudo foi indo. Às vezes doía, mas doer acaba que dói sempre. Não era a primeira vez. Era isso: não era a primeira vez. 

Deve fazer um mês, mais ou menos - talvez menos, não me lembro bem. Sei que faz uma semana que voltei de viagem e percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Meus livros, minha paixão pela fotografia, minha mania de dançar, meu gosto pelo futebol e minha vida. Lá estava eu deixando minha vida pra trás mais uma vez. Que perigo. Aí resolvi que não dava. Voltei com os livros, prometi deixar tudo em ordem, acordar cedo. Não dá pra ficar fazendo doer pra sempre. Por que é que eu me maltratava assim? Seja o que for, se um dia valeu, hoje não vale mais a pena. Daí dei de andar na chuva, dar trela pra desconhecido, sair pra dançar sempre que der e ler antes de dormir. Quando tiver tempo volto a fotografar também. Fiquei sabendo de gente que comenta futebol. Voltei a ver futebol. Ouvi que é muito legal que eu saiba sobre diversos assuntos. Começo a achar engraçado o espanto que, de quando em vez, meu cabelo causa. Sei que sou perdida e louca. Aceitei. Gosto de mim assim, mesmo que esse "ser assim" me cause formigamentos nas pontas dos dedos. Dia desses andei na chuva, descabelada, ouvindo música. Sozinha. Sou, primordialmente, uma pessoa sozinha. Sorri baixinho, como quem descobre um grande segredo. Quase chorei de levinho quando me li comentando futebol de novo. Senti leve orgulho de conseguir ler meio livro em dois dias. Volto a ser eu. Dia atrás ele me fez dançar de novo. Sou feliz quando danço com ele, coisa besta dessas pensei descendo do carro e aí quase pensei que talvez, quem sabe, ele fosse a escolha certa a se fazer e que a escolha às vezes está mais perto do que imaginamos, o grande clichê. Mas ele não é a única pessoa que dança no mundo, e talvez essa seja a grande chave de tudo. Tem muita gente pra dançar comigo no mundo. E pensando assim, sei que volto a ser livre, como sempre fui. Percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. No meio delas, estava eu. E aí eu me fiz dançar de novo. 

19.5.13

janelas da alma


tinha show do raça negra e eu não fui. vontade senti, mas o cansaço foi maior. cansaço físico não digo, sempre acho que cansaço físico acaba curando uma hora ou outra - nada que cinco ou seis horas de sono não resolvam, mas sim o cansaço da alma. estive de alma cansada; triste, melancólica, com medo de ter crise de ansiedade no meio do metrô. portuguesa-tietê não é coisa pra gente com nervos fracos, são paulo menos ainda, são paulo com virada cultural menos ainda. imagina só aquela gente toda indo de um lado pro outro, meio louca, meio histérica. eu tendo que tomar cuidado com a bolsa porque podem vir mendigos, ladrões, gente, gente, gente, gente de todo lado e de todo jeito. eu nem gosto de gente. não gosto de gente tanto assim, não desse tanto. também não queria pegar um ônibus, não queria conversar, não queria nada. absolutamente nada. tudo pesava demais, meu coração tem sessenta quilos desde que a história se repetiu. as histórias se repetem, assim, e eu volto a escrever em primeira pessoa. meus textos em primeira pessoa não são bons. minhas histórias não são interessantes o suficientes. o sentimento me retarda, o sentimento retarda a todos inclusive a mim. queria ficar o mais longe possível de mim e da história. queria ficar mais longe de são paulo. queria ficar longe. longe. 

longe fiquei. angústia é um sentimento estranho de explicar. dá arrepio de choque. um dia pesquisei na internet se ansiedade dava choque. dá sim. dá choque, dá ânsia, dá tremedeira a formigamento nas extremidades. tristeza também é coisa física, concluo. viver é coisa complicada demais, concordamos eu e o guimarães rosa. amar então, deus que nos livre e guarde. e deve guardar mesmo, porque o amor é o diabo. se o diabo fosse um sentimento, seria a paixão. longe estando, resolvi que devo ficar perto das coisas perenes. paixão é o diabo encarnado, amor não. amor é simples. amor de pai e de mãe, dizem, é a única coisa que não perece. deve ser a única coisa que dura muito no mundo, além dessas árvores que vivem milhares e milhares de anos. mas as árvores morrem, acho que o amor fraternal deve permanecer no espaço, quem sabe. no cinema perto do hotel onde estava, meu pai disse, ia passar um filme de dança. sabe-se lá que filme de dança era esse, mas minha mãe não quis ir ver e resolvi ir com ele. ir com ele porque não me lembrava qual a última vez que tínhamos saído juntos pra ver alguma coisa. há tempos meu pai não vê. não enxerga. há tempos o mundo do meu pai é feito de vultos. o mundo do meu pai era feito de memória e sensação. os olhos dos meu pai eram os olhos dos outros, e eu acho que deve ser triste ver com os olhos dos outros. os olhos dos outros não vêem o que a gente quer ver. coisa estranha é o olhar dos outros.

