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25.1.11

Eu só queria dizer, obrigada.

Espio a sacada, a vida lá fora. O dia amanheceu com um gosto eterno de melancolia. Tinha sido um pouco assim ao dormir, mas existe sempre aquela esperança de que, ao acordar, tudo tenha ficado dentro de um mundo estranho feito de sonho. Mas eis que acordei de ressaca - de sentimento e de você - e não sinto vontade de comer porque estou enjoada - da vida. Um mundo tão imenso lá fora, e eu aqui, presa nesse quarto que é cheio de lembranças de você. Remexi as nossas cartas, e acho que cheguei a uma conclusão meio inevitável: eu sinto mais falta de mim do que de você. Não que eu não sinta falta de você, também. Seu perfume barato e enjoado, as roupas quase nunca combinando, a segurança em que eu sentia de andar do seu lado. Sinto falta disso sim, ultimamente tenho andando muito sozinha, tendo que tomar muita conta de mim. Você tinha sempre essa impressão de que um dia eu ia me jogar da janela, então exercia sobre mim um certo cuidado, que me fazia bem. É que você me conheceu destruindo, e destrutiva. Ciumenta, histérica, terrível. E sentiu que era a sua obrigação me livrar do meu maior mal: eu mesma.

Durante os anos que passamos juntos, houve calma. É claro que inevitavelmente às vezes eu perdia a paciência, e entrava em terríveis ataques de melancolia que você tentava curar me desviando do assunto. Desviar do assunto sempre culminava naquela ladainha bonita de "sua vida é tão maravilhosa, você tem tantos amigos" ou até um leve afago de evo que dizia "mas você é tão talentosa e inteligente". Eu achava meio absurdo o fato de você admirar uma pessoa tão descontrolada como eu. Talvez você admirasse justamente por eu ser o seu oposto. Você, sempre parado no mesmo exato lugar, poucos riscos, poucos amores, e eu sempre esperando da vida um "algo mais" que ela não podia dar, e me atropelando. Você costumava limpar com mertiolate meus atropelos, até que chegou um dia em que do seu lado eu finalmente encontrei a paz, o nirvana. Eu sinto muita falta de mim agora que estou sem você. É como se com você eu tivesse um ponto de equilíbrio. Mais ou menos como aquela criança que transmuta o comportamento porque não quer decepcionar os pais. Eu sempre tive muito medo de te decepcionar. Muito. Eu li tantos livros, vi tantos filmes, inventei tantas teorias, criei mil novas receitas. E estava leve, sabe? Leve. Fui sorrateiramente me livrando dessa urgência louca de querer aquilo que não existe, desistindo de aventuras de fim de semana e sonhando com uma casa, calma, futebol na tv aos domingos. Minha vida simples era boa. Você ouvia as minhas frustrações, cortava as asinhas da minha depressão ancestral e me fazia sorrir em meio a tardes comuns.

Depois que você se foi eu fui tomada por um eterno descontrole. Que existia, sempre existiu. Mas que você de certa forma curou. Hoje eu me vejo de novo esperando soluções imediatas, chorando de raiva a cada decepção. Às vezes comendo muito, às vezes tomando porres homéricos que me fazem esquecer até o meu nome. Figurinha decadente eu me tornei. Tão diferente daquela menina magra, sensata, leitora, interessada, viva. Ah, eu era tão viva na sua presença. De uma vivacidade que não precisava de nada, só existia. O sorriso fácil e solto, a calma, a espera, o futuro. Um futuro nem tão brilhante assim, simplista, amornado, mas com brigadeiro depois do almoço e café no fim da tarde. Longas conversas. Você me ouvindo reclamar e me achando extremamente critica, e me dando o antídoto de ver as coisas com mais calma, com mais amor, com mais tolerância. Você me ensinou a ser tão tolerante. Com as pessoas, com os livros, os filmes, as músicas. Até a minha família eu dei de amar de um jeito maior depois de ter te encontrado. Eu não bebia demais, não comia demais, não chorava demais. Nem rir, eu ria demais. Eu apenas era feliz. Tudo ali, na medida certa. E hoje eu sinto muita falta de mim.

Senti falta de mim ao dormir chorando, senti falta de mim ao me ver inventado amores, soluções simplistas, querendo fugir. Eu tinha me esquecido dessa pessoa que eu era antes de te encontrar e te perder. Esquecido da minha histeria, do meu descontrole, do meu choro infantil. Esquecido dos meus altos e baixos, da minha doação de mentira, dos meus porres. Esquecido da minha rebeldia sem causa, da minha procura sem encontro. Tanta procura sem encontro desde que você se foi, tanta perda. Essa perda de mim, do meu eixo. Fico esperando coisas que eu não quero ser, não foco, não me sinto capaz. Tenho entrado em malditos jogos de sedução, me machucado em carne viva, sangrando. Tenho jogado sal na minha própria ferida e desistindo de mim a cada dia achando que estou conseguindo soluções. Não estou nada bem, nada bem mesmo e o problema é muito menos não ter você do que eu imaginava. O problema é comigo, sou eu, é a minha destruição, é o meu problema, é o meu sintoma. Você foi por alguns anos a cura, o antídoto, o contrário que me fazia enxergar as coisas mais leves. E agora que você se foi, tudo pesado, negro, terrível. Decadente. Entrei em uma decadência sem fim, e eu que vivia reclamando de não te reconhecer mais talvez também não fosse reconhecida por você. Regredi. Empalhei. Tenho doído, tenho saído carregada dos lugares, tenho me olhado no espelho e me visto infeliz. Estou três anos lá atrás, antes de você, comigo que sempre fui a minha pior inimiga. Tem sido triste, minha vida tem estado uma bagunça sem fim, e por vezes me vejo insuportável. Insuportável pra mim, prós outros, o grande peso in e out. O mesmo peso que eu tinha quando te conheci e que você mesmo sem saber o que fazer com ele, disseminou, tornou leve, me transformou em criatura bonita.

Sabe, eu não espero que você volte. Não agora, não pra mim. Não te espero na minha vida, no meu sofá, nem nada. Nem amor, essa palavra, estou querendo distância de amor. Você parece mais centrado que eu, no momento e eu cansei de tentar achar que eu era a sua salvação, quando na verdade você foi a minha. Hoje eu enxergo isso, no meio dessa loucura toda que anda essa minha vida pesada, terrível, negra, sem perspectivas. Eu enxergo que não sou karma, não sou destino, não sou a irremediável bagunça que um dia me fizeram acreditar que eu era. Não sou, não preciso, não quero sair quebrando corações como se quebram copos, me machucando, abrindo feridas, tendo longos ataques de histeria, ciúme, as acusações colocadas sobre a mesa, exigindo tudo em troca de dar nada, absolutamente nada. Eu já tive cura, eu já fui tão melhor, tão mais viva, centrada, bonita, feliz, sorridente. Nas quartas feiras de noite, nos sábados à tarde, nas madrugadas em casa. Tão mais leve. E foi no meio de um desses ataques terríveis, que assustam e apavoram e sobra caco de vidro cortante pra tudo quanto é lado, pegando em tudo quanto é gente, que eu descobri que você foi como aquela pessoa que te ensina a andar de bicicleta. Primeiro ela vai te segurando, você cai, ela continua te segurando, você cai mais umas vezes. Até que ela resolve te soltar. Daí você cai, rala o joelho, ela te dá a mão e depois te solta de vez. Você cambaleia uma duas vezes, acha que vai morrer, acha que vai se machucar muito, mas consegue ir. Depois pega o jeito, não precisa de mais ninguém segurando. Vai sozinha, livre, leve. Eu te amei muito, mas hoje, acho que amo mais tudo aquilo que você deixou em mim, tudo aquilo que você me ensinou ser. Hoje acho que amo tanto-quanto aquela menina que nasceu do teu lado, que pode e consegue ser boa. Que se doa pelo outro, que se faz infeliz pra ver o outro sorrir. Me deu vontade de resgatar tudo isso. Mas você já me ensinou como faz, já me mostrou que eu posso. Agora eu sei, garoto. Eu tenho que ir sozinha. E vou.

23.1.11

Estala, coração de vidro quebrado.

