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28.9.10

Quero ser Fernanda Takai.

Hoje quis ser Fernanda Takai. Não me entendam mal, eu não queria assim, ser a Fernanda e habitar a vida dela no tempo e no espaço. Nem ser casada com o John, e nem ter dois filhos. Pelo menos não aqueles dois filhos e nem aquele marido. É porque eu quero ter os meus. Mas quis ser minha própria Fernanda Takai enquanto ouvia o música de Brinquedo. Música de Brinquedo é um projeto do Pato Fu em que eles fazem som com brinquedos. E apesar de ser interessantíssimo, não era essa parte de Fernanda Takai que eu queria ter. Os filhos dela cantam com ela essas músicas. E os filhos dela são filhos dela com o guitarrista da banda dela. Entendem? Não, eu não queria ser vocalista de uma banda ou nem mesmo namorar e casar com o guitarrista da minha banda. E nem ao menos ter meus filhos cantando comigo algumas músicas. Eu não queria isso exatamente, mas queria isso também. E o meu ser fernanda é meio confuso de explicar. Mas eu preciso dizer que de algum jeito eu quero ser assim, Fernanda Takai. É que pensei em ter filhos e depois disso pensei em ter uma família e quis por um momento que meus filhos fossem repletos de arte. Não que eu quisesse que eles cantassem ou qualquer coisa assim. A grande verdade é que eu descobri que só se pode amar aquilo que se admira. E daí descobri que quero enxergar nos meus filhos qualidades diferentes das minhas. Amor deve ser isso. No meio de tudo, uma estranha vontade inconsciente de reproduzir no mundo um pedaço de tudo aquilo que você ama e admira. É nisso que eu pensei, qualidades diferentes das minhas. É claro que eu quero que os meus filhos me admirem. Mas quero que admirem também o outro lado, o pai. Junto comigo. Que aprendam a ver tudo aquilo que eu um dia enxerguei de lindo na pessoa com quem resolvi dividir a vida. E enxergar nas novas vidas tudo aquilo que eu um dia enxerguei de bonito.

Eu sempre escrevi. Assim, a vida toda. Às vezes acho que nasci escrevendo. Ou lendo. A palavra sempre me foi essencial. Se eu me comunico, é porque existe a palavra. A escrita. Não a falada ou a imagem. Porque só sei ser de verdade enquanto escrevo. Só sei me expressar assim. Então é natural que admire com todas as forças todas aquelas pessoas que se entendem bem com as palavras. Tenho vontade de roubar todo o talento do mundo da escrita pra mim, e só pra mim. Admiro quem escreve de um jeito que se pudesse, comeria-os e jogaria de volta no mundo sem talento algum. Quero pra mim a facilidade da expressão. Quero que seja meu. Foi assim que eu descobri que tenho dificuldade de me relacionar com quem, assim como eu, se expressa pela palavra escrita. Pois se achar demasiadamente bom terei vontade de comê-lo e jogar de volta no mundo sem talento algum. Vira assim, competição. E mais do que admiração, tenho com essas pessoas uma estranha sensação de inferioridade. Porque posso, mas posso menos que elas. E por isso as admiro. As admito invejosamente. E por isso elas devem ficar guardadas na estante. Por outro lado, também tenho uma dificuldade imensa de amar em alguém o outro extremo. Alguém em quem eu não enxergue nada em que a pessoa não seja melhor do que eu. Não por prepotência. É que falta admiração. E os puristas que me desculpem, mas sem ter o que admirar, morre o amor. Então cheguei a conclusão que preciso amar aquilo que admiro, mas que nunca vou poder ter. Poderia facilmente amar alguém que desenha muito bem, pois sei que não tenho nenhum talento pra fazer uma linha reta que seja. Não sei dar vida a imagens. Poderia amar também alguém que pintasse. Ou que fizesse filmes. Poderia amar alguém que tivesse um enorme talento para a composição de músicas, coisa que eu nunca soube fazer. Por um simples fato: preciso admirar o que existe no outro, sem querer ter para mim. Admirar como quem diz: sou incapaz, embeleze você o mundo. Pois então digo, egoistamente, seria incapaz de amar alguém que fosse mais capaz do que eu do que escrever um livro inteiro. Quero pra mim alguém que não tenha a facilidade da escrita, porque a grande verdade é que preciso ser admirada por isso. Querem saber? Quero um complemento, não uma adição. Entendem a diferença?

E então vocês me perguntam, e os filhos? E eu respondo. É que descobri que quero filhos que cresçam no meio de uma família cheia de admiração. Quero admirar aquilo que me fez escolher meu marido, e quero ser admirada. Não exatamente e somente pelos talentos básicos. Mas quero olhar para pessoa que escolhi e querer morrer, de tanta admiração. E querer que ele cresça, e viva e seja cada vez melhor. E que tudo aquilo se multiplique. E que seja assim também comigo. E que seja assim também com os meus filhos. Que um dia eu olhe pra eles e consiga ao mesmo tempo que enxergo tudo aquilo que gosto e que não gosto em mim, enxergar tudo aquilo que admiro na pessoa com quem escolhi tê-los e educá-los. Quero que enquanto eu os ensine a ler, o pai ensine os filmes e as músicas. Enquanto eu mostro a palavra, a outra pessoa mostre as imagens, ou o som, ou a outra forma de escrita. E não é egoísmo, não. É que eu só sei admirar nos outros aquilo que não tenho. Porque quando admiro o que tenho, é como se tivesse admirando a mim mesma. É que quero, um dia poder dizer no meio de uma dúvida "eu não entendo nada disso, pergunta pro seu pai" e também quero ouvir "eu não entendo nada disso, pergunta pra sua mãe". É que quero viver assim, nesse ambiente de amor e admiração mútua que criam filhos que cantam e escrevem, que desenham e cantam ou que não fazem nenhum dos dois e frustram os pais por dois minutos. É que quero enxergar na nova vida tudo aquilo que amo e admiro. E não só as artes. Quero ver naquela nove criatura o tamanho do sorriso que eu amava, ou o jeito de mudar a sobrancelha que me irrita, ou a mania de beber água logo depois de acordar. Qualquer coisa assim que me remeta ao amor. Aquilo que amo. Aquilo que admiro. Porque sei que é obrigação de todo ser que vive continuar perpetuando no mundo tudo que há de bom. E é por isso que eu um dia quero escrever livros. E é por isso que eu um dia eu quero ter filhos. E é por isso que hoje quis ser fernanda takai. Porque imaginei meus filhos com alguém que ainda não sei cantando comigo e com ele, e imaginei enxergar neles tudo aquilo que eu amo, e fui feliz por três passos.