o prédio devia ter uns duzentos anos. engraçado falar que uma coisa tem duzentos anos, porque é tanto tempo que parece que ela existiu desde sempre. casarão de gente rica que hoje é museu. o museu da imagem e do som da cidade de campinas é num antigo casarão. casarão onde devem ter sido açoitados escravos propriedade de velhos senhores de café. senhores de café do oeste paulista. desgraça acontece em lugar bonito. a arte toma conta desses casarões. a arte ou os bancos. mais comumente os bancos, mas nesse, em especial, ia ter filme de dança. o filme de dança era "pina". wim wenders é um dos meus cineastas favoritos, mas ele só fez uns três ou quatro filmes bons, segundo a crítica. dizem que wim wenders começou com grandes sucessos e depois perdeu a mão. ou isso, ou não entenderam ele. não sei dizer, também só vi os filmes aclamados. os outros devem ser tão ruins p'ros outros que a gente nem acha por aí. talvez eu entendesse os filmes ruins do wim wenders porque eu entendo de fracasso, e entendo também de não ser entendida. entendo muito sobre não ser vista direito pelo olhar dos outros. coisa estranhíssima é o olhar dos outros. 

o tal filme de dança conta a história de pina, uma coreógrafa de dança contemporânea que morreu enquanto faziam o filme. ao que consta, ninguém entendeu muito bem a pina. não sabiam se o que ela fazia era dança ou teatro, e ela foi muitas vezes criticada por mostrar coisas muito agressivas. eu não conhecia a pina antes do filme. meu pai também não. fiquei apreensiva ao perceber que o filme tinha falas e que, talvez, meu pai pouco entendesse sobre a pina ou sobre a dança. felizmente, o wim wenders fez um filme com poucas falas e poucas legendas. pra entender pina, era necessário entender a dança. a dança meu pai enxergava, e isso me deixava feliz. feliz porque eu conseguia ver através dos olhos do meu pai que ele conseguia ver de novo. enxergar. há tempos meu pai não enxergava nada do que a gente via. via pelos olhos da gente, via com olhos que não eram os olhos normais. via som. via vulto. via vento. via barulho e via calor e frio. via cheiro. mas ver, ver mesmo, há tempos que não via. daí ele viu a pina, e a dança meio louca da pina. e tudo que o wim wenders queria mostrar sobre a pina. 

o filme tem poucas falas, quase nada de falas. quando tem fala, são os dançarinos da pina tentando explicar a pina. mas a pina não é gente que se explica. o wim wenders, que não emplaca um sucesso a pelo menos vinte anos, sabia que não precisava explicar a pina. precisava mostrar a dança da pina. ninguém entendia direito o que a pina queria dizer com as danças dela. era alguma coisa de angústia, e alguma coisa de felicidade e alguma coisa de medo. a pina dizia p'ros dançarinos, que pra dançar alguma coisa é necessário sentir. todo mundo da companhia de dança da pina achava ela genial. é sempre genial, a gente sabe, alguém que nos faz sentir e transentir alguma coisa. é por transver a dança que o filme da pina não precisa de fala. vendo a dança a gente entende muito sobre ela, e entendendo muito sobre ela entende muito sobre a dança e sobre sentimentos, e entendendo muito sobre sentimentos entende o mundo. e pra entender o mundo não precisa mesmo de legenda. meu pai enxergava o filme. não lembro qual foi a última vez que vimos um filme que ele enxergava com os próprios olhos juntos. da última vez, assistimos santiago. santiago é um documentário que o joão moreira salles fez sobre o seu mordomo, santiago. santiago se expressava através de histórias. era falando que se sabia de santiago. meu pai viu o filme com os ouvidos. não viu uma ruga sequer de santiago, ou as vezes que ele olhava tímido pra câmera. mas entendeu santiago. pra entender o mundo não precisa enxergar com esses olhos físicos. é preciso ver com a alma. 

