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3.9.10

Você só tem tralha nesse seu coração.

Fazia muitos dias desde o dia em que ele se foi e ela só conseguia pensar "meu deus vocês são todos burros, tão indiscriminadamente burros, e desinteressantes, meu deus como são desinteressantes vocês…" e era isso que pensava na janela do quinto andar que dava para uma rua qualquer em São Paulo, Capital, cidade de ares vazios desde. Hoje, sexta feira, não havia bar ou companhia que a tirasse do pensamento isso "vocês são burros e desinteressantes, meu deus como são burros vocês…" e então lhe fazia companhia uma garrafa de cerveja alemã e nenhuma dignidade. Cerveja gelada, no bico, a janela e as meias sujas por vício vestindo os pés mas sem esquentar o coração - esse frio e desinteressantíssimo. E pensava então entre carros e luzes e aquele ar pesado de poluição que ele havia partido "ontem-mesmo" e depois repensava e relembrava que o ontem-mesmo já estava quase completando três anos inteiros e quem tinha ido embora na verdade tinha sido ela. Ela que havia deixado a cidade um dia com uma mala mais ou menos grande, cheia de roupas e sapatos e quase nenhum sonho. Deixou-o ali com o pensamento que percorreu cada pedacinho de linha amarela que formava o caminho até São paulo: "que seja feliz, por deus, que seja muito feliz você". Só pensava, pois foi embora sem se despedir, sem deixar endereço e fez questão de mudar todas as formas de comunicação possíveis, deixando apenas o velho e-mail e o telefone intactos, "pra quem sabe um dia". Pensava que um dia ele poderia lembrar dela no meio daquele monte de coisas que ela decidiu por bem nunca pegar de volta, e quem sabe comunicar-se e achou também muita pobreza de espírito sumir assim de vez e obrigá-lo a fazer uma imensa saga rumo a achar onde estava ela perdida, justo ela, que nunca quis se perder dele - pelo menos não assim, completamente.

E sabe-se lá porque, mas três semanas depois de terminar o último namoro deu de achar todo mundo burro e desinteressantíssimo, foi logo num dia que chegou cansada de viver e ligou pra um desses amigos ocasionais e tentou contar-lhe os problemas, mas ele ouvia a ela como quem ouvia a qualquer pessoa, e fez muito esforço em tentar ajudar - mas de jeito errado. Não que ela estivesse julgando o fato dele ter tentado ajudar, mas foi o "jeito-errado" que naquele dia lhe pesou como duas bigornas nos ombros. Se tivesse ligado pra "ele", "ele" provavelmente não faria nada de diferente, e pior ainda, nem ia fazer esforço em ajudar, mas ela ia sentir pelas linhas de fibras óticas de cabos de telefone que ele sentia um pouco da dor dela, e se compadecia. Então tentaria pegar-lhe na mão com medo de quebrar e ia ficar observando como quem observa um objeto estranho e raríssimo, e sem saber o que fazer não faria nada, mas ela se sentiria confortada pelo resto do tempo que sobrasse. Não sabia também ela porque deu de pensar nele depois de tanto tempo, de quere-lo depois de tanto tempo e de achar todo mundo desinteressante assim depois de tanto tempo. São Paulo tem tanta gente mais legal, mais interessante e até mais bonita que ele. Mais descolada, mais cheia de atitude e com tênis menos bregas. Gosto musicais menos fúteis, com uma noção melhor de valores e principalmente, menos influenciável.