Quando você me conheceu, ow baby, tão perdida no meio da cidade cinza, eu não achei que você seria um caminho. Tanta gente vestindo suas camisetas coloridas sem estampas, tanta gente assim moreno-claro, arisco, com medo do mundo. Tanta gente com essa mesma tristeza no cantinho dos olhos, os tênis gastos pela vida, pelo tempo, pela cidade febril. Tanta gente no mundo, andando, indo, voltando. Sempre com pressa. Tanta gente interessante a gente deve passar pela rua todo dia, ensaiar um olhar, desistir de um contato três segundos depois. Quanta gente eu já deixei passar nessa vida, podia ter deixado passar você também. Tão integrado. Calça jeans, camiseta branca, tênis preto, mochila nas costas, cara de quem está atrasado para um trabalho que não gosta, ouvindo música que antes te deixava em catarse e hoje parece música ambiente. O automático temível, baby. O automático temível podia ter-nos sabotado o encontro. Meu olhar perdido, sempre, desavisado. Os passos tontos e tortos, sempre batendo os dedos nas esquinas (da rua e da vida). Podia não ter te visto, ou ter te visto e te esquecido. Não ter notado o botton do meu cantor preferido atrás da sua mochila velha e não ter cantarolado aquele verso com gosto de esperança, encontro e acaso que fez você sorrir. Hoje eu queria, baby. Queria ter deixado o desespero pra lá, essa minha vontade maluca de procurar identificação em tudo. Nos livros, nas placas de trânsito, nos carros parados na rua, nas atrizes decadentes de novela das seis. Queria não ter tido a esperança de me identificar em você assim, tão espelho-inverso. Mas eu, bicho desesperado a procura de amor (sempre ele, o amor), não pude evitar o encantamento, não pude evitar a palavra ensaiada, não pude evitar o sorriso de lado e quando vi já tinha te cantarolado os versos. Tão batidos os versos. Tão meu, o sentimento de despertencimento do mundo que é ao mesmo tempo universal. E tudo tão certo, o tempo exato. A mulher deixou o lugar vago, você me olhou e disse "senta, pode sentar" e eu retruquei ensaiadamente com um "obrigada, to mesmo cansada e pensar que 'once-upon-a-time-you-felt-so-fine', é doído" e foi ali que todo o descompasso começou. Você me sorriu, natural, solto, alegre. Me perguntou "Bob Dylan né?" e eu respondi "sim, Bob Dylan é deus, a humanidade só encena as histórias que ele criou." E tudo deu margem ao bonito e longo diálogo. Você sentou do meu lado, pediu um cigarro. Eu te disse:

- Não se pode fumar dentro dos veículos automotores mais. Nunca se pôde. Nem dentro dos bares, das casas de show. O mundo tá free tabaco.
- Era pra mais tarde. Gosto de, você sabe, andar ouvindo música e derramando fumaça pra fora. Você fuma?
- Não, tomo café. Eu gosto de, você sabe, tomar café ouvindo música e enfiando cafeína pra dentro.
- Vícios.
- Vícios, concordei.

O ônibus deu quatro ou cinco chacoalhadas, ficou um silêncio enorme que pairava. Eu olhando as minhas unhas, os esmaltes descascados, uma mistura entre um vermelho barato e um azul clarinho que não tinha saído direito da ultima esmaltação de unhas. "ando num descaso enorme da vida", pensei. Os esmaltes craquelados, a vida quebrando. As unhas se roendo. Tudo errado, meu deus. Tudo errado. Me perdi olhando o caminho. As àrvores e tal, as nuvens e tal. O cinza, sempre o cinza de são paulo as seis da tarde e quando alguma coisa na minha cabeça ultrapassava a poluição e chegava no azul, você me perguntou.

- Você desce aonde?
- Há mil léguas daqui, naquela padaria bonitinha de parede laranja, sabe? E você?
- Três mil léguas daqui, e três pontos depois.
- Não é muito perto.
- Não é muito longe.
- Tudo depende do referencial adotado.
- Você parece, assim, pessimista.
- Eu sou assim, tristonha.
- Você parece bem conservada pra uma alma velha e cansada.
- A maquiagem nasceu pra disfarçar os rostos vermelhos e inchados de lágrima e hematoma, rapaz.
- A música também. Pra disfarçar as almas vermelhas e inchadas de lágrima e hematoma.
- A arte, talvez.
- A arte sim, pra disfarçar a vida inchada de lágrima e hematoma.

Te achei bonito, poético, triste. Bonito e sincero demais pra usar aquela camiseta branca com calça jeans e tênis. Perfeito demais pra ser deixado pra trás como um doce daqueles que a gente vê e acha bonito, quer levar, mas parecem extremamente caros. Eu vejo muitos desses na padaria bonitinha laranjinha do ponto em que desço. Lindas tortas de chocolate, bombons de morango. Lindos, poéticos, doces. Mas caros demais para serem levados pra casa em troca de um pouco de prazer. Devia ter te achado caro demais. Devia sim, mas continuei. Porque sou bicho passional, sangüíneo, e dobro frente a qualquer animal oposto que pareça ser caça. Caça suculenta e saciadora do apetite voraz. O apetite voraz da alma, o amor. E retruquei.

- É um bom jeito de pensar, você faz arte?
- Não, ciência da computação.
- Muito número?
- Muita impessoalidade. Pouquíssimo hematoma doído. Distância da vida, a tela fria dos computadores. E você, faz arte?
- Agência de publicidade.
- Mercadológico?
- Pseudo arte vendida barata demais pra ser catartica, entende?
- Mas passa na televisão.
- Tentativa frustrada de vender felicidade vendendo buraco que não encaixa o tempo todo, sabe? Quebra-cabeça faltando peça, é isso que a propaganda vende.
- E continua nisso por quê?
- Arte abre um buraco tão enorme na alma da gente que inflama. A publicidade é meu contato com a realidade. Cruel, mas realidade.
- É comò se voce vendesse caixinhas de sonhos que nunca vão virar sonhos de verdade?
- É como se eu vendesse caixinhas vazias com rótulos a preencher. As pessoas vêem um carro e fazem dele uma caixinha escrito "felicidade", "sucesso", "amor". A caixa é vazia na verdade, mas elas colocam essas etiquetinhas e acreditam nisso até abrirem a caixa e verem que lá dentro não tem nada.
- Você tem um jeito estranho de falar sobre as coisas. Metáfora, poesia. Escreve?
- O tempo todo, mesmo quando não estou escrevendo.
- Redatora?
- Escrevo os textos bonitos das propagandas de banco e não acredito em felicidade.
- Cruel, perigosa. Batom vermelho, cabelo liso. Não quero me meter com você.
- Mas vai. Já está metido e não sabe.

Você me sorriu. Com gosto. Todos os dentes. E na minha experiência de caça eu sabia: a presa estava volúvel. Dois passos, o ataque cruel, o bote certeiro, a morte. A morte do orgulho e da resistência para que se chegue a carne. A carne vermelha, que pulsa, que vibra. Coração. Paixão. Amor vem depois, ou não vem nunca mais. Você me olhou, sorriu, respondeu.

- Vai ver estou.
- Desculpa, às vezes eu solto essas respostas prontas e tudo mais, oferecidíssima, estranho. Te assustei?
- Desde o primeiro momento. Ou você não sabe que você é daquelas que assustam mesmo quando caladas?
- Não tenho essa exata noção não - menti. De sorriso solto, menti verdadeiramente.
- Olha, voce desce no próximo né?
- Desço. Encaro a padaria, não compro os doces que quero, volto pra casa, trabalho e me identifico com um personagem de novela aqui e ali.
- As perigosas.
- As mais inofensivas.
- As que parecem mais inofensivas.

O ônibus deu mais duas chacoalhadas, eu já gostava de você, do seu papo, do seu jeito estranho. Gostava mais ainda da sua vulnerabilidade frente à situação. Me respondia galante, flertava de volta, tinha medo daquilo e admitia. Teu olho não tremia, encarava dentro enquanto você fingia uma timidez com seus pés inquietos. Um menino bonito na palma da minha mão, Uma menina frágil em fantasia de forte na palma da sua e você sem saber o que fazer. É por não saberem como me pegar na mão que resolvo pegar primeiro. Qualquer movimento mais brusco pode - e vai - quebrar meu coração feito de cristal fino de taça de chapangne francesa. Coração fraco de casquinha de ovo é o que eu tenho. Não encosta não, que quebra, moço. Deixa que eu encosto no seu, pego devagarinho, guardo numa caixinha e depois jogo fora. Jogo fora antes que sua mão saia de dentro do seu peito rumo a tocar o meu coração de casquinha de ovo com as pontinhas dos dedos que seja. Sou fraca, sensível, toda doída e quebro. Só encosto. Não deixo encostarem em mim, e nunca-em-hipótese-alguma tocarem por dentro.

- Eu desço aqui, eu acho que isso significa adeus, certo?
- Eu desço com você, continuo à pé depois. Não é muito perto, mas.
- Não é muito longe.
- Talvez voce devessse comprar um desses doces bonitos na padaria, mudança de rotina, sabe?
- Talvez eu devesse me ater aquilo que eu conheço.
- Eu te pago um.
- Acho que é prudente aceitar a gentileza, mas você escolhe.
- Bomba de chocolate. Chocolate amargo por cima, doce por dentro. Lindíssima.
- Faz parte do seu repertório galantear as moçoilas supondo personalidades através de doces?
- Não fazia, até agora. Acertei?
- Isso é o tipo de coisa que se descobre, não se fala. Senão vem o desencanto.
- Você costuma ser ensaiada demais, menina.