é com a alma, primordialmente, que se vê pina. ver a dança pela dança não diz nada. se formos ver pina com olhares técnicos, pouco entenderemos. também pouco entenderemos sobre o porquê do wim wenders ter feito o filme daquele jeito, cheio de gente dançando no meio da rua. a dança de pina nada diz se for vista com os olhos de todos. pra enxergar pina, é necessário transver as coisas. pra enxergar pina é preciso de mais. meu pai enxergou pina. com certeza não viu a dança com os mesmos olhos que eu ou que as outras pessoas da sala viram. o wim wenders mesmo uma vez participou de um documentário chamado "janelas da alma" em que a grande coisa era entender como as diferentes pessoas com diferentes problemas de visão enxergam. a conclusão é simples: ninguém vê igual. é impossível prever como o outro vê, mas não é igual ao jeito que eu vejo. meu pai não viu pina com meus olhos, mas enxergou. para enxergar, percebo, não é necessário uma visão perfeita. o jeito que meu pai viu o filme era o mais bonito de todos pra mim, porque ele estava vendo de novo com os olhos dele. e seja lá o que ele tenha visto com os olhos dele, é mais bonito do que qualquer um vendo. porque são os olhos dele vendo de novo. são os olhos dele vendo por si. eu não preciso mais ver por ele. 

pina é um lindo filme porque ninguém entendia muito bem a pina, mas o wim wenders entendeu. ninguém entendeu muito bem o wim wenders por vinte anos, mas pina é um de seus grandes sucessos. talvez porque ele se encontrou com alguém que, como ele, via coisas a mais. via com a alma. e quando se vê com a alma se enxerga o outro. enxerguei a pina com meus olhos e não sei dizer se entendi pina, mas sei que me entendi, e entendi sobre os sentimentos. e vi. alguma coisa eu vi. vi meu pai vendo de novo, o maior presente do meu ano. maior que qualquer show do raça negra. me vi angustiada e triste. me vi. percebi que eu, assim como a pina ou o wim wenders às vezes enxergo tudo tão com os meus olhos que não sou entendida. coisa terrível é o olhar dos outros. o olhar dele não me entendia. era por isso que eu queria estar longe de tudo. longe daqueles metrôs de gente gente gente gente longe dele o mais longe possível. e longe dele estive perto de mim. o mais perto de mim possível. pina dizia que é preciso dançar. dançar, creio eu, é um jeito de enxergar o mundo. parafraseio pina e digo: é preciso enxergar. é estritamente necessário enxergar. me enxerguei, enxerguei a pina, o wim wenders e o meu pai. concluo: pra enxergar não são necessários os olhos, é necessário sentir. pra sentir é necessário querer. pra enxergar é, então, necessário querer sentir. só enxerga quem quer sentir. só sente quem quer enxergar. 

talvez seja também esse texto uma dança não compreendida de pina. um filme sem bilheteria de wim wenders. tipo de coisa muito minha pra ser vista com os olhos dos outros. todos nós às vezes somos nós demais pra ser vistos com os olhos dos outros. eu, meu pai, a pina, e o wim wenders. mas alguém sempre entende. alguém sempre enxerga. bilheteria de um homem só. alguém na platéia sempre sai chorando. olhares que se encontram.  

13.5.13

somos tão jovens?


Eu tinha doze anos quando ouvi legião urbana pela primeira vez. Não foi exatamente por escolha minha. Com essa idade, meus pais colocavam os cds numa altura em que eu conseguisse pegar e eu acabava pegando os que me interessavam ou pela capa, ou pelo nome. "Legião Urbana" não é um nome lá muito atrativo pra uma pré-adolescente de doze anos, e a capa do "dois" (o único cd que meu pai comprou do legião), era bege e pouco atrativa. Eu, nessa idade, me dividia entre ouvir algum rock, as cantoras pops que faziam sucesso e Caetano Veloso. Sempre fui uma criança chata. Crianças chatas ouvem Caetano Veloso e se tornam adultos chatos. Eu sou uma jovem chata.

Mas o legião urbana eu ouvi por causa do Leonardo. Leonardo era um aluno novo que apareceu na minha sala logo no começo do ano. Ele tinha aquele jeito de não se importar com nada e passava a aula toda batucando na carteira, numa espécie de bateria imaginária. Atrapalhava a sala toda, os professores sempre reclamavam, mas o Leonardo não parecia ligar muito. Ele era baixinho, os cabelos meio compridos que sempre caíam em cima do rosto. Eu gostava do Leonardo. Daí, numa dessas conversas de sala descobri que ele gostava de Legião Urbana. Lembrei que meu pai tinha comprado o "dois" não fazia muito tempo e roubei o cd pra mim. Ouvi todas as músicas e achei que, assim, um dia teria assunto com o Leonardo. O que eu não esperava era essa identificação com as músicas do Legião. Ouvir Legião Urbana era como ouvir um amigo que conheça histórias. Renato Russo me entendia. E era muito difícil até pra eu me entender naquela época. O começo da adolescência é uma época chata e eu era uma adolescente chata. Passava muito mais tempo lendo e ouvindo música do que me importando com o que as outras meninas se importavam. Acho que nessa idade já tinha guria na minha sala que já tinha beijado na boca e eu, o máximo que sabia sobre o amor era aquilo que eu sentia sobre o Leonardo, de longe, enquanto ouvia meu primeiro CD do legião urbana. 