Sendo eu.

Eu preciso dizer, só funciono quando tenho estímulos. A outra coisa é que não gosto de escrever em primeira pessoa. Acontece é que percebi que só tenho falado de mim ultimamente. Ou de você. Só que como falar de você é falar de mim, tenho falado rasgado sobre mim. Me escondendo num esforço tão inútil que tudo tem ficado ridículo. Não existe mais distanciamento entre vida e literatura porque isso que eu escrevo aqui é vida. E é assim. E a vida tem doído. Demais. Eu penso e aí acho que todo mundo um dia não soube respirar por causa da vida. Mas não sei. É que eu sempre senti isso, é como se fosse inerente a mim. Existo, e existindo viver me dói. Desde sempre. Parece que desde a primeira vez que chorei já chorei de angústia. Desse mundo tão grande e que mesmo assim eu não caibo mais. Eu não sei mensurar exatamente desde quando eu não caibo em mim, mas faz um tempinho. Aliás, retomo, nunca coube dentro de mim. É por isso que sempre quis ser escritora. Mas antes ainda tinha um alívio. Alguma fuga em algum lugar. Quando não houve fuga, desfaleci. Morri mesmo, assim, de existência. Daí só existia de palavra, mas existir em palavra quando no meio do desespero é perigoso. As palavras tem força. Quando viu, já escreveu. E o pior é que escreveu, publicou e gritou. Por um simples motivo: precisava ser ouvida e não foi. E aí não coube. Deve fazer mais ou menos um ano que eu não tenho cabido dentro de mim. Talvez seja exatamente um ano. Eu ando escorregando pelos lados. É, isso mesmo, eu. Escorregando tanto que eu me atropelo. O tempo todo. Esqueci a literatura na gaveta e desacambei a falar de mim. Todos os personagens sou eu. De algum jeito. E nem só tanto escrita assim, texto. Descambei a me escrever como primeira pessoa do singular expondo sentimentos aí como se eu fosse morrer no momento seguinte. E ia mesmo. Tudo o que eu disse assim, sem dizer, escrevendo, é porque se não dissesse ia morrer. E ia morrer de existência e palavra. Sabe-se lá o que acontece com uma pessoa que morre engasgada com o próprio sentimento. Só que quando se está prestes a morrer fala-se tudo o que se deve e também o que se não deve. Os tementes a morte querem deixar tudo em pratos limpos de um jeito que possam deixar esse mundo de consciência tranqüila. Mas eles tem uma vantagem sobre os vivos. Digam o que disserem, não estarão aqui no momento seguinte. Só deixarão os que ainda existem com a tarefa de remoer aquelas palavras ditas sem jeito, atropeladas e sem censura. O momento seguinte era a morte. Tudo precisava ser dito, ainda que desajeitado.

A grande diferença entre os mortos de vida e os mortos de sentimento é que o sentimento sufoca, mas a vida continua. E no momento seguinte, embora haja de algum jeito a morte da angústia, renasce outra no momento seguinte. Aqueles que morrem pela palavra ainda tem que lidar com a vida. No momento seguinte aquele a quem foi proferida as palavras tem o direito de responder. E responder diretamente ao seu interlocutor. Os loucos do sentimento. Os suicidas das palavras. As pessoas como eu, que por não caberem dentro de si mesmas resolvem soltar tudo aquilo que sentem no momento mais inoportuno possível. Nesse momento nasce a outra angústia. A angústia que anda com aqueles que disseram tudo que precisava ser dito, mas também o que não precisava ser dito, e mais ainda, tudo aquilo que precisava ser dito, mas não naquele momento. E voltam a não caber dentro de si porque soltaram tanta palavra pra fora que agora falta palavra dentro. E eu cometi alguns vários sincericídios nesse meio tempo. Eu, eu mesma, primeira pessoa do singular. Achei que ia morrer de sentimento e assim, quase morta, disse o que devia e o que não devia. Palavra por palavra. Fleumática como sempre fui, sem nem saber a conseqüência que as palavras fortes podem lá trazer nas outras pessoas. Enderecei e-mails, depoimentos, cartas. Disse. Escrevi textos atrás de textos que tinham por único objetivo me livrar dessa angústia de existir. É muita palavra dentro de mim. Muita palavra. Porque é muito sentimento. E eu repito: eu não caibo dentro de mim. E quando tento dar vazão a isso inventando outras partes de mim como personagens só sei falar de mim mais uma vez. E fingindo não ser eu só pareço mais ainda comigo. Só que mais malfeita. E pasmem, cabendo menos ainda. O que eu quero dizer é que faz uns doze meses que eu não caibo dentro de mim nem metade do que deveria. Preciso falar, preciso contar. Preciso falar dessa minha angústia ao acordar todas as manhãs, desse meu medo da vida, dessa minha indecisão. Preciso gritar pra todos vocês que eu sou infeliz, apesar de tudo, e no meio de tudo. Mas não é culpa de ninguém, eu sempre fui sozinha assim, e descontente, e infeliz só que agora isso não cabe mais dentro de mim. E desde que começou a não caber comecei a sair por aí palavra atrás de palavra, soltando sentenças decisivas pra minha vida, depois me arrependendo, depois dizendo de novo. Amei, desamei, amei tanto que não coube e morri de palavra.