Você me deu o doce, que eu fui comendo na rua, tal criança lombriguenta, me melando com creme no nariz que você limpava a cada instante, como pai que cuida de filha espoleta. Mas esquece o édipo, freud, era só, sabe, encantamento. Tal coisa bonita que encanta e você de tão querendo que seja, toca como se fosse sua. Te lambuzei de creme uma vez, na ponta no nariz. Típica e previsível como devia de ser, e chegamos na porta do meu prédio, onde eu não tinha idéia que começaria uma história bonita, de príncipes e princesas, de guerras e cruzadas, de amor e desencanto, na porta que tinha gosto apenas de desalento. Te faço a pergunta crucial, charmosa e espero pela resposta afirmativa como quem espera o nome sendo chamado na lista do vestibular. Conquista. Armadilha da caça. A rede posta. Só te falta cair

- Você quer subir, conversar, tomar um café?
- Não sei se devo.
- Eu não sei se devo ter te convidado também, mas convidei.
- Você só faz o que você quer, menina.
- Sou atiradinha?
- Não, é autêntica. De um jeito, ai, de um jeito terrível.
- Então sobe?
- Subo sim.

Subimos nos olhando fixo no cubículo do elevador. Entrei na minha casa, os sofás cor de vinho, as paredes bege. Tudo tão sem graça, tudo sem ter a minha cara. Te ofereci uma cerveja, você disse que preferia refrigerante. Eu te perguntei se era medo e você só me disse que a embriaguez toda vinha de mim. Te dei o copo, sentei do teu lado. Você me contou coisas sobre a sua vida, seus números, sua falta de perspectiva. Eu te mostrei histórias e rabiscos dos sonhos que inventei para que comprassem. Você me olhava fundo, encantado, e eu tinha medo dos seus olhos sinceros. Eu te contava tanta coisa, tanta coisa, tanta coisa. Tanta conversa, tanto despejo de história de energia que quando eu dei por mim estávamos feito bichos no chão da sala, em habitat natural e eu chorava encostada no teu peito, tomando refrigerante no gargalo, te abrindo todas as portas do meu coração. Te dizendo "ow, baby, se você soubesse o quanto a vida me dói" e você dizia que a sua vida doía também, tanto, que às vezes não dava conta de dar o último respiro e acendia um cigarrro. Depois pensava baixinho "a falta de fôlego vem do pulmão, e não da alma" e baforava fumaça pra fora se livrando de toda a impureza do mundo, da vida, do caos. Você empestiava a minha sala de fumaça, eu molhava sua camiseta branca de lágrimas e soluços e você me olhou baixinho e disse:

- Você é tão linda, menina. E tão menina, menina.

E meu coração de casca de ovo estava prestes a abrir uma rachadura, e foi quando eu te agarrei por impulso e te beijei no ato, no chão da minha sala, com as lágrimas caindo, com gosto de sal. E tinha tanta vida naquele beijo, tanta carga de emoção que eu não ligava pro meu coração de tacinha de cristal prestes a quebrar, e alguma coisa dentro de mim esqueceu que você tinha aparecido na minha vida naquele dia, tanto fazem as datas, você já sabia mais de mim naquelas sete horas do que todas as pessoas que conviviam comigo há sete anos, então eu era mais sua do que de qualquer outra pessoa no mundo. E nos beijamos mais inúmeras vezes, e no meio dos beijos soltávamos mais segredos e no intervalos disso tudo você me olhava lá no fundo dos olhos como se estivesse enxergando por dentro, e não houve nada mais do que beijos, só os beijos e os segredos, tantos segredos perdidos naquela sala de quitinete no meio do centro. É que não precisava de encontro de corpo, corpo-dentro-de-corpo, porque tinha um encontro de alma tão mais profundo que dormimos entrelaçados como bichos, você de calça jeans e camiseta branca, eu com meu vestido listrado. Sem sexo. Mas com um toque profundo de alma que transcende o encontro do corpo.

Você acordou, me preparou um café. Me beijou na testa, me deu uma flor roubada do hall do prédio. Me abraçou por trás, me beijou o rosto, e sussurou no meu ouvido baixinho "você é uma bomba recheada de mel, de tão-tão doce por dentro". Ali eu senti você tocar meu coração de casquinha de ovo com a ponta dos dedos. Foi quando você sentou na minha frente, sério e disse:

- Olha menina, lá fora dessas paredes beges tem uma vida, e sabe, a vida é louca e no meio dessa loucura toda eu te encontrei, e você é assim, doce e eu fiquei assim, volúvel, bichinho frágil na tua mão, menina. Tudo tão lindo, tão filme, e eu queria tanto não ter que te dizer "it-ain't-me-baby-it-ain't-me-you're-looking-for" que eu resolvi esquecer de tudo, mas lá embaixo, três pontos depois tem uma outra mulher esperando por mim. Nem tão doce, nem tão incrível, que não costuma aceitar rosas roubadas, que nunca choraria molhando a minha camiseta branca. Que nunca me confessou segredos desses seus, que eu nem sei se a vida dela dói. Mas ela existe. E talvez esteja me esperando pro café. E na mão direita dela, tem uma aliança marcada pra passar pra mão esquerda daqui há exatos dois meses. E eu podia te prometer, e eu devia te prometer que eu vou ficar aqui com você pra sempre. Mas eu sou fraco, menina. Sou fraco. Eu não quero te machucar, eu só espero que você não sofra tanto quanto eu caso eu resolva não voltar nunca-mais.

E foi chorando molhando a sua camiseta branca que eu retruquei.

- Eu soube desde o ínicio que procurar felicidade não era o seu forte.
- Soube?
- Soube. Teus números, tua falta de hematomas, tua praticidade. Tua poesia perdida, sua tristeza. Você me doeu tanto no meio dessa sua infelicidade que eu quase me achei feliz. Porque eu ao menos estou procurando, sabe? mesmo que não exista eu ralo o joelho todo dia a procura de ser feliz. Tem estoques de corretivos e batons vermelhos naquele armário ali pra maquiar a minha cara de dor a cada vez que uma topada como você aparece na minha vida. Tem salto alto, tem vestido curto, tem frase ensaiada. Mas no fundo, no fundo eu só espero que alguém toque meu coração frágil com a ponta dos dedos, e foi a ponta dos seus dedos que eu senti chegar. Depois de tanto tempo, tanta luta, tanto hematoma. Não tem maquiagem pra você, nem corretivo não. Você que salte na minha dor, porque você precisa mergulhar. Você que viva, saindo daquela porta deixando um coração de cristal de taça barata quebrado pra nunca mais voltar. Você que volte pra sua aliança, pra sua praticidade, pro seu compromisso mas volte sabendo que felicidade, meu amor, felicidade a gente não encontra sempre não. A gente vive maquiado o tempo todo, mas de cara limpa tem um ou dois caras que saem todo dia. Felizes mesmo. Felizes como eu e você quando dormimos no chão dessa sala bege, se ferrando pra vida lá fora. Agora se você prefere não enxergar, eu não ligo. Vai doer, mas eu vou sarar, vou curar o hematoma da cara, da alma e do coração. Mas fica sabendo que uma vez que a gente quebra uma taça com vinho dentro, e por vinho entenda, amor, porque isso que você sentiu aqui hoje é a-mor, pode até se salvar um pedaço da taça. Mas esse vinho que derramou, esse vinho com caco de vidro não dá pra beber nunca mais.

Foi quando você começou a molhar meu vestido listado. E eu vi nos seus olhos vermelhos o menino frágil com quem eu tinha me metido. E eu te disse "vai, vai que meu coração de vidro quebrado ainda tem jeito" e você me sorriu dizendo "mas o meu só bate embaixo de paredes beges". E saiu pela minha porta, depois do beijo mais cheio de amor já estudado pela humanidade, me dizendo "menina, você é doce, menina, você é amor, eu volto pra você. Eu juro que volto". E eu acreditando em você, mas morrendo de medo da vida fora das paredes beges, do tapete empoeirado, do sofá vinho. Morrendo de medo da sua vida longe do meu vestido listrado. Porque a vida lá fora, meu amor, é pra gente grande e você era tão menino na minha mão que sabe-se lá se você tem dessas forças que precisam os homens. Te mandei um beijo da janela, te gritei alto "vai, mas volta pra mim, volta" e senti pela primeira vez meu coração de vidro quebrado partir de tal maneira que soube que só a ponta desses teus dedos leves que o tocou seria capaz de consertar.

16.1.11

Sugar, come on honey honey.