O tempo passou, eu pedi pro meu pai outros cds do legião, que ele me deu com certo gosto porque também tinha sido uma banda da juventude dele. Gostava cada vez mais das músicas, e cada vez menos do Leonardo. O Leonardo era meio chato, baixinho demais pra mim e, depois de um tempo, os batuques constantes de caneta em cima da carteira me deixavam irritada. Mas o Renato era genial. Me lembro que uma vez tive um desentendimento sério com umas meninas da minha sala. Cheguei em casa e prestei atenção pela primeira vez na letra de "Andrea Doria". Eta como se o Renato tivesse escrito pra mim. Era essa a sensação que eu tinha com o legião: as músicas tinham sido escritas pra mim. E se essa sensação é importante hoje que tenho vinte e quatro anos, aos doze ela era ainda mais importante. Ser uma pessoa em crescimento nesse mundo louco não é fácil. Se entender é coisa complicada. Achar alguém que diga por você é um dos grandes triunfos da adolescência. O Renato dizia por mim. 

Renato dizia por mim não só nas letras, mas naquele jeito dele. Dei de ver várias entrevistas dele, ler várias coisas e percebi que a gente pensava parecido. Eu não era a única a me sentir daquele jeito. Alguém já tinha sentido antes. Renato era meu amigo. Renato, aos treze anos, era tão meu amigo que eu ficava imaginando que quando eu morresse, eu ia encontrar o Renato no céu e íamos tocar violão. Um pouco mais tarde, alguém me disse que o Renato não ia pro céu porque era gay. Os gays não vão pro céu. Fiquei pensando por um tempo. Não fazia o mínimo sentido. Deus não ia ser tão tonto assim de deixar um cara tão legal quanto o Renato queimar no inferno só porque ele gostava de namorar homens. Ele tinha me ajudado durante uma época duríssima da minha vida, eu pensava. É impossível que não tenha ajudado outras pessoas. Deus deve levar isso em consideração. Uma vez, ouvindo "pais e filhos" fiquei penando que o Renato, por ser gay, nunca tinha sido pai. Imaginei se ele queria ter filhos. Depois descobri que ele teve um menino, que tinha mais ou menos a minha idade. Fiquei um pouco contente. Renato parecia ser do tipo que ia gostar de ter filhos. Devia ser legal ser filho do Renato, eu pensava. 

É até um pouco complicado explicar - e tentar entender - a dimensão das letras da legião urbana durante a minha adolescência. Dos doze aos dezesseis foi a banda que eu mais ouvi. Eu sabia todas as letras. Todas as partes da minha vida tinham sido guiadas por alguma coisa que o Renato tinha escrito. Conheci todos os CDs, até aquele que ele cantou em italiano e é meio chato. Parte do que eu pensava foi formado pelo Legião. Não sei dizer se eu seria tão chata assim se tivesse ouvido só Britney Spears. Foi ouvindo o Legião, por mais clichê que fosse, que eu consegui ter alguma dimensão do quão errado as coisas podiam ser. Viver não era nada fácil. Nadinha. Eu sempre achei isso, mas não tinha quem falasse por mim. Daí o Renato falava, e eu ficava mais tranqüila. Ouvir legião era como ter um irmão mais velho que me explicava as coisas do mundo. Por alguns anos, o Renato foi o meu irmão mais velho. Tinha música pra confusão, pra felicidade, pra fossa, e pra indignação. Eu ia percebendo cada vez uma coisa diferente nas letras. Eu cresci com o Renato. O Renato me ajudou a crescer. 

Essa semana fui ver o filme sobre ele, o "somos tão jovens". O filme é horrível, o Renato é super caricato, tem cenas desnecessárias e é muito mais um filme de comédia do que algo sério sobre esse homem que também não é um mito. É só um homem como qualquer outro. Mas eu descobri coisas interessantes. Renato também estudou no Marista e ganhava medalhas de bom comportamento. Renato também foi um adolescente chato, egocêntrico, dono do próprio nariz. Ele, assim como eu, enfiava o dedo na cara das pessoas e cobrava indignação. O Renato acreditava em alguma coisa e ficava triste porque o mundo tem uma mania bem chata de não ser exatamente como a gente imagina. Eu fui uma adolescente muito parecida com o Renato. Exceto pelo fato de que eu bebia bem menos e não me drogava nada. O filme do Renato é chato. O Renato, convenhamos, também não era nada fácil de se lidar. O legião urbana está longe de ser a melhor coisa do mundo, e eu ouço muito pouco desde que passei dos vinte. Mas existe alguma coisa sobre essa banda que me formou.