Amor quando não cabe, vira isso, uma repetição enorme. Porque quando se pode dizer o tamanho do amor só se fica ridícula perante o ser amado. Mas quando não se pode fica-se ridícula diante do mundo. Aí você quer dizer, olha, eu tenho um sentimento e esse sentimento é de um tamanho que eu não conheço, que não cabe dentro de mim e por isso eu preciso ficar tirando os pedacinhos, botando pra fora. Uma hora é em forma de raiva, depois é comendo chocolate e depois é fingindo ser outra pessoa. Um alter ego que encontra a felicidade na literatura. Depois se volta a vida real e o sentimento volta a não caber, a não ter vazão, a se perder ali no meio do nada e não cabe. As pessoas morrem de amor porque amor de verdade não cabe dentro da gente. Essas coisas destroem. Aí você fica assim. Se atropela que nem gente a beira da morte. Pois vai morrer mesmo. De excesso de amor. E depois da falta dele. E depois da lembrança dele. E todos esses sentimentos são enormes, e a verdade é essa. Nada disso nunca coube dentro de mim. E nessa ânsia de ser feliz colocando essas coisas nos seus devidos lugares virei exatamente o que sou fora do mundo do texto. O descontrole, a palavra atrás de palavra, a ânsia desenfreada de me contar, de ser ouvida, de amar e de ser amada, e principalmente a ânsia de conseguir colocar o sentimento dentro de um lugar que ele caiba. Ora tristeza demais, ora felicidade demais, ora entusiasmo demais. depois a esperança, depois a desesperança completa. E tudo isso é uma loucura. Mas é a minha loucura. E é uma loucura tão minha que só eu vivo dentro dela. E não tem espaço pra nenhuma outra vida dentro dela. Nem pra outro sentimento, outra personalidade, outro fingimento. E lhes digo então, só sei ser eu. E eu somente. E quando me reinvento, sou eu de novo. E quando me invento, sou eu de novo. E do jeito mais ridículo que posso ser. Acreditando naquilo que não é, esperando aquilo que não vem. Com uma fé enorme nas coisas que não existem. Garota- Dom quixote, lutando contra monstros inexistentes, contra moinhos de vento. Os meus moinhos de vento. Os meus fantasmas. E digo de novo, morrendo de medo. Porque não sabendo ser outra pessoa, estou presa a mim. E afirmo, tenho muito medo de morrer de sentimento e palavra. Quero a literatura, o fingimento, quero me deixar de lado. Estou grande demais, não caibo dentro de mim. Quero caber. Quero voltar a ser várias. Quero deixar de ser eu. Ainda que no papel, ainda que por pouco tempo. Preciso, que é pra não morrer. Nem de sentimento, nem de palavra ou pior ainda: pra não morrer de coração - pulsante e físico.

20.9.10

Cigarros, abraços e um pouco de sonho.

Na hora em que você me viu, depois de meses, talvez um ano inteiro, eu estava acendendo um cigarro. Marlboro vermelho, ou um lucky strike azul. Podia ser qualquer um desses. Nenhum daqueles que você aprendeu a fumar. Não aquelas merdas. Aquelas merdas encaixotadas vindas do paraguai cheias de nicotina b. Quando eu resolvi que ia fumar eu tinha que ter alguma dignidade. Aquela que você me roubou. Tinha que enfiar pra dentro dos meus pulmões alguma coisa melhor do que isso que você tem colocado na boca. Eu estou falando de tudo. Das coisas que eu sei e do que eu não sei. De uns tempos pra cá, por mais que eu te amasse, você exalava merda. Por todos os lados. Aquele cheiro de sujeira com burrice, porque burrice fede. E o cheiro vinha de você, não vinha de nenhum lugar. Não vinha do cigarro barato, das suas roupas ou das pessoas com quem você andava. Vinha de você. Você cheirava merda. Foi quando você me viu.

Eu, no meio daquela gente toda que não cheirava nada acendi um cigarro azul ou vermelho. Não lembro se tinha filtro. Não lembro que cor. Mas acendi. Fumaça entrando e saindo por todos os lugares. Pela garganta, pelo nariz. Por onde desse. Eu sempre fumei pra colocar ar dentro de mim. E não importa se era ar carbonizado, com mais de mil substâncias tóxicas. Que se foda isso. Faltava ar dentro de mim, muito ar, todo ar do mundo. Desde que você partiu. E quando você voltou lá estava eu colocando ar dentro de mim de algum jeito. Mas quando eu te vi acho que nem fumar mais eu sabia. E você ficou tão paralisado, tão me mostrando que aquilo não combinava comigo. E eu pensava que aquela merda também não combinava com você, porra. Claro que não. Principalmente aquela nicotina sem nome que cheirava a merda. E apaguei o cigarro, mesmo precisando de todo ar quente do mundo.

Você, a mesma calça jeans, a mesma camiseta e o mesmo tênis. Me olhando. Como se eu fosse um ET. Eu fumo também agora, caramba. E eu uso essas roupas cheias de "informação de moda". Eu também não sei porque. Eu também não sei porque você me idealizou tanto assim. Eu nunca soube porque você achava que eu era tanto assim pra você. Eu nunca fui. Eu sempre fui uma bosta de uma menina manipuladora, chata e até arrogante. Eu sempre fui menos inteligente que você. Agora eu nem quero saber o quão menos inteligente que você eu sou. Também não sei o quanto você embrurreceu. Vai ver agora a gente está do mesmo jeito. Burros e estúpidos. E fumando cigarros. Os meus caros, os seus baratos, mas com o mesmo câncer. Vai ver é isso, estamos adoecendo. Vai ver já estávamos doentes a muito tempo e não tínhamos nos dado conta. Faltam os livros, os filmes, os discos e as noites regadas a vinho e filme francês. Ou italiano. Longas discussões sobre filosofias que eu não entendia. Eu nem me lembro mais quando foi que isso se perdeu. Mas se perdeu. Que nem fumaça de cigarro. Só fica o cheiro.

