Quando eu ligo pra ele, ele sabe, é porque as coisas entornaram o caldo de vez. "Entornar o caldo", expressão típica da minha mãe que eu uso muito porque fui criada com gente velha. O telefone tocou uma vez só, mas dessa vez nem foi tanto por mim; eu tava preocupada porque ele me disse que tava doente, vomitou no trabalho, sentia febre. Ele diz do outro lado da linha com uma tranquilidade inquietante "É princípio de pneumonia, mas não precisa se preocupar não, não é como se fosse pneumonia de fato, é só, bem, um princípio". Eu louca do outro lado da linha pensando "como pode, a pessoa quase perdendo os pulmões, vai que vira pneumonia de verdade e ele morre, vou viver sem ele como? Vou ter que pegar um avião e, imagina que trágico, pegar um avião pra ir pra cidade dele justamente quando ele já está morto e estirado num caixão. Nosso primeiro encontro na cidade dele seria um encontro-morte". Melhor nem pensar. Fato é que eu acabaria nem indo em enterro nenhum caso ele morresse. Capaz da mãe dele, ainda mais neurótica do que eu sequer sonhei ser, me dizer que a culpa foi minha, que ele morreu de tristeza porque eu sou uma asna. E eu ia bem concordar. Ia concordar porque concordo com qualquer um que me bote a culpa. Vivo até hoje sonhando em acordar maravilhosa do "mal estar da noite passada" e limpar com esfregão e veja multi-uso todo e qualquer vestígio de sujeira que fiz naquele apartamento de pintura rosa por fora e carpete no elevador. Mil pessoas já me disseram "olha, a culpa não foi sua". Até meu médico. Segundo ele, naquelas condições, eu não teria nem forças pra me salvar de um desastre, de um caminhão que fosse. Eu ri e suspirei aliviada. Nem tão aliviada assim, entretanto. Fico com essa culpa aí. "Se fosse um caminhão e eu não tivesse corrido eu tinha morrido pelo menos. Não limpei uma merda de uma casa e lá se vai quase um ano da mais pura e genuína culpa. Mil vezes o caminhão".
Ele me atendeu solicito como sempre, me deixou contar de tudo aquilo que não importa a mais ninguém. Me disse umas coisas sobre a mãe dele, que ela chega lá no médico e fica dizendo que é isso, ele não se cuida, toma três litros de coca-cola por dia, fuma, não se cuida. Ele ali me dizendo bravíssimo que nunca mais tomou coca-cola e nem fumou. Tudo culpa minha. Sinto vontade esfregar na cara da neurótica que todo o progresso do filho dela teve um pouco de mim. Tenho mais vontade esfregar na cara dele que tudo que eu sou de bom hoje tem um pouco dele, mas acabo deixando pra lá. Eu ria no telefone, ele sempre diz umas coisas que me faz pensar que a gente podia ser um casal tipo esses do "before sunset, before sunshine" e tal, qualquer coisa dessas assim. Daí penso que não fomos, esqueço os reais motivos de porque não fomos e boto na minha conta de novo. Culpa minha que fui inventar de amar outro cara sendo que ele sim era o real amor da minha vida. Tenho uma porrada de culpas. Se fosse num bom analista acho que eu acabaria por vomitar no fim de toda sessão, de tanta angústia. Não indo em analista me resta ligar pra essas pessoas que nem fazem mais tão parte assim da minha vida por preguiça de explicar tudo isso p'ras novas. Ninguém entende. Até entendem, mas deixa quieto tudo isso. Mas fácil ligar pra alguém que diferencia a risada-nervosa da risada-risada. Ele me acalmou, fez as piadas de sempre, me disse que sábados eram os piores dias da semana pra quem não sai-cai-bebe-morre e pra quem não tem namorado, daí eu concordei. Fiquei pensando em como seriam horríveis os sábados depois do fim da minha novela preferida. Ia ter que ficar chamando gente pra sair, eu odeio chamar gente pra sair. Pensei "quando a gente namorava era mais fácil". Depois des-pensei. Do jeito que eu ando, se volto com um relacionamento desses é capaz de nada acabar antes que haja um homicídio, sangue espalhado por toda a sala, tipo filme do tarantino. Não dá, né. Gente destrutiva não pode fazer nada. Também é querer demais. No começo do ano eu não conseguia "nem se salvar de um desastre, nem se viesse um caminhão atrás de você" e agora fico aí, querendo resolver a vida. Não vai ser assim.