Honey,
(I need you! I need a hug please -please)


Oh, honey, se você soubesse o quanto tudo é terrível por aqui - ou anda terrível, mas é que eu tomo tudo isso que eu vou te contar agora como um caminho sem volta, um karma do existir, não cabem os estados passageiros, cabe apenas o verbo conjugado: ser - talvez você viria correndo me dar um daqueles abraços longos dizendo "calma, babe, vai tudo ficar bem, vai tudo ficar muito muito bem" me olhando com aquele semblante de quem sente pena mas não quer dizer. As pessoas me olham e continuam me achando tão forte, tão-tão, essas coisas no aumentativo que elas dizem de mim - ou no superlativo, por terem pegado meus vícios de linguagem - "Lígia, você anda fortíssima, anda lindíssima, anda estilosíssima" e eu tenho vontade de revidar "olha, meu bem, a única coisa que existe aqui é eu sendo, isso mesmo sen-do tristíssima.", mas não iam entender né honey? Iam achar que eu estou fazendo graça. Só você sabe que eu sou triste, me abraça, me faz café, me faz cafuné e me bota pra dormir. A vida tem sido difícil desde que você partiu pra "deus-sabe-quando", é difícil sobreviver sem ter meu irmão aqui, que caramba, a única pessoa no mundo inteiro com quem eu consigo manter uma relação de amor pura, verdadeira, pedaço do meu sangue. Também acho que só sei dividir tudo isso com você porque já dividimos a barriga, que coisa louca isso, comemos do mesmo cordão umbilical, fomos gerados no mesmo momento de amor. Deve ser por isso que eu tenho tanto amor dentro de mim - e você também, honey, você é a própria definição do verbo amar - porque fomos gerados de um amor tão tão imenso que tinha que ser dividido em dois.

Sabe, esses dias estava pensando na mamãe e no papai, como se amam aqueles dois. E que karma ter nascido filha gêmea de um irmão brilhantíssimo, num casamento sem nenhum defeitinho que seja. O pai tão atencioso, a mãe tão prestativa ao mesmo tempo. Se doando tanto um pro outro, tanto amor, tanto amor. Lembrei com uma certa saudades do pai levando a gente pro jogo do palmeiras, você odiando tudo um pouquinho e eu tomando aquele time como se fosse a minha vida, de paixão e sangue - como tudo que eu faço. Mas ai, honey, tá tudo tão escuro aqui. Sabes que eu estou cansada, estou esgotada, minha vida tá numa encruzilhada do tamanho do caminho que me leva daqui de São Paulo até Paris (onde você está belo e formoso, com meus sobrinhos, ai, com família linda, manda beijo!). Até curso de DJ eu fiz pra largar. Agora fico aqui sentada na sala, tendo que traduzir esses livros terríveis, esses textos judiciais. Não cai nada bom na minha mão pra ler. O que tá acontecendo com o mundo, hein honey? Me deu uma vontade louca que chegasse aqui em casa um daqueles livros que mudam a vida da gente, mas acho que todos os John Fantes morreram num desastre em 1933 (ainda sou boa nas referências literárias). Mas sei lá, de repente tento aí um curso de culinária, de paisagismo, de cinema. Você sabe, ainda não me encontrei na vida. Pretensões literárias sempre. É, eu sei, honey, "você deveria mandar até os bilhetes que você escrevia no guardanapo pra mim pra uma editora porque é ouro". Mas você sabe que eu espero uma coisa maior que isso, você sabe. Eu ainda vou conseguir. Mas no meio tempo preciso arrumar dinheiro pra pagar as contas, a internetê, minha conta de celular altíssima, minhas roupas, meus livros, meus vinis, e as cervejas e os vinhos estocados na geladeira (tô cada dia mais alcoólatra, honey. tô precisando de companhia pra ver se largo dos braços da cerveja). Tenho caminhado bastante, pra perder a barriga. Dei de pedalar três vezes por semana, voltei pra natação. Tô saudável, tô magrinha e tô gostosa (me apresenta pra esses franceses bonitos seus amigos quando eu for te visitar). Ai honey, mas tô tão doída. Te escrevi pra falar isso. Porque se fosse pra conversar você sabe que eu prefiro mil vezes a tua voz, e você sorrindo alto com as minhas trapalhadas do mundo. Mas pra falar de dor, só sei escrever e você bem sabe.

Parei pra pensar na minha vida. E tem todo esse descontrole profissional por aí e tudo mais, mas no fundo eu sou bem sucedidazinha. Não gosto de admitir que esse é meu sucesso, mas traduzo mil livros e ainda dou conta de umas ocupações paralelas aqui e ali (tenho feito umas fotos ótimas, saíram em revista e tudo, depois te mando). Só que a vida sentimental, honey? Você fala da minha personalidade histriônica, da minha histeria. Tudo tão certinho né, tão casado, eu entendo tudo que eu fiz, tudo por causa de você (que não devia analisar a própria família, mas o fez, e ainda-bem), mas eu cansei tanto. Tanto-tanto. Ai meu deus que horror que anda a minha vida nesses últimos tempos. Boto meu vestido florido, a bolsinha de laço de lado, me super-produzo e vou quebrar corações. Meu deus, honey, quanta gente mais eu andei desiludindo nesses tempos. E virou desilusão mesmo, eu nem acredito mais que amo a pessoa nem nada. Vou lá, faço meu joguinho - que você bem conhece - a aproximação, o sorrisinho de lado, as covinhas aparecendo, o melhor vestido, o melhor sorriso, o melhor argumento. Sempre dá certo. Tanta gente que se doou tanto pra mim e eu não dando nem um pedacinhozinho do que eu tinha pra oferecer, sabe? Hoje isso me doeu tanto. Fiquei aqui ouvindo chico buarque e querendo tanto ser amada. Mas de um tal jeito, sabe? Amor mesmo. Alguém que entendesse minhas limitações, essas minhas inseguranças, até a minha histeria. Me pegasse pelo braço e me dissesse que ia me ensinar a ser, no tempo que fosse. Mas sou tão arisca também né, honey? você que diz. Diz que eu pareço um gatinho daqueles que quando a gente tenta acarinhar sai correndo. Tenho saído correndo de um jeito que tem despedaçado a vida de tenta gente. Me dá uma dor. Hoje doeu tanto. Será que existe? Será que existe alguém que vai ter paciência o suficiente pra entender que tudo isso é um sintoma terrível dessa menina que no fundo tem medo de amar e depois deixar de ser amada? Tanto medo de ser deixada que deixo primeiro, tanto medo de deixar de amar que nem tanto começar a. Eu sei de tudo isso, mas continuo insistindo, rindo. Essas minhas manias suicidas de estragar tudo aquilo que podia ser bonito e transformar em literatura. De amar fracionado, de pouquinho, dando pouco pra receber o dobro e depois não querer mais nada. Ah, honey, queria tanto alguém comigo que fosse pra sempre, sabe? Aqui, fazendo café, pra eu deixar bilhetinho no guardanapo. Mas queria eu também não acordar um dia as dez da noite e dizer "olha, eu não te amo mais" e virar pro lado e continuar dormindo. Essa frieza, esse desprendimento, esse desapego. Ai, honey, não quero mais. Não-que-ro-ma-is. E nessa ânsia tenho achado que estou apaixonada e depois percebendo que não era nem paixonitezinha, nem afeto, nem nada. É só mais uma história bonita que eu inventei, floreei, mas sentimento mesmo. Cadê o sentimento, honey? Cadê o amor? Aquele que eu sinto, não o que eu escrevo. Quero sentir também. Quero mudar pra paris e ter uma vidinha pacata com dois filhos lindos que nem o seus. Quero amar igual o pai e a mãe, mas isso foi feito pra mim, honey? Ou vocês deixaram toda essa carga de vida feliz só pra vocês e esqueceram de me dar? Porque eu acho que esqueceram, não tem amor na minha forma não. Só essa coisa terrível, egoísta, de gostar esperando algo em troca, afago de ego. Pura destruição. Ah, não agüento mais. Me envolver com gente tão linda e saber que na verdade eu teria que dizer "Não me ama não, eu sou problema. Eu sou problema". Mas preciso tanto me sentir amada que esqueço, deixo me amarem e depois destruo porque não sei amar recíproco. Só sei receber, dar eu não sei. Por que, honey? Por que? Me explica, me salva disso, me diz que tem jeito, que eu vou amar alguém sim. Que vai ser pra sempre. Que eu vou olhar no olho dele depois de mil anos e conseguir enxergar mais amor do que enxerguei no dia em que a gente se conheceu. Vou ter dois filhos lindos feitos do mais profundo amor, feito eu e você.