Na ultima cena, o Renato canta. E é o Renato mesmo, não é o ator. Canta "será". E nessa cena, parecia que eu tinha doze anos de novo e queria conquistar o Leonardo. O Renato que cantava era aquele mesmo que foi meu amigo. Existe algo sobre o legião que ajudou a formar o que eu sou. Foi segurando naqueles versos que eu passei por essa fase negra que é a adolescência. O filme do Renato é horrível. O legião não tem as melhores letras do mundo. Hoje, eu prefiro Radiohead. Quem segura na mão da minha vida agora é o Thom Yorke. E outros caras. O Renato eu ouço de vez em quando e lembro que existem certas coisas em mim que não mudaram, porque certas coisas permanecem. Foi isso que eu percebi enquanto umas tímidas lágrimas caiam do meu rosto ao ver o Renato cantar. Já não acredito que tenha tanto tempo, que dirá "todo o tempo do mundo". Acredito menos - muito menos - no Renato e em mim. Acho que é porque eu cresci, o Renato morreu já faz quinze anos e o mundo, o mundo piorou muito. O filme do Renato é horrível, mas eu sei que ele sabe quase sem querer que eu vejo o mesmo que você. Aquele ao cantar "será" dançando do jeitinho que eu danço quando ninguém está vendo ainda é meu amigo. Não sei vamos conseguir vencer (e é muito provável que não), mas eu sei que continuo tentando. Eu sei. 

10.5.13

o pior poema das galáxias


Quem te escraviza? 
E pergunta ao coração como quem chora
Suplica uma resposta que não vem
Sabe estar escrevendo o pior poema
Das galáxias.

As constelações mostrariam um nome?
Dariam uma solução?
E se apontasse pro cruzeiro do sul, 
Construísse um dirigível 
Fosse até lá
Então, enfim, encontraria quem te escraviza?

Ouviu-se dizer que ele tem olhos cor de terra
Os pés no chão
Um olhar que não faz festa nem solta foguete
Um coração que não chacoalha 
E nem se entrega 

Ouviu-se dizer que ele se dá, 
Às moças bonitas, 
Às moças feias,
Às que tem coração que cintila,
Às que são ocas

Ouviu-se dizer que ele tem um andar solene
Jeito de homem que sabe das coisas do mundo
Entende as regras gramaticais
Não confunde o lugar das vírgulas 
Mas ainda não entendeu os mistérios da vida 

Ouviu-se dizer que foi ele
Que chegou de mansinho
Não fez barulho, não arrombou a porta
Que prometeu ficar
E que foi embora causando estrago.

As estrelas entendem o mistério do desamor?
E se construísse um foguete, 
Apontasse pra via láctea, 
Fosse até lá
Então, enfim, entenderia como o amor acaba?

Grita, 
Desespera-se 
Pede uma explicação
Se Deus existe, Deus não quer explicar.
Se Deus existe, não inventou esse tal de amor.

Quem te escraviza?
Pergunta ao coração e já sabe a resposta
E os dois então se olham, 
Se entendem
Choram no sofá da sala de estar.

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Tinha o olhar cor de terra, 
Os pés no chão 
Um coração que não chacoalha 
E nem se entrega

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Sorriu
Prometeu-lhe ser gentil
Pegou seu coração 
E amarrou num tronco de árvore.

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Ficou por um tempo
Construiu uma nave,
Apontou pro céu 
E foi devastar outra terra. 

7.5.13

mas quando eu me zango, não sei perdoar


O Roberto Tem Te Traído Você Sabia?

A pergunta veio como um daqueles carros desgovernados que você não vê passando, só sente o impacto. Quando a frase veio, já podia me ver desmembrada em quarenta pedaços diferentes e com sangue espalhado por todo chão. Tinham descoberto, então. O filho da puta não tinha tido nem a decência de esconder direito a outra com quem saía. Alguém viu. Alguém viu, alguém foi espalhando a história até que chegou na boca dela e ela veio me contar. O Roberto Tem Te Traído Você Sabia? E quase esboçava um sorriso cheio de dentes. Sorriso de quem quer mostrar que sabe alguma coisa terrível sobre a sua vida que parece perfeita. Teu namorado tem te traído. O merda do teu namorado não quis nem esconder direito que tem saído com outra menina e aí descobriram e não só descobriram como vieram te contar. Roberto era um canalha tão canalha que não fazia nem questão de esconder, ir em motel podre de beira de estrada. Não queria ser cínico, não queria deixar debaixo dos panos. Roberto deve ter saído do shopping, de mãos dadas com alguma menina dessas de quem ele gosta. O filho da puta dando voltinha em livraria de shopping com essas meninas de sorriso fácil e meio burras de quem ele gosta. O filho da puta esbanjando todo seu conhecimento merda sobre as artes & tudo mais em galeriazinha meia-boca de shopping com fulaninha de curso de humanas de universidade. Tinham descoberto. Tinham descoberto, e fizeram questão de me contar. 