O fato é que você me viu e ficou me olhando, como se pensasse que eu enfiava aquela fumaça tóxica dentro de mim por sua causa. E era mesmo. E eu quis te dizer: se eu tiver câncer, é culpa sua. Se eu morrer, sabe. E se você morrer, é culpa sua. Que não me ouviu. Culpa sua. Toda essa merda, culpa sua. Mas não disse nada, apaguei o cigarro, fiz cara de blasé e esperei que você me ignorasse. E você não ignorou. Eu sentei do seu lado, você me perguntou se eu fumava agora eu eu pensei "fumo sim, quero morrer de câncer, por sua causa". Mas não. Só sorri e disse que fumava as vezes, mas que tava tentando parar, que essa merda dá câncer na gente. Você concordou, disse que dava mesmo e que tinha parado também, que na verdade nunca gostou disso de fumar. O gosto, a fumaça, sei lá. Ai eu pensei em te dizer que todo mundo sabe porque você fumava, que era porque você tinha ficado burro que agora fedia merda. Mas também não disse, disse que ainda bem que você tinha se tocado, que isso não combinava nada com você e tudo mais. Essas coisas que eu digo pra você porque não tenho coragem nenhuma e quando eu vi eu já estava conversando com você do jeito que sempre fiz, cheio de risos e soquinhos, e você me respondia como se a gente se falasse todo dia, sei lá, e você nem fedia merda mais. Eu não sabia o que estava acontecendo e queria desesperadamente perguntar cadê, onde está a sua namorada, aquela merda toda de antes da gente se sumir assim, mas não tinha coragem porque ela bem que podia existir ainda, quer dizer, nada impede da gente se tratar cordialmente e termos namorados. Eu ficava pensando que dez minutos depois viria o momento em que você se daria por si e ia perceber que você estava me tratando bem demais só que você tinha alguém te esperando em casa, e daí não podia. Você já tinha feito isso algumas vezes e depois ficava eu e meus cigarros vermelhos, meus cigarros azuis, meus cigarros com gosto de menta botando pra dentro todo ar que você tinha mais ume vez levado com você. E ficava o cheiro de merda brotando.

Mas dessa vez eu não queria mais, nenhuma noite mais cheia de cigarros variados, aquela fumaça toda, cerveja, não sei. Não queria mais perder o ar. Eu já tinha acostumado a viver com o tanto de ar que me foi dado. Aí esperei você sentar, sorrir, me olhar do jeito que eu já conhecia e perguntei logo de uma vez. Cadê sua namorada? E quase que não coube dentro da minha camisa xadrez, achei que ia sumir ali dentro enquanto você abaixava e sorria de novo, dessa vez desajeitado, e aí eu já sabia que ela ainda existia e ok, mais um erro, mais uma noite mais cigarros, quem sabe um maço deles e aí sim, pelo amor de qualquer coisa eu ia te largar pra sempre porque não é possível viver assim, colocando ar pra dentro o tempo todo. E com a falta dele mais ainda. E já estava quase me levantando, tentando esquecer o frio dentro da minha camisa xadrez e foi quando você disse:

- Eu não sei.

Ai eu pensei meu deus, você só pode estar brincando porque como assim não sabe, claro que você sabe. Aí eu queria logo de uma vez dizer pra você parar com isso porque eu não agüentava mais essa sua indecisão, ia ser pra sempre assim? fala logo então, diz que existe alguma coisa, ou para de falar comigo pra sempre e cospe na minha cara, qualquer coisa, qualquer coisa, mas não tira mais meu ar. Eu queria te dizer qualquer coisa assim mas só respondi de qualquer jeito
- Como assim não sabe?
- Não sei. Além do mais, namorada mesmo eu nunca tive. Não essa que você está se referindo.

Eu só te olhava.

- Tem ou não tem?
- Não tenho. Acho que não tenho. Não quero ter mais.
- Não?
- Cansei. Tava cansado. Vim pra cá, no meio dessa gente toda pra ver se descobria alguma coisa, se colocava alguma coisa dentro da minha cabeça. Tem me faltado tanto ar, você sabe como é isso? Daí te vi, e eu nem ia conversar com você, porque não agüento mais te magoar. Eu só faço isso. Eu sei que eu faço isso. Aí eu te vi fumando e eu sabia que era por minha causa. Aí fiquei pensando, minha nossa, o que eu fiz com essa menina? Você parecia tão diferente e daí eu precisava saber se era verdade mesmo. Essa sua diferença toda. Você ali, no meio daquela gente. Você não é assim, e aí eu quis te tirar dali, mas eu não tenho coragem de fazer mais nada com você, daí só puxei o assunto e apesar das roupas, do cigarro, desse seu cabelo e tal, você continua igualzinha. Sério, igualzinha. E eu acho que eu descobri, eu não quero aquilo mais.