Fico falando pra ele sobre as minhas teorias sobre pós modernidade, e ele gosta de ouvir. Gosta de ouvir tudo que eu falo. Acho que foi ele que um dia me disse que poderia ficar me escutando pelo resto da vida. Ou não foi e eu inventei. Bem capaz de eu ter inventado. Eu inventei algumas coisas na nossa relação depois que ela acabou. Algumas aconteceram de verdade. Em um dos nossos primeiros encontros eu vomitei na minha blusa. Era isso. Na blusa. Vomitei na blusa e escondi. Ele não ligou. Não me mandou limpar, jogar a blusa fora. Só aceitou. Intolerantes a lactose por vezes vomitam na blusa e é isso. Acho que ele até me beijou antes mesmo de eu passar água na boca. Esqueceu o ocorrido. Amor é um pouco isso, creio eu. Um pouco de escatologia. Sorver os fluídos do outro. Sorver (quase) qualquer coisa que o outro tenha a oferecer. Foi depois desse dia que eu resolvi deixar de ter vergonha dele. Hoje é assim, falo qualquer coisa que eu pensar. É por isso que se eu ligo pra alguém tem de ser pra ele. Não, não tem nada de "amor da minha vida", nem nada disso. Desprendi. O último cara que eu resolvi botar no patamar de "amor da minha vida" me estragou a vida, o universo e tudo o mais de um jeito que eu não gosto nem de lembrar. Coloco a culpa em mim de novo. Não sei fazer de outro jeito.
Mas de repente era aquilo. Eu olhando meu ano em que nada deu certo, tendo que admitir fracassos e depressões, tendo que saber que mesmo eu sendo uma louca control-freak "nem se um caminhão ameaçasse te atropelar você fugiria", e seguindo a vida. Fico com inveja (e medo) de todo mundo que tem um plano traçado, muitas certezas. "Ano que vem eu vou ser uma profissional". Fico eu aqui pensando que não sei nem se amanhã vou estar viva e todo mundo aí se gabando de coisas que ainda não conquistou. Me dá raiva. Eu tinha raiva dos planos bem traçadinhos de todo mundo, desse pertencimento louco. Todo mundo curtindo as bandas que vão pro festival e eu sem saber o nome delas. Todo mundo querendo trabalhar numa grande empresa e clamando por rotina e eu querendo, se possível, não ter nem uma casa com o meu nome pra não ter obrigação de me fixar. Os carros na minha rua bradando Gagnam Style e eu morrendo por dentro a cada acorde: não gosto. Remoo coisas também. Fico pensando como teria sido se tivesse dado tudo certo do jeito que eu planejei. Estaria eu feliz na minha cidade nova, com rotina, apartamento alugado, conta pra pagar e saudades dos pais? Não sei dizer. Dia desses me veio um telefonema de DDD 19 e eu fiquei pensando "e se fosse ele?". Não quis ligar pra confirmar. Fiquei dessas loucas que põe a vida na mão do destino e vão vivendo. "Se for pra ser". Maior das bobagens que eu consigo proferir na vida, mas profiro. Meus planos deram errado, meus amores da vida hoje têm um par pra comprar chicken nuggets no mercado e eu fico aqui, pedindo boa noite pra ex-amor no telefone quando tenho medo de dormir.
Tenho umas saudades reticentes que vêm toda vez que eu penso em coisas esparsas como a narcisa tamborindeguy, músicas do raça negra, cervejas artesanais, frutos do mar e o jean paul sartre. Daí penso que todas essas pessoas que eu coloco na minha vida são um jeitinho torto de não admitir que eu não queria nenhum deles, e sim, talvez: ele. Só que não sei também. Gente assim, desastrosa como eu tem mais é que ficar quieta. Talvez dois não-pertencentes como nós tenham mais é que permanecer sozinhos, sem sorver nada um do outro. Daí vejo a foto do Sartre com a Simone e repenso: "nem sempre". Depois não sei de mais nada. Corta pro médico dizendo que "nem se um caminhão viesse você escaparia" e eu sinto menos culpa de não ter limpado as paredes com veja ou de não ter tirado dos dedos aquela mensagem que dizia "e aí, e a minha coxinha?". Só que pouca culpa não é nenhuma culpa. Do mesmo jeito que, acredito, não saber direito o que quer é meio que não querer coisa alguma. Fico assim. Não ato nem desato os nós, vivo ridiculamente um dia de cada vez, e ligo pra ele (sempre ele) quando o caldo entorna. Gente despertencida precisa ter ao menos alguém que lhe conheça pela risada. Eu tenho ele, uns livros, outros bons amigos. Eu tenho isso e nenhum plano A, B, C, nenhum plano sequer. Não sei de nada. Nunca soube de nada. De pouco em pouco me livro da apatia e concluo: a vida é mais difícil pra aqueles que não têm certeza. Depois reitero: esse é o único jeito que sei. Pelo menos agora se um caminhão vier atrás de mim eu acho que fujo. Já tento sobreviver. Quem sabe um dia eu prove esse negócio aí, esse tal de "ser feliz". Quem sabe, um dia. Quem sabe.
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