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12.4.14

pequena nota sobre a vida

às vezes não se pode conseguir amor e nem equilíbrio (ou pelo menos não se vislumbra nada disso num raio de, pelo menos, três meses), mas ao menos se pode ser mestre em Coetzee.


17.2.14

o amor não se acaba no espaço de tempo em que se grita gol

(escrever pra ele nesse blog é, no mínimo, irônico. mas é que sem ele tudo que me sobra é o vazio das redes - e as folhas em branco. cada um se vira com o que tem. eu continuo me virando nesse imenso espaço vazio)

O som da tevê longe, narrando o jogo do corinthians parece ser o mundo avisando em voz alta que você me deixou.

A gente passa a reparar mais nas coisas depois que as conhece, e foi depois que você se foi que tenho a impressão que todos os domingos mostram os jogos do corinthians, que todos os noticiários noticiam que eles compraram o Jadson, que todas as vezes que eu ligar o jornal alguém vai dizer alguma coisa que me lembra você. Desde que você se foi eu tenho a impressão que o mundo inteiro anda de bicicleta. Os pedreiros das obras que ficam perto do meu trabalho andam. O meu vizinho do terceiro andar, também. O rapaz com quem nunca conversei no trabalho carrega uma mochila com uma camiseta a mais pra trocar assim que chega, e guarda a bicicleta dele no posto em frente. Um dos meus amigos comprou uma bicicleta quase igual a sua, só que azul. Enquanto eu espero sentada no ponto de ônibus, nos dias de muito calor, um rapaz passa às dez pras oito subindo de bicicleta a avenida higienópolis. Todas as vezes que eu desço o ônibus que pego às seis e quinze, um moço de capacete passa de bicicleta virando a esquina, e me acena com a cabeça. Quando perco o ônibus da frente do trabalho e tenho que subir na avenida pra pegar o outro, encontro ciclistas com roupa de ciclista andando em fila. 

Quando volto de bicicleta do trabalho, pego a ciclovia e lembro do dia em que tentei voltar a andar de bicicleta pela primeira vez, e você teve que andar comigo na grama.

Também passo em frente ao banco onde nos reconciliamos umas duas vezes, e pedaladas depois passo em frente ao banco onde você me disse, cruel, que talvez nunca tivesse gostado de mim. Que não pensava em mim no percurso antes de me encontrar. Que não me imaginava como mãe dos seus filhos. Que imaginava a outra. Sempre a outra, maldita em sua presença que me enlouqueceu. Às vezes acho que você já está com ela de novo. Dói. Prefiro ser atropelada de bicicleta do que descobrir que isso aconteceu. Quando fico muito cansada, sento em um desses bancos e ouço de novo alguma coisa que você me disse em alguma dessas vezes. Refaço na minha cabeça os diálogos que deveria ter tido com você. Você não me ouve, e eu sento sozinha no banco tendo do lado a única coisa sua que sobrou comigo: a bicicleta que você passou dias reformulando pra que eu pudesse, um dia, te acompanhar nos seus rolês de bike. Cuido dela como cuido do amor que já não tenho. Cuido dela como, quem sabe, deveria ter cuidado de nós. 

Quando estaciono ela na rua, retorno ao lugar onde a deixei de maneira quase obsessiva, como um portador de toc que continua conferindo se a porta está mesmo trancada. Desço duas vezes por dia ao poste em frente ao trabalho onde a estaciono e suspiro aliviada quando percebo que ela - ao contrário do nosso amor - continua exatamente do jeito e no lugar onde a deixei. Perdi o medo de morrer ao andar com ela na rua. Talvez eu tenha perdido o medo de morrer em qualquer ocasião, por mais mórbido e terrível que isso soe. Tenho mais medo de perdê-la do que tenho de uma queda enquanto atravesso a rotatória onde ninguém tem paciência com ciclistas. Machucado por machucado, os na pele a gente cuida com remédio. As feridas da alma não saem nem com muito choro. Eu suportaria uma fratura exposta qualquer, mas não suportaria outra perda. Cuido bem para manter a bicicleta que você me deu. 

Meu fôlego continua ruim por mais que eu treine e, enquanto desço com o vento nos meus cabelos cada dia mais curtos pela descida da cascata onde várias vezes te vi, concluo que me levaria muito mais de dois ou três meses pra te acompanhar nos muitos quilômetros que você anda com naturalidade. 

Continuo detestando as subidas todas, minhas pernas não aguentam, meu corpo não aguenta e pelo menos agora eu não choro sentada em um dos bancos de madeira pensando que eu ia demorar muito pra ser mais uma menina do seu role de segunda. 

Enquanto escrevo o rádio narra a rodada de domingo, e eu me lembro dos vários domingos em que você ocupava comigo o sofá ao lado. Eu, sempre desajeitada, nunca soube muito bem te escolher os filmes certos, preparar um bom lanche ou deixar a TV desligada. Também te disse muito poucas vezes - ou quase nunca - que o simples estar do seu lado assistindo um jogo que não era do meu time me fazia uma pessoa muito próxima do completo.