Tô sem esperanças, honey. Acabou tudo, sumiu, secou. Vejo amor e digo que não é pra mim. Porque eu não sei amar. Não sei, não sei me desprender de mim mesma, não sei amar mais do que eu me amo. Não sei. Eu só sei amar você, o pai e a mãe. Eu amo vocês tanto, tão puro. Mas com o resto das pessoas mesmo o amor puro tem esse meu ego terrível entrando no meio, essa insegurança, essa necessidade de afirmação. Ser a mais bonita, a mais querida, a mais engraçada, a mais talentosa. Não tô dando conta mais. Quero sossegar, sentar num banquinho, tomar sorvete de flocos encostada no ombro de alguém e esperar o desprendimento no meio do amor. Sabe como? Essas coisas bonitas que você diz que existem, de olhar no olho do outro e enxergar o futuro, esperar que o outro seja tão ou mais feliz que você, querer arrancar um pedaço do teu braço só pra não ver a pessoa chorar. Ai, sabe? esse amor que cantam, que pintam, que escrevem (que eu mesma escrevo, mas nunca senti). Quero isso, honey, quero me doar, quero deixar de ser assim, tão histriônica, tão terrível. Não consigo mais, me dói. Me dói respirar. Me dói existir e saber que eu vou me envolver com uma pessoa, entre na casa dela com esperanças de montar ali o meu lar e no fim sair destruindo os copos, os pratos e o coração da pessoa que me deu tanto (porque sempre me dão tanto, honey, perece até irônico). Mas parece tão impossível. Hoje pareceu. Reli as mensagens no meu celular, os e-mails, as cartas. Até carta tem, umas cartas bonitas, bem escritas. Não literatura assim, mas sabe? sincero. A pessoa querendo dizer cada palavra que colocou ali e me senti uma víbora. Enorme. Cobra que finge que não é venenosa pra depois se preparar e dar o bote que mata a vítima em uma picada. Guardar a pessoa no estômago quentinho pra depois deglutir. Fazer morrer no meio do ácido. Parece que a minha vida é assim. Eu sei, eu sei que eu estou exagerando um pouco, floreando aqui e ali. Você sa-be que até carta minha vira um texto bonito porque eu tenho que ler e sentir orgulho, o ego, sempre o e-go. Mas eu tô sendo sincera, honey. Tô sim. Eu sei que a minha sinceridade vai até a página dois, e o resto do livro da minha vida é toda uma história imensa cheia de mentirinhas, Antes eram brancas, amenas, mas agora eu entrei numa via-crúcis tão terrível que nem sei. Destruição minha, do outro, puro jogo de conquista. Pareço um carrinho em cima da montanha russa completamente desgovernado. Prestes a descarrilhar no meio do loop e morrer ali mesmo. Mas antes fosse morte, honey. Antes fosse. É só um câncer que vai deteriorando o coração aos poucos, pedacinho por pedacinho. Depois torna o órgão inutilizado e a gente morre. Porque deve ser uma coisa bem perto da morte esse não amar. Tenho ficado sem dormir noites e noites pensando como eu faço pra ser melhor, pra sair dessa invenção toda que eu criei. Tenho tanto medo de não saber amar ninguém de verdade e vida toda, só amar inventado. Queria morrer de amor, mesmo que fosse pra sofrer, não dar certo ou algo do tipo. Só pra esgotar as possibilidades, pra poder dizer: a-mei. E depois que seja, tem gente que nasce pra ser solteiro mesmo, pra dar errado. Ia aí viver de irmã de psicólogo super bem sucedido nessa Paris maravilhosa. Mas com amor nas costas, com gosto na boca de ter vivido e me entregado. E parece tão fácil olhando assim. Tanta gente amando tanto a minha volta, sofrendo horrores, amando sem ser amado. E eu dando nome de amor àquilo que só alimenta meu pobre ego que necessita de atenção inveterada.

Ah, honey, acho que vou terminar as pendências, comprar umas passagens e ir pra paris te visitar de vez. Tô precisada de saber que eu sei amar alguma coisa que não seja eu mesma. Mesmo que seja meu irmão, mesmo que seja porque é meu sangue e porque eu me reconheço em você. Você me busca no aeroporto com aquele sorriso enorme de satisfação em me ver, me mostra uns lugares bonitos, eu choro no teu ombro no meio do parque, sofrida como só eu posso ser e você me diz aquelas coisas maravilhosas. Que me fazem acreditar em mim de novo, sabe? que você sempre diz. Tem até um bilhete seu aqui, tão lindo que diz "Pára, babe. Você parece que não sabe o quanto é linda, o quanto é capaz, o quando é talentosa. O quanto é amor. Você é amor sim. Cada coisa maravilhosa que você já fez pelos outros. E não importa se é pra se sentir querida ou não. Você sabe ser boa, você sabe ser linda, você sabe amar sim. Você não me ama? ama sim. E se me ama pode amar o mundo. O mundo você já ama. Agora trata de amar uma pessoa só, tenta se jogar, você consegue sim, claro que consegue. Vai amar demais ainda, vou ser padrinho do casamento mais não-convencional do mundo inteiro, não vou? vou ver minha irmã sentada na sala no domingo assistindo DVD com o marido, e feliz. Você vai vir aqui me visitar com ele, depois com a família. Tem cura sim, babe, claro que tem. Tem amor dentro de você, é só saber botar pra fora (e por inteiro). Eu te amo mais do que qualquer pessoa nesse mundo. E você vai encontrar alguém que te ame todo esse tanto e mais um pouco. E você vai amar todo esse tanto e mais um pouco. Vai sim, não se esquece disso nunca babe, não se esquece". Tem me dado força isso. É claro que eu leio e choro duzentos litros, mas me dá uma sensaçãozinha que eu sou capaz. É que no meio dessa loucura, dessa histeria, dessa solidão (tenho podido ouvir os meus próprios passos nessa casa, de tanta - mas os amigos continuam lindos) eu só quero ser normal. Tanta gente querendo ser como eu (mais desprendida, menos apaixonada) e eu só querendo ser normal. Cinema de mão dada no domingo, doação completa, torrada com manteiga no café, surpresa de aniversário, TV no sofá com peito pra encostar. E sem machucar mais ninguém. Só quero a beleza de amar e ser amada do jeito puro que tem que ser. Estou cansada de desvirtuar a palavra amor. Cansei. Você me disse uma vez que o admitir é o primeiro passo pra cura. Acho que vou chegar lá né, honey? Vou, sim. Devo bater com a cara na parede mais umas três vezes mas tô tentando não ser mais destrutiva, tô sim. Acho que vou aposentar o vestido preto, o batom vermelho. Será que me mostrar de cara lavada pra alguém não vai ser muita dor? Mas sem cair e levantar a gente não aprende nem a andar de bicicleta (e quanto tombo eu levei!). Só não quero mais doer essa dor de não amar ninguém. Se for pra doer que seja por amar demais e depois despejar tudo em literatura. E decidi honey, eu quero isso. Quero sim. E vou. Agora faz uma reza bem bonita pra tua irmã te ligar (porque pra coisa feliz eu ligo gritando) contando que está amando mais do que cabe nela, e apesar do frio de montanha russa que amar dá, que ela está feliz como nunca antes visto. Com aquele sorriso sincero que só você conhece. Com aquele amor que eu nunca senti antes - mas vou, vou sim.

Ow, honey. Torce por mim, me manda uns pontinhos de amor sincero de paris. Pega na minha mão e diz que vai ficar tudo bem, igual você fazia quando eu desatava num drama imenso porque ralei o joelho. Diz que meu medo de amar é hipocondria, é sintoma inventado. E que não vai doer. Não vai doer né? Eu sei que não vai. Eu já consigo ouvir você me botando no colo e dizendo "não vai doer, babe, não vai doer". Que nem quando eu achava que minha dor de garganta era uma doença terrível que ia me fazer morrer. Eu só queria que você soubesse que é esse amor imenso que nos fez que me dá força pra continuar, irmão. Se eu sou capaz de amar alguém como eu te amo, eu me sinto capaz de amar. Agora eu te juro, te mando umas fotos do meu futuro amor e escrevo atrás "tô amando, honey, tô amando demais". E a gente sorri. Me dá a tua mão, me ajuda a dar o primeiro passo. Foi você, prodígio, que me ensinou a andar, agora me dá tua mão de novo que eu juro, eu juro que eu aprendo a ser feliz. Mesmo que seja tropeçando um pouco. Step by step.

Honey, te amo de um tanto que vem de são paulo e chega até paris rapidinho, sem nem fazer curva,
Sua irmã,

Lígia.

9.1.11

O amor não existe.

Era domingo, era tedioso, modorrento - e doía. Não porque todos os domingos costumam doer de alguma maneira - todo fim de ciclo dói, pontudo - mas porque sentia uma dor que era mais que dor, e virou angústia. Virou angústia, numa terça, talvez numa quarta e ela nem sentiu porque já tinha se acostumado com tudo isso que as pessoas costumam não suportar: a angústia, o vazio, a solidão. Era entusiasta da solidão. Vez ou outra pegava a bolsa vermelha e entrava no carro e ia dirigindo pra lugar nenhum. Só ela, e a música. Nunca ansiava chegar a um lugar específico, porque sua vida era um eterno andar sem saber pra onde, nem porquê. Às vezes encontrava um campo com trigos no meio do caminho e achava por bem ficar ali pensando na vida. Às vezes parava o carro e ia andar na chuva sem guarda chuva e às vezes sentia uma vontade infantil de parar pra tomar sorvete, e parava. Deu-se essa mania estranha de fazer aquilo que bem entendesse, desde a mais tenra infância. Coisa que era ao mesmo tempo liberdade e solidão. Porque ser livre é ser um tanto sozinho, também.