Você ficou ali daquele jeito envergonhado, triste e sorrindo de nervoso. Com aquele sorriso mais lindo do mundo. Aquele que eu conhecia e aí eu não soube nem te falar qualquer coisa que fosse e nem fazer qualquer coisa que fosse e só te abracei, e só isso já foi um passo enorme, mas daí você pegou na minha mão e disse obrigada, obrigada por tudo isso que você fez por mim, e eu te juro que eu quase chorei. Aï você me perguntou se eu queria dar uma volta, sair dali e eu disse que claro, e quase ensaiei dizer que com você eu ia pra qualquer lugar que fosse, mas fiquei quieta, e só aceitei o convite e fomos então andar na rua, sei lá se era rua aquilo, ou um parque, eu sei que tinha um banco há uns metros dali e dava pra ver e aí você me disse se eu queria ir até lá e fomos, e fazia frio, e você de repente parou e me olhou e me abraçou. E era tão forte o abraço que eu pensei que meu deus, eu não queria sair de lá nunca mais, e eu sei lá por quanto tempo a gente se abraçou, eu sei que foi muito tempo. Ou nem foi. Mas parecia, era assim a eternidade. As camisetas xadrez se encontravam e formavam uma pessoa só, mas é claro que eu não pensei isso, é que vendo tudo isso agora eu penso que aquele foi o dia em que as camisetas xadrez iam formar uma pessoa só, naquela hora eu só pensei: "esse abraço é o meu abraço" e poderia ficar ali pra todo o sempre, mas a gente andou, se abraçou mais uma vez e chegou no banco, que foi quando eu descobri que seu peito era o meu peito e começamos a falar bobagens porque não cabia mais nada além de bobagens naquele sentimento tão grande.

- Me diz, desde quando você usa essas roupas?
- Desde sem-pre
- A blusa xadrez tá uma graça mesmo, mas essa calça não combina nada com você.
- Também acho, muito agarrada.
- Não por isso, você é magrinha. Mas não combina.
- Eu acho, muito agarrada. Tô usando essa blusa de menino pra cobrir a bunda.
- Hahahahaa, não disse? Igualzinha.- Pelo menos a minha calça é de vinil, ó, super chic. Não é couro barato, daqueles que ficam sobrando atrás da batata da perna, sabe como? paguei caro nessa merda.
- Tá bonita. Não combina com você, mas de muito bom gosto.
- Obrigada. Espero que agora você saiba o que é isso, boooom gooostooo!

E voce riu, e me abraçou como se fosse a última pessoa do mundo. Depois riu mais uma vez das minhas calças de vinil, falando que aquelas calças tinham bocas muito estreitas, olha aqui, olha isso, como você entra nessas coisas hein menina? daí eu disse que simples, porque sou magríssima, e assim, meio modelo. Aí você comentou que eu estava me achando demais e eu disse que não, que eu só estava feliz e no meio daquela felicidade não sabia falar de quase nada, daí tinha que falar das minhas calças, e além do mais faz um frio nesse lugar que a gente tem que ficar conversando. Aí você disse que não, que então a gente podia ir embora, além do mais estava tarde, vai que roubam a sua calça de vinil e aí você disse que eu podia entrar dentro da sua jaqueta e eu perguntei como fazia isso, e você disse que era simples, era assim ó, e abriu a sua jaqueta e me abraçou por trás e disse pra mim que agora a gente ia demorar três vezes mais pra chegar em casa (na minha ou na sua?) mas pelo menos não ia sentir frio. E eu disse que aquele momento merecia uma foto, a gente andando assim, tão desajeitado e disse que até tinha uma câmera na bolsa, será que sai a foto, e você disse que mesmo que mais ou menos ia sair e a gente ia saber que aquele foi o dia em que a gente de camisas xadrez e calças horrorosas passou uma das melhores noites da nossa vida e eu disse que poxa, vão ter mais e você disse que claro que ia ter mais muitos mais, mas aquele era o primeiro. Pelo menos assim, de nós dois. E nisso passa uma menina na rua e a gente pergunta se ela quer tirar a foto, mesmo sabendo que ela podia sumir por aí com a minha câmera, pra sempre e ela diz que tira sim e quase me derrubando com o seu desajeito e com o sorriso maior do mundo, seu e meu você disse.

- Tira essa foto agora que a minha menina tá linda aqui dentro de mim.

E eu soube, aquele homem era o meu homem. E eu, a menina dele. E tinha tanto ar e tanto amor dentro de mim que eu não respirava. De tanto. Mas pela primeira vez, era bom.




Aquele abraço, era o meu abraço.

5.9.10

Sonata em três acordes.

Acorde Nº1 (ou o prelúdio)

- E se eu fosse embora pra sempre?
- Você está planejando algum tipo de fuga internacional pra me perguntar isso pela segunda vez?
- Não. Eu só quero saber. E se eu fosse embora pra sempre?
- Eu não sei.
- Não sabe?
- Não, porque você nunca foi embora pra sempre pra eu saber como ia ser.
- Mas você não pode imaginar?
- Posso, mas eu não quero.
- Imaginar?
- É, pensar como seria você ir embora pra sempre.
- Ia ser ruim?
- Penso que sim. Você é meio chato, mas eu gosto de conversar com você.
- Também gosto de conversar com você, de verdade.
- Você diz isso pra eu não me sentir mal.
- Não, eu realmente gosto de conversar com você. Você não é uma idiota completa, é engraçada. Você ainda vai ser alguma coisa bem importante nesse mundo.
- Hahahahahaha, você e as suas manias de importância. Mas obrigada.
- De nada.
- Mas você pensa em um dia ir embora pra sempre?
- Eu sinceramente não sei. Talvez aconteça.
- Eu meio que ia achar uma merda você virar um cara importante longe de mim.
- Eu sei que sou irresistível.
- Não por isso, é que. Eu gosto de você, sabe?
- O vinho te deixa sentimental pra caramba.
- Tanto faz. Talvez a gente não devesse mais pensar nisso.
- Eu prometo que te dou um oi quando eu virar um cara importante. E eu também gosto de você.
- Obrigada. Somos pessoas legais.
- Só quero que você saiba que se um dia eu for embora pra sempre, eu vou sentir saudades de você.
- Eu sei que sou irresistível.
- Impossível falar sério com você.
- Com você também, mas continua. Eu também vou sentir saudades de você, no caso de você ir embora pra sempre.
- Obrigada, mas isso eu já sabia. Nào existe como você não sentir minha falta.
- Convenciiiido!
- Eu queria dizer que eu vou sentir saudades porque não devem existir muitas pessoas como você no mundo.
- Eu não quero que você vá embora pra sempre porque eu duvido que exista alguém como você no mundo. Te gosto pra caralho.