Onde Você Viu Isso? Não que importasse. A verdade é que eu sabia. Sabia que tinha sido no shopping porque ele tem modus operandis. Se não fosse no shopping era num café. O filho da puta não tem nem imaginação. Sempre os mesmos lugares. Os mesmos lugares onde ele me leva, ele leva elas. Elas não se entediam, eu me entedio. Eu sou a chata que não gosta dos lugares frescos onde ele leva todo mundo. Café. Quando não é café é cinema-livraria. Café-livraria. E o desgraçado lá, mostrando todo seu conhecimento raso sobre tudo isso que ele conhece. Roberto é um filho da puta pós-moderno que acha que sabe muito sobre vários assuntos e a grande verdade é que quando se sabe um pouco sobre todos os assuntos, se sabe nada sobre tudo. Ele não sabia de muitas coisas, mas não é como se as meninas que acham ele lindo se importassem. Dava pro gasto. O filho da puta fodendo e presenteando essas meninas que gostam de ganhar presente. O filho da puta dessa vez tinha baixado a guarda e aparecido em público com uma dessas meninas. Tinham descoberto. E vieram me contar. 

Naquele Café Que A Gente Foi Semana Passada, Sabe Qual? Não era shopping, era café. Tudo a mesma coisa. Café, conversas, arte, os problemas do mundo, literatura, as últimas notícias do jornal, Você Leu o Último Livro Daquele Escritor Fantástico? Leram, sempre lêem. Leram, discutem, sorriem, se beijam e acabam na cama. Tinha sido assim comigo e devia ser assim com todas as outras, porque ele não ia se dar ao trabalho. Sei Qual, Aquele Da Avenida Perto da Livraria, Né? Sim. Ele Não Te Viu? Acho Que Não Eu Sai Rápido. Não que se ela visse ele ia disfarçar, ou se sentir culpado. Ia continuar ali, jeito de quem não deve nada a ninguém, as contas pagas em dia, cuidando da própria vida. Eu que sou atarantada. Agora tinham dó de mim. Filha da puta, veio me contar e me olha com esse sorriso meio assim. Então o relacionamento de vocês não era perfeito? Regozijava-se. Por dentro dela devia tocar uma fanfarra. Eu era também uma amélia burra que ficava em casa comendo chocolate e vendo TV enquanto o Roberto fodia outra menina no apartamento de solteiro dele, no outro lado da cidade. Ele que não deve nada a ninguém. As contas pagas em dia, dono da própria vida. E eu, coitada de mim. Virei mulher que faz vista grossa pra traição. Perdida e jogada num apartamento imenso onde dá pra guardar todas as minhas mágoas. Ainda Bem Que Tem Dinheiro Pra Comprar Chocolate Suiço E Pagar Analista, deve ter pensado a ordinária. Um saco inteiro de chocolates belgas, analista sete vezes por semana, se quisesse. Mas nada disso. Nada disso. Eu só ficava lá, meio tristonha, olhando a agenda de contatos e pensando pra quem ligar. Tanta gente no mundo. Grandes bostas. 

Era Uma Menina Que Acho Que Já Vi No Face Dele. Dizia com olhar de quem se perguntava E Como É Que Você Não Notou? Notei, claro que notei. Noto tudo, sei de tudo. Se bobear sei até os dias. Roberto tem umas desculpinhas esfarrapadas pra disfarçar traição. Inventa que não pode sair porque apareceu um trabalho de última hora. Sempre se enrola com as datas, quando você pergunta. Diz duas versões da mesma coisa, depois fala que Desculpa Eu Ando Mesmo Muito Cansado Embaralho As Coisas. Esquece as minhas datas e eu já cheguei a pensar que qualquer dia eu apareço nua na frente dos amigos dele e ele não faz nada. Dia desses esqueceu que a gente tinha marcado um jantar. Aí depois ligou, se desculpou. É Muito Trabalho Você Entende? Entendo, claro que entendo. Sempre entendo. Me faço de sonsa, é sempre melhor. Brigar vem ele com aquela conversinha de Você Leva Tudo A Sério Demais Isso Não É Um Casamento. O que ele não entende é que é questão de respeito. Aí. A filha da puta vê ele com uma qualquer e eu tenho que ouvir que O Roberto Tem Te Traído Você Sabia? Claro que sabia. Sei, sempre soube. Sei de todas elas. Os nomes delas. Os bilhetes que ele escreve pra elas. O jeito que elas acham que ele as acha as únicas do mundo. O jeito com que ele explica que Do Nosso Amor A Gente É Que Sabe. Tudo papinho barato pra todas elas acharem que não precisam de exclusividade. Que o sentimento é algo que paira no ar, muito maior e mais sublime que os rótulos. Rótulos São Para Potes De Maionese, disse um desses caras aí que tem frases espalhadas no facebook. Acho que um filósofo. O Roberto gosta dessas merdas. Nunca leu nem um livro inteiro de um desses caras, mas gosta dessas merdas. Claro que eu sei que o Roberto me traí. Sempre soube. Ele não sabe disfarçar.