Mas naquele domingo, em específico, ser sozinha deu angústia. Sentou-se no parapeito da sacada então, observando os carros e as poucas pessoas que iam e voltavam e avistava coisas como famílias aparentemente felizes e casais andando de mãos dadas passeando com um cachorro. A normalidade da vida cotidiana que cansa e encanta ao mesmo tempo. No rádio o pink floyd gritava "wish you were here" e ela não conseguia pensar em nenhum ser humano vivo que ela quisesse que dividisse a sacada com ela. Não naquele momento. Depois veio o Bob dylan gritando rouco e tresloucado que "ain't me your looking for" e não houveram dedos suficientes pra contar nas mãos quantas vezes tinha falado - ou pelo menos pensado em falar - aquilo para outra pessoa. Nunca era ela. Mesmo quando era, nunca era ela. Porque é muita fantasia pra uma pessoa só. É muita mania, muita histeria, muita necessidade de mudança. Não dá pra agüentar. "É que um dia eu estou sentada num café dizendo 'você-é-o-amor-da-minha-vida' e no outro eu digo 'não-existe-ninguém-mais-errado-pra-casar-que-esse-cara'", pensou. E é assim, não tinha jeito. Amor era coisa de gente crescida demais, convicta demais, que se doava demais. Não coisa pra uma menina que não sabe decidir nem que tênis vai colocar com a roupa que escolheu. "De repente ninguém sabe mesmo de amor", refletiu. E podia bem ser que seja. Mesmo aqueles que sabem, não sabem.

Mas olhava prós casais felizes de mãos dadas passeando no domingo e tinha angústia. Porque sabia que tinha passado, naqueles vinte e poucos anos de vida, muito mais domingos sozinha do que domingos segurando mãos. Também segurou poucas mãos na vida, e mesmo as que segurava tentava soltar rápido demais. Existia nela um terrível paradoxo entre sonho e personalidade destrutiva. Sonhava com uma casa, um jardim enorme com árvores que dão frutas, porque de repente acha importante que as crianças trepem em cima das árvores como macacos, mesmo que isso consista em cair e quebrar os joelhos. Ela nunca conseguiu subir nem no primeiro nível da árvore. Medo demais de cair do céu e despencar no chão. Realismo demais, pragmatismo demais. Desde os sete anos de idade nunca se permitiu sair do chão. Sonhar sim, mas nunca o risco demasiado. Ou amor, se preferir. Sonhava com essa casa com espaço, ar livre, o verde. Mas de repente pensava de novo e achava que os filhos iam acabar sendo mesmo crianças-de-apartamento, como ela. Dessas que passam o dia todo no computador, ou nos jogos de tabuleiro. Quem sabe um video-game. Nada lúdico, nada educacional e é por isso que sonhava também com um marido extremamente criativo que aceitasse ter uma chácara pra passar as férias com a crianças, e aceitasse de bom grado fazer as malas numa sexta feira depois do serviço, pegar o carro e sair com as crianças num tipo de passeio sem-rumo cantando músicas de viagem, ou beatles. Simples fantasias. Um marido zeloso, apaixonado, dois filhos - um menino e uma menina - uma casa confortável, um emprego flexível, ser-feliz.

Encontraria seu marido em um lugar inespecífico, puxaria assunto, teria um gosto parecido com ele para culturas em geral, e talvez eles gostassem do mesmo tipo de bizarrice, tipo perder uma noite inteirinha de sono pra comer pizza de marguerita em cima da cama conversando e bebendo coca no gargalo. As pessoas não sabem, mas elas são muito influenciáveis pelo fato de alguém no mundo compartilhar - ou ao menos entender - os gostos estranhos delas. No caso dela seus gostos estranhos incluíam música brega dos anos oitenta, desejos por comidas gordurosas em plena madrugada e dormir de meias, mesmo no calor. E tudo isso parecia um sonho impossível pra quem não conseguia gostar nem de um refrigerante por mais de três semanas seguidas. Pensava nesse tipo de coisa, no meio da angústia. Quando será que existiria alguém capaz de escrever na vida real uma história que tivesse ares de filme romântico alternativo? E respondia pra si mesma: nunca.

Alguns números no celular, algumas pessoas pra quem poderia ligar quem-sabe dividir uma cerveja no bar. Afinal é domingo, seis da tarde e talvez seja isso que se espere das pessoas que não tem um namorado, uma família ou mesmo um cachorro pra levar junto na padaria pra comprar seis pães e um litro de leite gelado. Uma ligação, um encontro, uma conversa que vale a vida, o começo de um grande amor quem sabe. Mas não. Já conhecia aquelas pessoas, sabia que irritava nelas qualquer coisa que seja. O dente canino pontudo demais, a mania de sair pra fumar no meio da conversa, o gosto por filmes de ficção científica, a mania de escolher o toque mais irritante pro celular, não querer ter filhos, dirigir devagar demais, não gostar de bandas de brit-pop, ser sério, ou simplesmente ser um doce mas não suscitar nela qualquer tipo de sentimento que chegasse próximo do amor verdadeiro (e ele tinha beatle preferido, que terrível). Então debruçou no parapeito da janela, quase acendeu um cigarro, quase foi pegar uma cerveja na geladeira, quase calculou quanto tempo um corpo jogado do décimo quinto andar demoraria pra chegar ao chão, quase ligou pra três pessoas, quase mandou ume mensagem bonita, quase inventou um novo amor, mas no fim só mudou de música porque o amor parecia bonito demais enquanto um dos irmãos do oásis cantava "and-all-I-know-is-that-I'm-in-love-with-someone-who-loves-me-too" e então gritou "o amor não existe!" bem alto, no meio da melancolia, da angústia, e achando que algum casal separaria as mãos depois de ter bradado o que pra ela seria a grande verdade universal ainda não revelada pela humanidade. O amor não existe. Só existe na literatura, e no cinema e o dia dos namorados foi inventado para as pessoas se sentirem um lixo por causa de uma coisa que todos sabem que não existe. O amor não existe. Não existe nas segundas feiras a tarde, nem nas quintas feiras frias com vinho e macarrão, nem nos sábados felizes e muito menos nos domingos modorrentos.

"Pra que doer por causa de uma coisa que nem existe?" se perguntou. E tentou dançar, e tentou cantarolar "happiness-is-a-warm-gun" e quase concordou "é sim, john, é claro que é". E se sentiu feliz por um instante. E tentou fumar um cigarro, e tentou beber a cerveja de geladeira, e tentou ligar para duas pessoas, e tentou mandar uma mensagem bonita, e tentou inventar um amor. E falhou. E de repente olhou de novo pra fora, tão out, e viu que um homem sorria segurando uma mulher pela mão como quem mostra pro mundo "é minha". e ela sorria de ser dele. E duas crianças mais pra frente, pulavam, e se sentiam amadas. Daí pensou que o amor existe sim. Estranho, errado, manco, bonito, sublime, do jeito que for. E pensou que quem sabe, o amor acontece, num desses domingos modorrentos, de angústia que dói, de solidão encroada de anos e meses, e dias. No meio da rua, aparece alguém que tem o mesmo gosto estranho por pizza as três da manhã, um canino que não incomoda e uma tremenda capacidade de fazer nascer amor.

Dividiriam então uma trajetória juntos, quereriam uma árvore por acharem os dois ser indispensável para uma criança trepar nas árvores até ganhar tantos hematomas quanto puder. Passariam a lua de mel de mochila nas costas, desbravando a américa do sul ou a europa e casariam de tênis - por ser mais confortável. Antes disso teriam dividido várias pizzas as três da manhã onde conversavam até secar a saliva e descobririam numa dessas conversas que odeiam o filme preferido um do outro, e não ligariam. Assistiram novos filmes, identificariam um ao outro em personagens de literatura, escreveriam bilhetes com citações que lembrarem o outro, gravariam DVDs com filmes que não gostaram tanto, mas sabiam que o outro amaria. Dividiriam pedaços de vida, de história e do último pedaço de doce que sobrou na geladeira. Doariam um pro outro às vezes, o último copo de leite. Ele lembraria de comprar pra ela seu bombom preferido quando fosse à padaria comprar pão. Enxergariam traços um do outro em seus filhos. A cor dos olhos, a ondulação do cabelo ou o jeito despretensioso como ela olha às vezes, igualzinho à mãe. Brigariam, refletiriam sobre o fato do amor ainda existir. E ela ia querer fugir mil vezes tentando gritar que "o amor não existe". Pois se sabe criança imatura, que não sabe brincar de amor, mas que espera um dia dizer que não sabe amar, e ouvir de volta "está tudo bem, eu te ensino". E quem sabe seria feliz. Com os pés fora do chão. Casando de tênis, as quatro da tarde, no meio do mato dizendo sim para o homem no qual enxergou no fundo dos olhos um futuro lindo e descobriu que o amor existe sim, e dá pra pegar na mão, num dia de chuva cantarolando que "you-and-I-will-gonna-live-forever" e sorrindo. Num domingo cinzento, às cinco da tarde, enquanto alguém na sacada observa e já não tem coragem de gritar que o amor não existe.

2.1.11

Minha cerveja, Teu cigarro.

