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14.10.10

De guarda-chuva vermelho.

- é que tem tanta gente-escritora nesse mundo que nem sei.

- você é diferente do resto da gente-escritora.

- não sou não, porque no fundo, todo mundo sente a mesma merda, o mesmo vazio. Veio do nada, sabe. Vai pro nada também. típico. Todo mundo escreve sobre os entremeios.

- os seus entremeios são diferentes.

- não são, são a mesma merda. Meia duzia de escolhas erradas, solidão, eu-não-pertenço-à-esse-lugar que depois evolui pra um eu-não-pertenço-à-esse-mundo e aí tem aquele vazio enorme de existir e no meio disso tudo uns amores frustrados.

- você poetisa seus entremeios de um jeito diferente.

- me acho tão igual o resto-todo. e não só a gente-escritora não. to falando. me acho igual à gente-toda.

- se tu fosse igual à gente-toda, eu não tinha te escolhido.

- e tu parece que não sabe, que quando as pessoas se apaixonam pelas outras elas vêem tudo diferente nessa pessoa, por mais que ela seja igualzinha à gente-toda.

- e eu te notei como?

- sorte, destino, grande junção dos polos, o encontro de saturno. Vai saber que merda, mas a grande verdade é que a gente tava andando na rua, sentou no mesmo café, você achou aquilo um grande-encontro-cósmico e veio comentar sobre o grande-encontro-cósmico comigo, e disse bem assim: "qual é a chance, no meio desse universo de bilhões de pessoas, nós dois, estivéssemos desde o meio do caminho nos dirigindo ao mesmo lugar, e usando guarda-chuvas vermelhos?" eu nem ia te dar confiança, mas você usava guarda-chuva vermelho e isso denotava qualquer uma das quatro qualidades que eu ressalto em um ser humano: ou tu era engraçadinho, ou excêntrico, ou tava usando o guarda chuva da tua mãe, ou era pão duro mesmo. Porque ninguém, além de mim, sairia de casa com um guarda-chuva vermelho. E homem ainda.

- tu nunca me contou isso.

- tu nunca me disse porque tinha o guarda chuva.

- comprei numa promoção, achei bonito, dei pra minha mãe e continuei usando.

- todas as alternativas anteriores. Eu tava é bem certa quando te dei confiança.

- eu só fui conversar com você porque você rabiscava loucamente um pedacinho de papel, depois de procurar incessantemente uma caneta como quem procurava a saída de um túnel pra escapar da morte. O lance do encontro-cósmico era pra puxar assunto.

- e o que é escrever senão tentar achar incessantemente a saída de um túnel pra escapar da morte? E você nunca soube o que eu escrevi ali.

- soube sim.

- soube nada!

- você foi no banheiro, eu li. dizia "chove mil e novecentos litros e eu ainda não aprendi a sair de bota, esses all-star molhando meu pé todo. No caminho, enquanto tocava yellow do chris martin

- totalmente típico - e eu me molhava de capuz pensando estar na praia, mas não era praia nenhuma, era concreto-e-asfalto. Na minha frente vinha um guri, ele tava todo vestido de preto, tinha uns cabelos ondulados bonitos (acho que eram ondulados, ele tava de capuz também ) de all star (deve estar molhadíssimo) e guarda-chuva vermelho, igualzinho ao meu. Eu fico pensando que um homem que tem um guarda chuva vermelho só pode ter uma das quatro caracteristicas que eu prezo num ser humano: ou é engraçadinho, ou é excentrico, ou pegou da mãe ou é pão duro mesmo. Ele sentou do meu lado. Se fosse um filme a gente ia se falar, derrubar café um-no-outro e comentar dos guarda-chuvas vermelhos. Ele ia ser o grande-amor-da-minha-vida. Mas só vou voltar pra casa e comentar com alguém que era bem bonitinho aquele menino do guarda chuva vermelho. Daí nunca mais vou ver na vida. Já perdi assim setenta e sete grandes amores da minha vida. Não vai ser por falta desse"

- você guardou o guardanapo, por isso que eu nunca-mais achei! também esqueci dele, tava meio encantada com você, seu guarda chuva e seu papo que tropeçava toda vez no final da frase, vinha uma gaguejada. Eu fingia que não tava percebendo e tomava café.

- Agora tu vai e diz que um amor que começou com esse trecho-escrito é de gente-toda. É de gente-escritora, do tipo que encara cada palavra como uma saída de um túnel que te salva da morte.

- Digo sim, sou gente. gente-toda. igualzinha essa gente aí.

- Tu usa um guarda-chuva vermelho. quem no mundo usa um guarda-chuva vermelho?

- Tu.

- É por isso que eu quis te encontrar. É que eu queria que todos os nossos dias fossem um pedaço de guardanapo narrados por você.

- Tu gosta-tanto das coisas que eu escrevo assim?

- Gosto de você e com você vem esse teu jeito de escrever, de amarrar as palavras como se tu soubesse exatamente que verbo e preposição usar depois de cada uma delas e parece que você escolhe cada uma delas como um balé, depois tira pra dançar. E você fala assim, e dedica as coisas assim, desse seu jeito de ficar parada e depois soltar uma frase-perfeita e eu te digo que desde o dia que eu li aquele guardanapo e guardei que eu viveria o resto da vida pra ouvir você contar essas suas palavras, palavra por palavra, como se cada uma delas fosse um passo pra me salvar de um túnel que leva a morte.

- Tais errado.

- Por que?

- Tu que não é igual a gente-toda. E eu soube que tu era diferente desde o dia que eu te vi ali de capuz e guarda chuva vermelho, você tem um jeito tão esquisito de se comportar, você anda como se você tivesse medo de tudo, do mundo. Tava encolhidinho debaixo da roupa preta, todo curvado, de all-star encharcado e nem olhava pros lados. Aí toda vez que me via dava de abaixar a cabeça como se eu fosse te roubar, ou qualquer coisa que fosse. E você ali, todo escondido, nem dava pra te ver. Só pelo guarda chuva, o guarda chuva te mostrava pro mundo e tu não queria. Mas eu te vi. E soube, tu é diferente da gente-toda.

- Mas eu não tenho nenhum talento especial, só essas coisas que eu faço e nunca dão certo, e esse meu jeito esquisito de querer te levar pra conhecer todas as coisas do mundo, como se o mundo fosse acabar daqui três minutos, é que às vezes eu esqueço que eu tenho o resto da vida pra compartilhar com você e às vezes também acho o resto da vida tão pouco, e eu te acho tão interessante que parece que eu tenho que retribuir isso com essas coisas que eu conheço, esses filmes, esses livros, durante esse tempo que você tá atarantada com as suas coisas que não são exatamente a literatura,mas são outras, que você gosta tanto-quanto. E eu sou só um cara normal, eu trabalho numa agência e tudo e dou aula no resto do tempo e você tem as suas roupas e os seus filmes, seus livros, seus roteiros. Eu preciso te dar o mundo em troca.

- E você me dá;

- Dou?

- Tu não percebeu ainda não? Aquele guardanapo, eu só escrevi porque você tava lá. O resto também, o resto eu só escrevo porque você existe. E as outras coisas, elas também só me deixam feliz porque você me dá forças, é que você tem que entender é que você faz a minha história. Eu só escrevo ela. Enfeitadinha.

- É que eu te amo.

- É que eu te amo de volta.

- É que você é a minha pessoa. No meio da gente-toda.

- É que você é meu guarda-chuva vermelho. No meio da gente-toda.

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