Sei Quem É. E disse o nome da menina. Sempre o mesmo tipo. O Roberto escolhe o mesmo tipo de meninas, sempre. E elas não disfarçam. Sempre tem vestígios delas em algum lugar. E olha que eu nem fuço mais nada. Na casa dele nem o computador dele eu uso, porque se a gente fica sabendo de alguma coisa tem que tomar providência e eu desisti. É Essa Mesma. E ela me olhou com dó. Poxa, coitada de mim que tenho um namoro em que me traem. Coitada de mim, em casa, lendo livros e corrigindo trabalhos enquanto o Roberto ia levar outra menina pra tomar café. Só suspirei. Não ia dizer que eu sabia porque ia soar meio ridículo. Aí sim ia ser caso de pena, ela contando pra todas as amigas que Você Ficou Sabendo Da Carolina Ela Tem Sido Traída E Não Faz Nada. Todas iam pensar em mim com dó, iam sorrir um pouco pensando que o meu namoro nem é tão legal assim, mas que sempre desconfiaram. Acho Que Ele Me Dava Umas Olhadas. E quem sabe iam elas também se engraçar com o Roberto. Filho Da Puta Ainda Bem Que Chumbo Trocado Não Dói. Hein? Me olhou com olhos de surpresa.

Traio Ele Também, Ué. Os olhos dela pareciam envergonhados agora. Podia jurar que nesse momento ela preferia não ter contado nada. Queria que eu chorasse, me descabelasse, perguntasse Como É Que Ele Pôde Fazer Isso Comigo? E aí depois ela ligando pra todo mundo que conhecia dizendo que eu chorei num café no shopping quando ela contou que Roberto tem me traído. Tem Me Traído. Uma coisa constante, ainda. Várias. Todo mundo já sabe. Eu, desolada, molhando a blusa toda de lágrima e elas pensando que eu era uma mulher bem sucedida, porém infeliz como todas as outras. Trai? Traio Ué. 

E não era mentira. Traia mesmo. Traía porque me sentia melhor assim, ainda que ele nunca soubesse. Era discreta. Marcava as coisas por telefone, às vezes por mensagem. Os encontros nunca eram um lugares muito públicos. Uma vez por semana, às vezes no meu apartamento. Às vezes no deles. Uma lista fixa. Uns cinco caras. Por um deles eu sabia que podia me apaixonar, mas esse era o que estava menos interessado. Todos eles me comiam melhor que o Roberto. Todos. Um amigo meu dizia que eu gostava é do que não prestava. Concordava. Todos os cinco eram pessoas interessantes. Uma vez marquei encontro com um deles logo depois que o Roberto me deixou em casa. Uma vez lembro que descobri mais um dos casos dele. Ele não escondia. Vi os dois se beijando. Voltei pra casa, liguei pra um deles e trepei chorando. Destruída. Dei uma desculpa qualquer, disse que estava preocupada com o trabalho. Ele me disse que ia ficar tudo bem e me deixou dormir com ele. Eu trepava com outro chorando, mas trepava. Era a minha vingança. Eles existirem em silêncio era a minha vingança. Roberto esfregando na cara de todos os seus casos e eu, resoluta, fingindo que estava em casa trabalhando. Sempre Muita Coisa Pra Fazer. Ele nunca desconfiou. Acha que eu nunca vou largar ele por homem nenhum porque não existem homens melhores que ele. Existem. Vários. Eu continuo com ele por causa de uma dessas razões irracionais. Não faz sentido. Ele não toma cuidado. Eu tomo porque prefiro assim. Queria que ele me pegasse dando pra outro cara quando a gente marcasse um encontro, mas depois despenso. Eu não sou igual a ele. Me vingo em silêncio. Me vingo e sei. Sei que também mando bilhetes e marco encontros com homens que não são ele. Me machuco do mesmo jeito. Finjo que não. Mas agora a filha da puta tinha vindo contar. Era demais. 