Acorde de Nº2 (ou o fato consumado)

- Era eu começando a viver como se você tivesse ido embora pra sempre. Você não ia?
- Fui.
- E voltou por que?
- Porque eu te disse que o dia que eu fosse embora pra sempre eu ia sentir saudades de você.
- Mas você não disse que ia voltar.
- Eu nunca soube como ia ser quando eu fosse embora pra sempre.
- Você imaginou que eu fosse correr pra você.
- Talvez.
- Eu corri. Foi você que não quis.
- Eu tinha que ir.
- Por que?
- Pra saber como ia ser.
- E como foi?
- Eu estou aqui, não?
- Está. Mas isso não quer dizer muita coisa.
- Quer dizer que eu senti saudades.
- Mas isso você sabia que ia sentir antes de ir.
- Mas eu não sabia que ia me fazer voltar.
- Tinham outras garotas como eu no mundo?
- Nenhuma.
- Com quantas você tentou?
- Várias.
- E como foi?
- É como perder o amor da sua vida todos os dias.

Acorde de Nº3 (ou a profecia)

- E como é perder o amor da sua vida todos os dias?
- Frustrante.
- Só por isso você voltou?
- Talvez.
- Acho que você tem que me dizer mais coisas para que eu te aceite de volta.
- Você pensou em não me aceitar de volta?
- Todos os dias.
- E hoje?
- Também.
- E por que aceitou?
- Porque eu sei que não existe nenhum cara como você no mundo.
- Mesmo depois de tanto tempo?
- Nada mudou.
- Você nào me esperava.
- Foi melhor assim.
- Por que?
- Porque você me apareceu sem que eu precisasse esperar. Justo eu, que esperei por você a minha vida toda.
- E agora?
- Eu não sei, foi você que voltou.
- Mas foi você que me aceitou de volta.
- Mas eu aceitaria de qualquer maneira. Foi você quem voltou por um motivo.
- Você.
- E o que isso quer dizer?
- Eu não sei.
- O que você sente?
- Sua falta.
- O que você quer?
- Te ter.
- Quando você quiser?
- É.
- E quando você quer?
- Sempre.
- Então você pode ficar.
- Pra sempre?
- Por quanto tempo você quiser.
- E se eu for embora?
- Eu vou te esperar.
- E se eu for pra sempre?
- Não existe nenhum outro cara como você no mundo.
- O que você espera de mim?
- Que você fique.
- Só isso?
- Que você não vá mais.
- Eu não quero ir.
- Então você pode ficar.
- Então eu fico.
- Aqui?
- Na sua vida.
- Mais do que o suficiente. Promete não me deixar?
- Prometo.

Canção que cantou em algum janeiro-fevereiro perdido no tempo e no espaço. Literatura.

Justificando

É que eu quero dizer que eu só fiquei amarga assim porque eu estou triste, porque eu nunca, nunca senti tanto a falta de alguém assim na minha vida. É que eu perdi a única coisa que eu amei mais que eu mesma e desde que ele se foi eu não sei mais pra onde ir. E nem sentir eu sei mais. E nem viver eu sei mais. Sequei. Parti junto com ele e não sei quando (e se) volto.

3.9.10

Você só tem tralha nesse seu coração.

Fazia muitos dias desde o dia em que ele se foi e ela só conseguia pensar "meu deus vocês são todos burros, tão indiscriminadamente burros, e desinteressantes, meu deus como são desinteressantes vocês…" e era isso que pensava na janela do quinto andar que dava para uma rua qualquer em São Paulo, Capital, cidade de ares vazios desde. Hoje, sexta feira, não havia bar ou companhia que a tirasse do pensamento isso "vocês são burros e desinteressantes, meu deus como são burros vocês…" e então lhe fazia companhia uma garrafa de cerveja alemã e nenhuma dignidade. Cerveja gelada, no bico, a janela e as meias sujas por vício vestindo os pés mas sem esquentar o coração - esse frio e desinteressantíssimo. E pensava então entre carros e luzes e aquele ar pesado de poluição que ele havia partido "ontem-mesmo" e depois repensava e relembrava que o ontem-mesmo já estava quase completando três anos inteiros e quem tinha ido embora na verdade tinha sido ela. Ela que havia deixado a cidade um dia com uma mala mais ou menos grande, cheia de roupas e sapatos e quase nenhum sonho. Deixou-o ali com o pensamento que percorreu cada pedacinho de linha amarela que formava o caminho até São paulo: "que seja feliz, por deus, que seja muito feliz você". Só pensava, pois foi embora sem se despedir, sem deixar endereço e fez questão de mudar todas as formas de comunicação possíveis, deixando apenas o velho e-mail e o telefone intactos, "pra quem sabe um dia". Pensava que um dia ele poderia lembrar dela no meio daquele monte de coisas que ela decidiu por bem nunca pegar de volta, e quem sabe comunicar-se e achou também muita pobreza de espírito sumir assim de vez e obrigá-lo a fazer uma imensa saga rumo a achar onde estava ela perdida, justo ela, que nunca quis se perder dele - pelo menos não assim, completamente.