Às vezes me parece que o mundo inteiro me faz lembrar você. A ausência no sofá da casa, nas quartas-feiras de futebol, nas cervejas do posto onde passo diariamente voltando do trabalho, no vale onde te vi pela última vez, nos eventos pra onde sou convidada e vejo presença confirmada dos seus amigos, no parque que evito aos sábados, porque fatalmente lembraria que foi ali que fazíamos piqueniques aos sábados, e os casais felizes me irritariam. 

Aos domingos sempre acordo me perguntando onde você pode estar, já que agora eu não te ligo mais quando acaba o meu almoço pra saber da sua programação. Nesses mesmos domingos eu não vou mais ao cinema, nem chego tonta de cerveja depois da meia noite, caindo na cama e adormecendo rápido. Faço outras coisas - e evito sempre que posso deixar a tv ligada na rodada do paulista -, mas sempre vai chegar a hora em que lembro de você. Nessas horas, tento lembrar de outra coisa, mas as outras coisas também lembram você. Você roubou meu seriado, porque todas as vezes que assisto girls me lembro de você dizendo que sou a hannah. O fórum onde baixo filmes também me lembra você, e de vez em quando espio seu perfil querendo ter alguma migalha de notícia sua, mesmo sabendo que nada sai dali. 
Nada sai de lugar nenhum, e eu sei que talvez logo eu comece a esquecer o som da sua voz, o jeito como você sorria, e até exatamente as feições do seu rosto, se eu parar de olhar as suas fotos.

No meu quarto, presentes que te dei e você deixou pra pegar outra hora, e que acabaram ficando comigo, como uma espécie de assombração que me lembra de vez em quando que eu te perdi tão rápido que não deu nem tempo de te dar essas coisas numa sacola pra que fosse você a lembrar de mim de vez em quando. Quando arrumo as gavetas encontro algumas cartas que escrevi pra te dar e não dei, por causa dessa mania que eu tenho de ter medo de dizer o que sinto. Tinha tanto medo de te amar, que amei com pé atrás e te perdi no meio dessa cidade que nem é tão grande assim.

Aos domingos enquanto o corinthians empata eu já não sei onde você está, onde você e sua bicicleta da cor da minha foram, se outra menina já está descobrindo que quando você ri formam rugas do lado do seu olho, que você ronca-e-sorri quando está feliz por estar com alguém. Não sei se outra pessoa já esteve com você em um piquenique noturno e já te viu adormecer roncando depois de beber um pouco demais. Talvez essa nova pessoa não reclame e durma bem enquanto você ronca. Talvez ela não fique roxa com as suas mordidas de amor no braço esquerdo. Talvez seja ela a te acompanhar nas trilhas que descobri com você que gosto de fazer, apesar de ser bastante desajeitada para a função.

Enquanto o corinthians empata e o neto me irrita com o falatório, eu fico pensando se já chegou a menina que anda de bicicleta e que não come carne. Se já chegou a menina que sabe te amar direito, contrastando comigo que sempre tropeço e desastro e que torço pro São Paulo. Quanto tempo demora até que você enlace outra cintura quando seu time fica perto de fazer gol? Quanto tempo demora para que você esqueça o som da minha voz e meu jeito complicado de tentar ser com você?

Sei que faço muitas perguntas que não podemos responder. Parece que esse é meu vício maior. Não consigo me viciar em nenhuma outra coisa que não seja isso: o estrago. Sua banda preferida que eu detesto cantaria essa frase "eu gosto é do estrago". Me lembro de você dizendo que eu complico e simplifico demais a vida pra querer viver qualquer coisa que seja. Complico o que é simples e quero simplificar demais o que é complicado: estar junto não é tão fácil assim.

Foi você também que me disse que eu acho que as coisas na vida acontecem num estalo de dedos. De uma hora pra outra eu ando vinte quilômetros de bicicleta, de uma hora pra outra a gente volta, e que a vida não acontece assim, no tempo do meu destempero. Te esquecer também não tem sido tão rápido quanto gostaria.

Essa noite passada sonhei que estávamos numa cachoeira. Acordei sem ter a mínima idéia de onde você estava, mas certamente não estava na cachoeira do meu sonho. Talvez acordando com alguém, enquanto eu acordo sozinha. Desde que você se foi, minha vida tem sido um eterno acordar sozinha - você bem que tinha me alertado.

Às vezes penso: será que a gente volta? A gente é tão diferente, mas será que a gente volta? Você me responde do outro lado da linha que nem existe mais que, quem sabe, em dois mil e dezesseis. A gente é tão diferente, você não vai mais me ver por aí. A gente é tão diferente, eu preciso de outra companheira. A gente é tão diferente, a gente vai acabar se esquecendo. A gente vai? Ou melhor: Eu vou? Eu queria ter certeza. 


É que o jogo do corinthians acaba, eu suspiro aliviada por um lado e por outro choro: o amor não acaba em dois tempos de quarenta e cinco. É preciso muito mais de noventa minutos pra esquecer um amor.