Ele Te Traí Porque Te Descobriu? Agora o Roberto era a vítima. O canalha, vítima. Claro Que Não, Eu Comecei a Trair Quando Descobri A Primeira. A questão que pairava no ar era porque então eu continuava com ele? A questão era uma questão que eu não conseguia responder. Não pagava analista, embora tivesse dinheiro. Me enganava pensando que, se eu fazia a mesma coisa, então era porque devia ser assim mesmo. Tenho idade de ser assim, livre. No fim era fácil levar quando eu não ficava sabendo. A primeira eu nunca nem esqueci o nome, se chamava Rafaela. Eu vi os dois andando no shopping. Ele não sabia que eu precisaria pegar um livro pra levar pra uma aula no outro dia. Levou a menina. Eu nunca ia naquele shopping. Ela durou por muito tempo e ele nunca fez questão de esconder direito. Hoje Não Posso Porque Preciso Dormir Cedo. No outro dia a Rafaela colocava uma foto emblemática de um café com uma fatia de torta. Já teve até foto dos dois, porque esconder nunca foi lá uma preocupação do Roberto. Acho que ele nunca soube o que me machucava, ou, o mais provável: ele só pensa nele. Resolvi pensar em mim também. Arrumei uns caras pra sair. No começo pensava em levar eles nos lugares onde a gente ia, mas depois acabei bobagem. Se ele descobrisse o que ia adiantar? Nada. Uma hora eu ia me apaixonar por um dessas caras e ia largar ele. Nunca aconteceu. Ele sempre com aquele ar empoado de quem acha que nunca vai ser deixado. Era fácil antes, eu também gostava dos meus outros caras. Com cada um eu fazia uma coisa diferente. Nunca mais me perguntei porque não largava o Roberto. Ia levando assim. A vida dele não me interessava mais. Sabia de poucas coisas. Quando nos vemos é agradável. Dá pra ser assim. Até que vem um carro desgovernado e te destroça os ossos. Você Sabia Que o Roberto Vem Te Traindo? Sabia, mas eu tinha esquecido. 

Faz Tempo Tudo Isso? Acho que Faz Acho Que Sempre Foi Assim. Eu tinha relembrado. Antes a coisa corria, era mais fácil, ele era mais um no meio de vários. Agora aparece ela, me lembra de tudo isso. O filho da puta não faz questão de esconder, aparece em café com as outras. Na frente das minhas amigas. Elas vem me contar. Vem Te Traindo. Todo mundo já sabe. Eu, trouxa. Trouxa, comendo chocolates belgas. Bem sucedida, mas tristíssima. Se sujeitando às traições de um namorado. Se sujeitando. Por que? Não sabia responder. Olhava pra ela que me olhava num misto de pena e espanto e não sabia o que dizer. Eu tinha esquecido. Dele, do descaso, da mania de sempre pensar primeiro nele e nunca no fato de eu também ter um coração. Você Tem Que Entender Que A Vida É Assim, ele dizia toda vez que eu questionava qualquer coisa que seja. A Vida Não Tem Que Ser De Jeito Nenhum, eu pensava. A vida a gente faz. Não tem pré-requisitos, viver. Não existem as coisas que são assim e pronto. Talvez a morte. O resto, o resto é pura invenção. Acontece que o Roberto era fatalista e eu era cheia de invenção. Por Que Você Continua Com Ele Então? Pela primeira vez ela fazia uma pergunta que fazia sentido. Por que? Eu olhava para os destroços de tudo aquilo e também não sabia responder. A essas alturas ela já estava encharcada de pena de mim. Eu também tinha um pouco. Queria me colocar na minha frente e me estapear dizendo Você Não Precisa Disso. Não precisava que alguém viesse me dizer que ele vem me traindo. Não precisava aceitar coisa alguma porque nada tem que acontecer de jeito algum. Meu coração destroçado em cima da mesa daquele café no centro e eu pesando quando foi que eu deixei que ele me destruísse assim. Nada está bem, nunca esteve. Ele, elas, nada disso eu mereço. Não mereço as condolências da estranha que vem me dizer que O Roberto Vem Te Traindo, porque ele nem faz questão de esconder. A Vida É Assim, e se eu me machucar, eu que lide com isso. A culpa é minha. 

Por Que você Continua Com Ele Então? Eu tinha que responder a pergunta sem resposta cabível. Nenhuma resposta cabia nessa pergunta. Respondi a única coisa plausível. É Que Não Estamos Mais Juntos Você Não Ficou Sabendo? Ela me olhou com espanto. Mas É Que Eu Achei Que… Não Faz Muito Tempo Mesmo. Ela me olhou com olhos de alívio. É Que O Roberto Tem Me Traído E Eu Não Mereço Isso. Chumbo trocado também dói. Tinha cansado. A resposta da pergunta era simples: não havia porque continuar com ele. Meu coração destroçado ainda descansava em cima da mesa daquele café no centro de onde eu podia ver a cidade. Já podia me ver desmembrada em quarenta pedaços diferentes. Era como se tivesse passado um daqueles carros desgovernados que você não vê passando, só sente o impacto. Tinha sangue espalhado por todo o chão, mas eu ia sobreviver.