E sabe-se lá porque, mas três semanas depois de terminar o último namoro deu de achar todo mundo burro e desinteressantíssimo, foi logo num dia que chegou cansada de viver e ligou pra um desses amigos ocasionais e tentou contar-lhe os problemas, mas ele ouvia a ela como quem ouvia a qualquer pessoa, e fez muito esforço em tentar ajudar - mas de jeito errado. Não que ela estivesse julgando o fato dele ter tentado ajudar, mas foi o "jeito-errado" que naquele dia lhe pesou como duas bigornas nos ombros. Se tivesse ligado pra "ele", "ele" provavelmente não faria nada de diferente, e pior ainda, nem ia fazer esforço em ajudar, mas ela ia sentir pelas linhas de fibras óticas de cabos de telefone que ele sentia um pouco da dor dela, e se compadecia. Então tentaria pegar-lhe na mão com medo de quebrar e ia ficar observando como quem observa um objeto estranho e raríssimo, e sem saber o que fazer não faria nada, mas ela se sentiria confortada pelo resto do tempo que sobrasse. Não sabia também ela porque deu de pensar nele depois de tanto tempo, de quere-lo depois de tanto tempo e de achar todo mundo desinteressante assim depois de tanto tempo. São Paulo tem tanta gente mais legal, mais interessante e até mais bonita que ele. Mais descolada, mais cheia de atitude e com tênis menos bregas. Gosto musicais menos fúteis, com uma noção melhor de valores e principalmente, menos influenciável.

Pensava nele e imaginava como deveria estar e até pensou "deve estar burro e desinteressantíssimo, como todos os outros que eu conheço". "Deve estar pensando em casar, juntar dinheiro pra comprar um carro popular, ou uma moto, nossa, ele tem tanta cara de quem compraria uma moto e carregando outra menina burra e desinteressantíssima pelo braço com o orgulho maior do mundo. É isso que ele deve estar fazendo agora. E planos, e mais planos e depois mais planos e tudo isso sendo nada bem sucedido, naquela cidadezinha onde todo mundo morre sem dinheiro a não ser que tenha nascido com ele. Se é que ele ainda mora naquela cidadezinha, mas deve morar." "Ah, deve morar" Foi isso que ela pensou e quase pensou de novo em ligar o computador e escarafunchar a vida dele, tentando descobrir cada pedacinho de vida que ele tinha agora, mas desistiu. Preferiu terminar a cerveja no copo de plástico sem nenhuma dignidade, ler alguma coisa e sonhar com ele procurando meio mundo atrás dela, tentando achar na agenda o telefone novo do celular dela que ele deve ter anotado em algum lugar e perdido. "Do jeito que ele perde as coisas, já deve até ter me perdido lá dentro dele. Acho que nem me acha mais", foi o que ela pensou, meio bêbada meio sóbria e achando a constatação completamente triste. "Ninguém se perde assim tão fácil dentro de alguém, e ele, poxa, ele não é tão imenso assim. Ele era até bem pequenino. Acho que eu era a maior coisa que ele guardava dentro dele. Só que ele não sabia, vai que ele nunca descobre o meu tamanho e não me acha mais, no meio das tralhas. Daquelas tralhas no coração dele." Foi nessa hora que ela pegou um pedacinho de papel e como quem escreve um bilhete endereçado a ele escreveu com letras enormes "CARA, VOCÊ GUARDA MUITA TRALHA NESSE SEU CORAÇÃO". E ficou olhando um tempo, pensando como ia ser engraçado se um dia ele lesse aquilo. "Muita-tralha-nesse-seu-coração, genial". "Mas guarda mesmo, só tralha tem naquele coração, eu devia chegar lá e dizer pra ele. TRALHA. é isso que você juntou nesses anos, UM MONTE DE TRALHA" . E ria toda vez que pensava nele ouvindo isso, nela falando de tralha. Pensava nele ficando um pouco mal, lembrando das tralhas e sentindo um pouco de vergonha de toda tralha que ele guardou ao longo dos anos, não agüentando nem olhar pra cara dela de tanta vergonha da tralha, daí ela diria "Não importa, sempre dá pra limpar, ou reciclar a tralha, você quer cerveja?" e aí ele aceitaria e bebericariam e ele ia demorar mais três anos inteiros pra dizer que ele desocupou o coração dele das tralhas e que ela podia morar lá agora, que tava limpinho. Depois riu e pensou "Ah, mas ele nunca falaria uma coisa bonita dessas, no máximo ia dizer alguma coisa parecida". E achando tudo muito engraçado e lembrando das pessoas desinteressantíssimas e burras, foi dormir logo depois de gritar "NEM TRALHA VOCÊS TEM NESSES CORAÇÕES DE VOCÊS, VOCÊS SÃO VAZIOS DEMAIS, É ISSO, VAZIOS DEMAIS". E foi, e se sentindo leve dormiu com a roupa do corpo pensando em um coração cheio de tralhas pra desentulhar.

Então no outro dia acordou, sem lembrar muito bem das tralhas que tinha pensado na noite anterior, e como de costume foi checar os e-mails. Três convites pra redes sociais, porcariada do trabalho, piadas "puta merda quem ainda manda piada no e-mail" e de repente um com um assunto inusitado "espero que esse ainda seja o seu e-mail". Nem olhou destinatário nem nada, só abriu e leu. Era uma coisinha pequena, umas quatro ou cinco linhas, que leu meio sem acreditar mas dizia assim:

Oi Fernanda,

Não sei se esse é seu e-mail ainda, eu espero que seja, o MSN eu sei que mudou. Mas é que eu precisava de um favor. Eu consegui um trabalho aí em são paulo, mas eu preciso ver se dá certo antes, e eu só sei de você que mudou pra aí. Pelo menos foi o que me disseram, que você mudou pra São Paulo, virou jornalista, eu li suas colunas esses dias, mas não tinha e-mail lá. Aï mandei pra esse, será que você podia me hospedar uns dias, quer dizer, se não for incomodar nem nada, ou pelo menos me indicar um lugar barato pra eu ficar aí em São Paulo? Eu vou logo na quinta, se você ler esse e-mail me liga é esse telefone aqui, senão eu me viro, morro esfaqueado qualquer coisa assim, mas me viro.