Pensava nele e imaginava como deveria estar e até pensou "deve estar burro e desinteressantíssimo, como todos os outros que eu conheço". "Deve estar pensando em casar, juntar dinheiro pra comprar um carro popular, ou uma moto, nossa, ele tem tanta cara de quem compraria uma moto e carregando outra menina burra e desinteressantíssima pelo braço com o orgulho maior do mundo. É isso que ele deve estar fazendo agora. E planos, e mais planos e depois mais planos e tudo isso sendo nada bem sucedido, naquela cidadezinha onde todo mundo morre sem dinheiro a não ser que tenha nascido com ele. Se é que ele ainda mora naquela cidadezinha, mas deve morar." "Ah, deve morar" Foi isso que ela pensou e quase pensou de novo em ligar o computador e escarafunchar a vida dele, tentando descobrir cada pedacinho de vida que ele tinha agora, mas desistiu. Preferiu terminar a cerveja no copo de plástico sem nenhuma dignidade, ler alguma coisa e sonhar com ele procurando meio mundo atrás dela, tentando achar na agenda o telefone novo do celular dela que ele deve ter anotado em algum lugar e perdido. "Do jeito que ele perde as coisas, já deve até ter me perdido lá dentro dele. Acho que nem me acha mais", foi o que ela pensou, meio bêbada meio sóbria e achando a constatação completamente triste. "Ninguém se perde assim tão fácil dentro de alguém, e ele, poxa, ele não é tão imenso assim. Ele era até bem pequenino. Acho que eu era a maior coisa que ele guardava dentro dele. Só que ele não sabia, vai que ele nunca descobre o meu tamanho e não me acha mais, no meio das tralhas. Daquelas tralhas no coração dele." Foi nessa hora que ela pegou um pedacinho de papel e como quem escreve um bilhete endereçado a ele escreveu com letras enormes "CARA, VOCÊ GUARDA MUITA TRALHA NESSE SEU CORAÇÃO". E ficou olhando um tempo, pensando como ia ser engraçado se um dia ele lesse aquilo. "Muita-tralha-nesse-seu-coração, genial". "Mas guarda mesmo, só tralha tem naquele coração, eu devia chegar lá e dizer pra ele. TRALHA. é isso que você juntou nesses anos, UM MONTE DE TRALHA" . E ria toda vez que pensava nele ouvindo isso, nela falando de tralha. Pensava nele ficando um pouco mal, lembrando das tralhas e sentindo um pouco de vergonha de toda tralha que ele guardou ao longo dos anos, não agüentando nem olhar pra cara dela de tanta vergonha da tralha, daí ela diria "Não importa, sempre dá pra limpar, ou reciclar a tralha, você quer cerveja?" e aí ele aceitaria e bebericariam e ele ia demorar mais três anos inteiros pra dizer que ele desocupou o coração dele das tralhas e que ela podia morar lá agora, que tava limpinho. Depois riu e pensou "Ah, mas ele nunca falaria uma coisa bonita dessas, no máximo ia dizer alguma coisa parecida". E achando tudo muito engraçado e lembrando das pessoas desinteressantíssimas e burras, foi dormir logo depois de gritar "NEM TRALHA VOCÊS TEM NESSES CORAÇÕES DE VOCÊS, VOCÊS SÃO VAZIOS DEMAIS, É ISSO, VAZIOS DEMAIS". E foi, e se sentindo leve dormiu com a roupa do corpo pensando em um coração cheio de tralhas pra desentulhar.

Então no outro dia acordou, sem lembrar muito bem das tralhas que tinha pensado na noite anterior, e como de costume foi checar os e-mails. Três convites pra redes sociais, porcariada do trabalho, piadas "puta merda quem ainda manda piada no e-mail" e de repente um com um assunto inusitado "espero que esse ainda seja o seu e-mail". Nem olhou destinatário nem nada, só abriu e leu. Era uma coisinha pequena, umas quatro ou cinco linhas, que leu meio sem acreditar mas dizia assim:

Oi Fernanda,

Não sei se esse é seu e-mail ainda, eu espero que seja, o MSN eu sei que mudou. Mas é que eu precisava de um favor. Eu consegui um trabalho aí em são paulo, mas eu preciso ver se dá certo antes, e eu só sei de você que mudou pra aí. Pelo menos foi o que me disseram, que você mudou pra São Paulo, virou jornalista, eu li suas colunas esses dias, mas não tinha e-mail lá. Aï mandei pra esse, será que você podia me hospedar uns dias, quer dizer, se não for incomodar nem nada, ou pelo menos me indicar um lugar barato pra eu ficar aí em São Paulo? Eu vou logo na quinta, se você ler esse e-mail me liga é esse telefone aqui, senão eu me viro, morro esfaqueado qualquer coisa assim, mas me viro.

Beijos, Leonardo.

