Aconteceu assim, como se não tivesse acontecido e partistes, rápida como sua fala desesperada que nos acompanhava em cada reunião que insistias que fizessemos. Nunca te fui próxima, nem quando criança, de proximidade forçada. Eu existia ali e gostava, porque de certa forma meus domingos com cheiro de perfume velho com pó-de-arroz tinham lembranças muito vívidas de quartos fechados com armários cheios de bolas para que pudéssemos chutar, ou inventar qualquer nova brincadeira que fosse. Sempre gostei mesmo das companhias e da aura de estar em família que aquilo sempre proporcionou. Nunca me senti pertencida, tenho que dizer. Foram sempre pessoas muito mais extrovertidas do que eu, e eu sempre calada tímida e muito apegada à minha mãe sempre senti que de certa forma aquele não era o meu lugar.
Não me passastes vícios. Nunca me ensinou a fazer coisa alguma que hoje posso dizer que não teria aprendido, não fosse a sua mão. Guardo de domingos alguns cheiros, padarias, leites com nescau e primos que comigo conviviam como irmãos. Guardo quartos, conversas, churrascos. Sei que algumas lembranças minhas de infância não teriam existido não fossem as reuniões na sua casa. Mas não são lembranças suas. São lembranças minhas, com outras pessoas, na sua casa. Creio que não tenha acontecido porque querias. Simplesmente aconteceu. E até te digo que várias vezes imaginei outras pessoas tão melhores em seu lugar. Imaginei sim.
Imaginei porque venho de um ambiente sem cobranças e cheio de presentes. Sempre gostei da liberdade, da nao obrigação, e das lições de vida e não morais que me ensinavam em outra casa com quem tinhamos o mesmo parentesco. E então nunca me cobraram um ser meu que não era ser eu, mesmo que não concordassem. E criaram assim uma viciada em cafeína, amante dos frios e latícineos, com um bom humor inabalável e leitora assídua dos jornais matinais.
Mas tenho que dizer que de ti tenho geneticamente certos traços. Falo demais, alto demais, expansiva demais. Mas preciso criar confiança para. Sou teimosa, julgo. Tenho defeitos que sempre odiei em ti. Tenho que te dizer que várias vezes me irritastes como não se pode irritar alguem que ama. Já quis te dizer que não vives a vida dos outros e que eu nao nasci católica e nem pretendo o ser, tampouco quero comer muito ou mesmo ser batizada ou até encontrar um namorado que se pareça mais comigo. Nunca te dei o direito de me dizer o que fazer porque nunca me conhecestes. Então pouco podias saber sobre o namorado que eu precisava, ou quando eu deveria casar, ou mesmo a religião que eu deveria escolher. Nunca soube nada de mim em vinte anos mas tinhamos uma relação de parentesco.
Vou dizer que vou sim sentir falta dos meus domingos com cheiro de perfune velho, daqueles que vem em vidros trabalhadinhos. Vai existir a ausência do "deus te abençoe" dito para mim como quem tem certeza de que eu não acredito. Vou sentir falta da proximidade que achavas que tinha construído quando não construiu, e vou achar incrivelmente vazio os dias em que não me dará dores de cabeça de tanto falar rápido e muito e de coisas passadas que nada tinham a ver com o assunto. Vou sentir falta da perocupação em eu ter comido ou não e se estavam ou não sujando o meu papel, porque eu sempre estava escrevendo, quando perto de ti. Vou sentir falta até da cordialidade com o meu namorado que depois de desvairava em criticas e preocupações sobre o casamento. Sei que era só teu jeito estranho de gostar, e não te culpo.
Meus domingos não terão mais teu cheiro e tua implicância e ganharei duas horas vazias que já não mais serão preenchidas com você, vó. Que partiu com a mesma pressa que tinha para se contar, mas que deixará um silêncio imenso dentro de nós, que no fundo, mesmo que reclamássemos de seu barulho, preferíamos não estar ouvindo.
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