Beijos, Leonardo.

Não se conteve dentro dela mesma e só conseguia pensar "Deve ter desentulhado muita tralha pra ter lembrado de mim" e depois sorriu "ou eu que nunca deixei de ser grande". E respondeu a ele cordialmente, sem mencionar tralhas, ou blilhetes, e sem ao menos perguntar se ele estava burro demais, ou quem sabe, desinteressantíssimo. Só sabia assim, como quem tem certeza que ele tinha desentulhado as tralhas e que não vinha encontra-la portanto nenhuma menina burra e mega desinteressante pelo braço, senão não tinha mandado e-mail nenhum, tinha é alugado um muquifo com suas últimas economias e ficado por lá, depois dia dizer "ih, não sabia que você tava morando em são paulo, senão tinha te ligado", bem típico, por medo de perder a tralha que guardava no coração. Pois passaram-se três dias e ele chegou, de taxi, bem independente como lhe era de costume, mesmo com ela tendo falado mil vezes que buscava ele na rodoviária. "Vai ver ele achou que ia ficar desconfortabilíssimo a gente no mesmo carro, ele sem saber o que falar", daí mal ela assustou e ele chegou na porta dela, com aquela mesmo mochila de dez anos atrás nas costas e uma mala pequena, quase que dizendo "vou-embora-em-cinco-dias", e ela achou foi engraçado aquele jeito de cidadezinha que ele ainda tinha porque logo que chegou ele disse "nossa, como é grande aqui, não lembrava que era tão grande" e ela só sorriu e disse "ah, mas você se acostuma, logo fica pequenininha essa cidade, e chaaaata…" e então pegou as malas dele, botou no quarto, perguntou se ele queria café, ele aceitou, nunca recusou um café na vida. E então conversaram e conversaram e depois conversaram um pouco mais e ele então resolveu perguntar "mas você jura que eu não vou atrapalhar de ficar aqui, não sei, de repente você tem um namorado" e ela então sorrindo completou "Não, há três semanas atrás ia ter problema sim, mas agora eu já desentulhei tudo, não tem mais tralha dele aqui em casa, e nem no coração" depois, lembrando da última sexta feira disse ainda "além do mais, as pessoas aqui são chatas e desinteressantíssimas, vai ser bom, sabe, ter companhia". E passaram se dias, e depois de dividirem a mesma casa, sem perceberem estavam dividindo a mesma vida, as rotinas, os cafés e as pontas do sofá. Acostumaram-se. Um dia ele foi limpar os papéis na mesa dela, e enquanto pensava "meu deus, como é desorganizada essa menina, não sei como se acha aqui no meio dessa bagunça" e nisso encontrou um papel rosa, escrito em caneta preta bem rabiscado e em letras enormes "Cara, você guarda muita tralha nesse seu coração" e riu que não se agüentava, como era de costume, e então foi correndo perguntar pra ele que maluquice era aquela de tralha e coração, e ela no meio da cumplicidade que nem percebeu que tinha se (re)instalado disse "isso daí é pra você. Escrevi uns dias antes de sequer saber que você ainda lembrava que eu existia, achei que você tinha me perdido no meio das tralhas. Era genial, eu ia dizer bem gritando assim, olha aqui, tem muita tralha nesse seu coração, garoto!"

E então ele olhou pra ela, e ela percebeu que o olhar ficou sério, e na hora que ela ia rir e dizer que "não-tem-problema-tem-sempre-como-reciclar-a-tralha-quer-uma-cerveja?" ele abaixou a cabeça e disse "é, tinha mesmo" e ficou ali, estático, sem saber o que fazer, olhando aquela coisa enorme que morava dentro dele, mas que hoje estava fora, rindo e falando de tralhas. Ela pegou uma cadeira, sentou do lado dele, encostou no ombro e disse "tudo bem vai, não eram tralhas" e ele só respondeu "ah, eram sim, eu juntei um monte de tralha nesses anos… a única coisa que…" e abaixou a cabeça e então ela não podia deixar de pensar nele falando que agora tinha desocupado tudo e que tava limpinho, e que ela podia morar lá. Mas não disse nada e só completou "a única coisa que…?" e olhando pro chão ele disse "a única coisa que não era tralha ali no meio era você, e bagunceira do jeito que você é, você sempre aparece no meio de qualquer tralha que seja, não tinha como não te ver, garota.. Espaçosa…". E riu. Riu um riso tímido de quem não sabe falar de amor, mas sabe arrumar a bagunça e deixar a mesa com bilhetes engraçadinhos. Depois disso ela abraçou ele com gosto, e num soquinho disse "agora vê se não vai lotar de tralha tudo de novo, por favor, depois você não me acha mais" e totalmente confortável no abraço imenso dela, ele só completou "não, pode deixar, eu já descobri que meu destino é desocupar as tralhas pra você não se perder mais, dentro de casa… e no meu coração". E bebendo cerveja, sete sextas feiras depois daquelas, continua achando todas as pessoas burras, e desinteressantíssimas e resmunga, "vocês são muio burros, e desinteressantes, meu deus do céu como são desinteressantes" E de repente olha pra baixo e enxerga são paulo como um depósito, cheio de tralha. E olha pra sua mesa arrumada, ele dormindo no sofá e grita "vocês não tem nem tralha nesses corações de vocês, são vazios. EU TENHO O MUNDO" e deitada do lado dele, sente a paz, a eternidade enfim. Fodam-se as tralhas.