Não se conteve dentro dela mesma e só conseguia pensar "Deve ter desentulhado muita tralha pra ter lembrado de mim" e depois sorriu "ou eu que nunca deixei de ser grande". E respondeu a ele cordialmente, sem mencionar tralhas, ou blilhetes, e sem ao menos perguntar se ele estava burro demais, ou quem sabe, desinteressantíssimo. Só sabia assim, como quem tem certeza que ele tinha desentulhado as tralhas e que não vinha encontra-la portanto nenhuma menina burra e mega desinteressante pelo braço, senão não tinha mandado e-mail nenhum, tinha é alugado um muquifo com suas últimas economias e ficado por lá, depois dia dizer "ih, não sabia que você tava morando em são paulo, senão tinha te ligado", bem típico, por medo de perder a tralha que guardava no coração. Pois passaram-se três dias e ele chegou, de taxi, bem independente como lhe era de costume, mesmo com ela tendo falado mil vezes que buscava ele na rodoviária. "Vai ver ele achou que ia ficar desconfortabilíssimo a gente no mesmo carro, ele sem saber o que falar", daí mal ela assustou e ele chegou na porta dela, com aquela mesmo mochila de dez anos atrás nas costas e uma mala pequena, quase que dizendo "vou-embora-em-cinco-dias", e ela achou foi engraçado aquele jeito de cidadezinha que ele ainda tinha porque logo que chegou ele disse "nossa, como é grande aqui, não lembrava que era tão grande" e ela só sorriu e disse "ah, mas você se acostuma, logo fica pequenininha essa cidade, e chaaaata…" e então pegou as malas dele, botou no quarto, perguntou se ele queria café, ele aceitou, nunca recusou um café na vida. E então conversaram e conversaram e depois conversaram um pouco mais e ele então resolveu perguntar "mas você jura que eu não vou atrapalhar de ficar aqui, não sei, de repente você tem um namorado" e ela então sorrindo completou "Não, há três semanas atrás ia ter problema sim, mas agora eu já desentulhei tudo, não tem mais tralha dele aqui em casa, e nem no coração" depois, lembrando da última sexta feira disse ainda "além do mais, as pessoas aqui são chatas e desinteressantíssimas, vai ser bom, sabe, ter companhia". E passaram se dias, e depois de dividirem a mesma casa, sem perceberem estavam dividindo a mesma vida, as rotinas, os cafés e as pontas do sofá. Acostumaram-se. Um dia ele foi limpar os papéis na mesa dela, e enquanto pensava "meu deus, como é desorganizada essa menina, não sei como se acha aqui no meio dessa bagunça" e nisso encontrou um papel rosa, escrito em caneta preta bem rabiscado e em letras enormes "Cara, você guarda muita tralha nesse seu coração" e riu que não se agüentava, como era de costume, e então foi correndo perguntar pra ele que maluquice era aquela de tralha e coração, e ela no meio da cumplicidade que nem percebeu que tinha se (re)instalado disse "isso daí é pra você. Escrevi uns dias antes de sequer saber que você ainda lembrava que eu existia, achei que você tinha me perdido no meio das tralhas. Era genial, eu ia dizer bem gritando assim, olha aqui, tem muita tralha nesse seu coração, garoto!"

E então ele olhou pra ela, e ela percebeu que o olhar ficou sério, e na hora que ela ia rir e dizer que "não-tem-problema-tem-sempre-como-reciclar-a-tralha-quer-uma-cerveja?" ele abaixou a cabeça e disse "é, tinha mesmo" e ficou ali, estático, sem saber o que fazer, olhando aquela coisa enorme que morava dentro dele, mas que hoje estava fora, rindo e falando de tralhas. Ela pegou uma cadeira, sentou do lado dele, encostou no ombro e disse "tudo bem vai, não eram tralhas" e ele só respondeu "ah, eram sim, eu juntei um monte de tralha nesses anos… a única coisa que…" e abaixou a cabeça e então ela não podia deixar de pensar nele falando que agora tinha desocupado tudo e que tava limpinho, e que ela podia morar lá. Mas não disse nada e só completou "a única coisa que…?" e olhando pro chão ele disse "a única coisa que não era tralha ali no meio era você, e bagunceira do jeito que você é, você sempre aparece no meio de qualquer tralha que seja, não tinha como não te ver, garota.. Espaçosa…". E riu. Riu um riso tímido de quem não sabe falar de amor, mas sabe arrumar a bagunça e deixar a mesa com bilhetes engraçadinhos. Depois disso ela abraçou ele com gosto, e num soquinho disse "agora vê se não vai lotar de tralha tudo de novo, por favor, depois você não me acha mais" e totalmente confortável no abraço imenso dela, ele só completou "não, pode deixar, eu já descobri que meu destino é desocupar as tralhas pra você não se perder mais, dentro de casa… e no meu coração". E bebendo cerveja, sete sextas feiras depois daquelas, continua achando todas as pessoas burras, e desinteressantíssimas e resmunga, "vocês são muio burros, e desinteressantes, meu deus do céu como são desinteressantes" E de repente olha pra baixo e enxerga são paulo como um depósito, cheio de tralha. E olha pra sua mesa arrumada, ele dormindo no sofá e grita "vocês não tem nem tralha nesses corações de vocês, são vazios. EU TENHO O MUNDO" e deitada do lado dele, sente a paz, a eternidade enfim. Fodam-se as tralhas.

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