Você me apareceu em um daqueles dias em que eu estava com preguiça de dizer "feliz ano novo". Antes da meia noite, ou depois da meia noite do dia trinta e um aquele foi o ano em que qualquer cumprimento me parecia irrelevante. E aí você me apareceu, calça jeans azul escuro, camiseta preta, camisa xadrez. Perdido, tímido, estranho, e com os tênis furados de quem já cansou de tanto andar - ou de tanto viver. Tanta gente esquisita e sem sentido no mundo, tanta gente que a gente não conhece, nunca-viu, a gente nunca sabe o que vai encontrar no minuto seguinte e, naquela dia, você era o meu minuto seguinte. Quis te desejar qualquer coisa bonita porque dentro dos teus olhos não tinha a minha vida toda estampada, nem retrospectiva, ou qualquer-coisa-assim pra querer te desejar, pra ter que te dizer "olha, você esteve comigo nos momentos mais difíceis, me ajudou e, foi tão-importante-pra-mim que eu só posso te desejar tudo de maravilhoso que existe na terra porque eu devo à você um milhão de coisas". Achei naquele ano uma carga tão chata dever coisas à alguém - a vida, principalmente. Era bom encontrar no começo do ano alguém com quem eu não dividi nenhuma carga dramática, e alguém pra quem toda a felicidade que eu desejasse não quisesse cobrir alguma tristeza, alguma dívida, gratidão que fosse. Eu podia te desejar um ano novo lindo, simplesmente porque você existe e eu acho que você deve merecer. E se não merecer também, só prova que o coração era mais aberto do que se imaginava.

Às vezes a gente cansa, cansa tanto dessas obrigações. Os recados que tem que chegar às pessoas amadas até a meia noite, as retrospectivas, as listas de coisas pra se fazer. Já fiz mil listas, planos, já pulei ondas, já tentei langeries de todas as cores possíveis e quer saber, o ano acaba que é o que tem de ser e pouco importa a cor da sua calcinha, quantas pessoas você abraçou ou se beijou uma pessoa ao tilintar da meia noite. Lembro de um ano novo com gosto de luz que culminou no ano mais desastroso de toda a minha curta existência, e nem é como se eu acreditasse em carma, mas aconteceu. Aconteceu também você, ilustre desconhecido que brilhou no meio dos outros ilustres desconhecidos naquela festa, naquele dia, e no meio da minha solidão. Qualquer coisa no seu existir tinha uma coisa-a-mais. Dizem que é nessa coisa-a-mais que nasce o amor e que é dessa coisa-a-mais que nascem os sonhos. Deve ser. A coisa-a-mais que não se explica, mas naquela noite morou ali, nos seus tênis rasgados. Tinha você, dois amigos, e você parecia mais preocupado em olhar qualquer coisa que seja, sempre pra fora. Out, out, out. O olho perdido nas estrelas, o copo de refrigerante na mão, um sonho qualquer, sei lá o que você sonhava. Eu, no meio daquela gente toda, eloqüente, brilhante, e transitante, em cima do meu salto alto, com meu batom vermelho e o sorriso fácil de quem confunde chegada de novo ano com entorpecência liberada. Meus copos de cerveja, você nem deve saber, costumam maquiar a minha timidez. Uma timidez louca, típica de quem parece querer o mundo mas espera de verdade uma pessoa, três conversas jogadas, e principalmente, o entendimento profundo sobre a alma de outro ser humano. Troca, encontro, reciprocidade.

Eu não queria nada a meia noite. Meia dúzia de abraços, um brinde, mentalizar "oxalá-que-o-ano-novo-seja-bom-oxalá". Histeria típica, uns gritos, fé, fé, fé. Toda a fé do mundo durando ali naquela contagem regressiva. Nenhum feliz ano novo especial, nem fazer planos, nem sonho nem nada. Do dia trinta e um pro dia primeiro. E fim. E te olhei. No canto, pra fora, sempre pra fora. Um cigarro apagado nas mãos, o copo de refrigerante meio vazio, os tênis furados, a solidão. Uma hora e você ainda não sabia o que procurava no céu. E eu não sabia o que procurava. Nunca soube. Mas você tinha jeito de quem tinha andado muito pra chegar até ali - teus tênis diziam. Tinha jeito de quem não acreditava em ano novo, em rito, em passagem. Mas tinha jeito de quem acreditava. Em quê eu não sei, mas acreditava. E então fui - do jeito desajeitado que sei entrar na vida das pessoas - ao seu encontro, despencando do salto, da compostura, da vida. De sorriso vermelho-borrado, de champanhe barato na taça. Fui até você na esperança de saber que fé era aquela, da onde vinha, pra quê? Eu só encostei do teu lado e fiquei olhando o céu. Você olhou pra mim, nem sorriu, nem fez nada. Só abaixou a cabeça e começou a procurar qualquer coisa que seja. E eu olhei pra você numa intenção louca de te encontrar, me encontrar, encontrar qualquer coisa e foi assim, sem pudor, sem rito, sem ensaio que eu quis te desejar feliz ano novo de coração aberto. Eu queria que você fosse feliz, não por gratidão, dívida ou pra te salvar da tristeza. Só queria te dar uma alegria qualquer. Alegria descompromissada, pura, daquelas que a gente dá e não espera nada em troca. E tropeçando nas palavras como estava bem acostumada a tropeçar, na vida, disse:

- Feliz ano novo.

Você me olhou, não entendeu, bebeu um gole do refrigerante, jogou o cigarro da sacada e ainda, olhando pra fora, respondeu.

- Feliz ano novo.
- Você acredita que desejar feliz ano novo traz mesmo um bom ano novo pra pessoa em questão?
- Na verdade não acredito, mas acho válida a tentativa.
- Você parece tão perdido, aqui, no meio dessa gente toda.
- Eu sou perdido no meio do mundo, eu acho.
- Todo mundo é, um pouco.
- Você parece razoavelmente integrada ao meio.
- É que voce não me viu tropeçando com esse meu salto alto, derrubando a champanhe e superando o pavor de abraçar desconhecidos.
- Você não tem lá muita cara de quem tem pavor.
- Tenho cara do que?
- De confiança exagerada.
- Por que?
- Porque veio aqui, se debruçou no parapeito, sem pudor nenhum e me desejou feliz ano novo. Eu sou um total desconhecido, isso só pode ser coragem.
- Mas é medo.
- Medo?
- Não tenho nenhum vínculo com você. É muito mais fácil lidar com o fracasso das relações que ainda não existem.
- Aceita um cigarro?
- Não fumo.
- Perfeitamente compreensível. Também não gosto de fumar.
- E fuma por que?
- Pra preencher as mãos.
- Do que?
- Do mundo, do nervosismo, da timidez. É como segurar na mão da confiança.
- Eu bebo pra isso.
- Não sei beber. Nunca soube.
- Perfeitamente compreensível, os refrigerantes são mais doces.
- É que de amargo já basta a vida.
- O que voce tanto olhava lá em cima?
- Nada, assim, exatamente. Tava pensando. Não gosto de ano novo, desse clima todo de festividade por um dia.
- Acho que é pra compensar o resto do ano.
- Toda a fé de trezentos e sessenta e cinco dias depositada em um dia só. Não era melhor dividir? Pequenos reveillons a cada semana.
- Fé em doses homeopáticas.
- Faz bem.

O barulho de fogos, o frio, as pessoas. Tudo tinha sumido do alcance enquanto você tinha comigo a conversa mais doce de toda a minha vida. A blusa xadrez em cima da camiseta preta, teus olhos verdes. Agora tinha como ver. Verdes, verdíssimos, cor-de-esperança. Os teus cigarros acesos um atrás do outro correndo na sua mão nervosa. Os olhos que olhavam pro céu - pra fora, out, sempre pra fora - e não pra mim. O jeito de falar baixo, quase enrolado, as frases certas na hora certa. O pensamento rápido, o refrigerante quente. Tudo aquilo junto, na noite de ano novo parecia ser as sete ondas que eu deveria pular. Te transpor em uma onda de cada vez, que é pra dar sorte.

- No que voce acredita?
- Não sei. Acho que era isso que eu estava tentando descobrir enquanto olhava pra cima. Você acredita em alguma coisa assim, específica?
- Não, nem em ano novo.
- Falta de fé, ou de esperança?
- Os dois.
- Menina, isso é cansaço.
- Você fala assim e eu me sinto uma velha.
- Não precisa ter passado por vários anos pra ser cansada. Às vezes um, na hora errada, basta.
- O meu foi o último.
- Eu também tô um pouco cansado. Mas foi de ano em ano.
- Anos ruins?
- Anos bons, anos ruins, que nem todo mundo. É que eu ainda acredito em alguma coisa. Não sei no que, mas acredito.
- Talvez ter te encontrado no ano novo seja um bom sinal.
- Acho que você taba me procurando. Tem toda a cara.
- De quem te procura?
- De quem procura qualquer coisa.
- De repente eu acerto.
- Menina, eu sou tímido.


- Meu nome é Fernanda.
- O meu é Fábio.
- O que te traz aqui, no ano novo, Fábio?
- Meus amigos. Com uma raciocínio simples "Você precisa sair de casa, Fábio. É ano novo". E me arrastaram.
- Não queria vir?
- Não me sinto bem em festas. Só faço fumar. Não socializo, não dá pra conversar direito, esse monte de gente gente e gente. E haja cigarro pra ocupar a mão.
- Você detesta tanto as pessoas?
- Não, eu gosto muito de pessoas. Meu problema é com o convívio social obrigatório.
- Eu estou te fazendo socializar por obrigação?
- Por incrível que pareça, não.
- Devo levar isso como um elogio?
- Vai ver.

- Você é sempre assim, tímido?
- Um pouco mais do que isso, na verdade.
- Mais?
- Sim, é que você fala bastante. Dá uma certa segurança.
- Achei que fossem os cigarros.
- Também.
- Você não quer ir ali pro gramado não?
- Posso ir.
- Vem cá, você nunca vai me olhar nos olhos não?
- Não agora.

Eu fui andando na frente e você ia do meu lado. Os passos curtos encarando os próprios pés. Uma mão segurando o cigarro, a outra no bolso. Você não sabia pra onde estava indo, mas ia. E eu ia te levando. Sem saber exatamente pra onde. Mas tinha flor, tinha gramado, e tinha umas estrelas. O total silêncio de duas pessoas que de uma hora pra outra resolveram trilhar o mesmo caminho. Os pés lado a lado. O destino era o mesmo, o fim não se sabe.

- Você não vai falar nada, o caminho inteiro?
- Quem conduz a conversa aqui é você.
- O que voce faz da vida?
- Estudo.
- O que?
- Ciências contábeis.
- E gosta de matemática?
- Odeio.
- E gosta do que?
- Filmes, livros, boa música e café.
- Mas disso não tem faculdade né?
- Suponho que não.
- Eu faço cinema.
- Já quis fazer cinema.
- É legal, mas não tanto. Obrigação criativa, sabe? Criação como trabalho. Não sei.
- Parece combinar com você.
- Por que?
- Não sei, voce parece que vive atrás de criar histórias.

- Pode ser aqui?

Apontei um banco embaixo de uma árvore.

- Pode.
- Quais são as chances de você superar a barreira intransponível do convívio social amigável até amanhecer?
- Com você as perspectivas são favoráveis.
- Bom saber.
- É esse teu jeito.
- Que jeito?
- De entrar na vida da gente sem pedir licença.
- Podia ter ido embora.
- Não, voce é agradável.
- Obrigada. É bonito aqui né?
- Bastante. E tem menos gente.
- Você vai mesmo continuar a três metros de distância de mim?
- Olha, menins, eu já estou mais perto de você do que eu ousei chegar de qualquer outra criatura.
- Quantas namoradas?
- Três.
- Amou quantas delas?
- Todas.
- Amor se constrói ou acontece?
- Se constrói.
- Então não amou nenhuma. Quantas demonstrações públicas de amor?
- Nenhuma.
- E a vontade incontrolável de querer guardar a pessoa dentro de uma caixinha para protegê-la de todo mal?
- Do que voce tá falando?
- De amor.
- Isso não é amor, é possessão.
- Esses teus tênis gastos não te ensinaram nada nada sobre a vida, Fabito.

Você permaneceu num silêncio ancestral que podia se ouvir de outra cidade. E eu cheguei mais perto.

- Se a proximidade estiver desconfortável, me diz.
- Como se tivesse alguma coisa que você tem vontade de fazer, e não faz.
- Você me conhece muito pouco.
- E voce quer me conhecer inteiro.
- Minha nova resolução de ano novo.
- Você é sempre assim, eloqüente?
- Só quando me interessam os encontros.
- E quantas vezes isso aconteceu?
- Várias. Mas poucas valeram o investimento.
- Quantas vezes você amou?
- Uma.
- E como foi?
- Aconteceu.
- Como?
- Amor não se explica, que coisa, acontece. E um dia você sente no peito a vontade inconsolável de não querer mais nada, além da outra pessoa.
- Você é louca.
- Amor é loucura, voce que nunca experimentou.
- Define amor.
- Amor não se define, se sente.
- E como é?
- É uma vontade louca de querer ouvir sempre a mesma música, sem enjoar. É um falar o nome da outra pessoa e sorrir, é imaginar um futuro sem medo é enxergar no fundo dos olhos da pessoa a sua vida inteira.
- Simples assim?
- O amor é. Mas sentir é sempre complicado.

Pela primeira vez você olhou nos meus olhos enquanto eu falava.

- Teus olhos são castanhos.
- são. normais, chatos, comuns.
- É que alguma coisa tem que ser assim em você.
- Você tá me dizendo que eu sou excêntrica?
- Não exatamente. Mas não é normal, nem chata, e muito menos comum.

Eu te sorri.

- voce descobriu o que procurava olhando pro céu? parou de olhar.
- Tem alguma coisa pra descobrir nos teus olhos, também.
- E o que é?
- Eu ainda não descobri, por isso não parei de olhar.
- Quando voce descobrir, você me conta.
- Qual o sentido desse encontro todo hei?
- Não tem que ter sentido, fábio, meu deus. Os encontros acontecem porque tem que acontecer. O destino da gente é se encontrar.
- E depois se perder.
- Quantas vezes você já se perdeu?
- Todas. Quantas vezes você já se encontrou?
- Nenhuma.
- Deve ser por isso que voce vive procurando.

E me sorriu.

- Se esse fosse teu filme, terminava como?
- Eu levantava, e ia embora.
- Assim? E o encontro?
- Aconteceu. O reencontro é mistério.
- E é assim que vai ser?
- Isso é vida, não filme, rapaz.
- Teu olho é castanho claro. Deve esverdear no sol.
- Esverdeia. O teu azula?
- Não. É verde. Convictamente verde.
- Combina com você. De uma cor só. Cor de esperança.
- E isso termina como, então?
- Não sei, amanhece, eu te puxo pelo braço e a gente vai rumo a uma aventura fantástica.
- Mesmo?
- Não. A gente continua conversando, até cansar. E se não cansar não para. E se der sono a gente dorme, e uma hora a gente vai pra casa. E se você quiser meu telefone eu te dou. E se você quiser me ligar quando eu acordar você liga. E se quiser me ligar numa terça feira cinzenta as três e quarenta da tarde pra me chamar pra um café você pode. Você pode ouvir uma música e lembrar de mim, e me ligar. E você pode me ligar e me chamar pro cinema. E você pode me esquecer por um mês, ou dois, ou por um ano. E depois pode ligar pra mim com a desculpa que passou por aqui, e se lembrou. Eu posso estar com o mesmo telefone, ou não. Ou posso ter encontrado um amor. Ou a gente pode sair amanhã. Ou você pode me chamar pra dormir na sua casa. E a gente pode transar, quem sabe. Ou a gente pode adormecer ouvindo música. E você pode me fazer um café, ou não. Ou a gente pode ter medo de se tocar e dormimos em camas separadas e depois acordar segurando as mãos. Ou você pode me beijar agora e me dizer que eu sou o possível amor da sua vida. Ou eu posso te beijar agora e te dizer o mesmo. Ou a gente pode sair daqui e não se encontrar nunca mais.
- A vida pra você é um filme com vários finais.
- A vida pra mim é real, e é cheia de possibilidades. Mais que o filme. Porque é real.

Nós nos sorrimos.

- Pra quem não me olhava você está me olhando demais.
- Eu não sei o que fazer. Não tem mais cigarro, não tem mais nada, eu estou bicho-solto na sua mão.
- Primeiro troca o cigarro pela minha mão. Se der certo, vai ser como segurar na mão da confiança.

E você me deu a mão.

- Se sente seguro?
- Como se eu nunca tivesse sido de outra maneira.
- Agora eu te levo.
- Pra onde?
- O destino é mistério.

E te segurei na mão, de tênis furado, tropeçando no salto, no desajeito, no sentimento. É que no meio da minha busca por nada eu te encontrei. E era ano novo, e tinha uma fé em alguma coisa. E eu seguro na sua mão e tenho fé em você, em mim, no mundo. Olho no teu olho e vejo, tem cor de esperança. Um silêncio tão lindo, tão doce. Os passos sincronizados, a estrada rumo a lugar nenhum. Você de repente começou a me contar as suas histórias, e eu te contei as minhas. E você me deu um pedaço da tua vida, que eu misturei com a minha. E a gente não sabia bem pra ponde estava indo, mas ia. E se deu o silêncio exato, o beijo certo, mágico. Debaixo de uma árvore, no amanhecer de um dia primeiro de um ano qualquer. O perfeito encontro, mais que beijo, mais que junção de corpo, saliva, língua. Era coração, pulsante, vibrante, eterno. Eu te desejei feliz ano novo e ganhei de presente uma vida. Te dei de presente um encontro. Te ensinei que o amor acontece, e troquei teu cigarro pela minha mão. Você se tornou a minha bebida. Num novo ano, nasceu um novo encontro. O reencontro é mistério.