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7.10.12

sobre atravessar ruas e se apaixonar.

Faz mais ou menos uma semana que eu tenho tido que atravessar as ruas com meu pai. Ele não enxerga direito e cabe a mim a função de dizer pra ele quando é ou não é seguro ir pro outro lado da calçada. Faço bem a atividade, até. Vez ou outra corremos riscos, mas muito mais por causa de motoristas imprudentes do que por eu não ter visto direito. Antes disso eu sempre achei que não soubesse atravessar as ruas. Perdi a conta do tanto de vezes que quase fui atropelada. Eu sou muito desligada, não sei olhar dos dois lados, vez ou outra ando sem óculos, vez ou outra meu iPod está alto demais pra que eu ouça as buzinas. Toda vez que eu vejo um carro tirar uma fina em mim, quase posso ouvir minha mãe dizendo: "Deus protege"; e quase acredito, porque é a única explicação possível pra eu sobreviver a tanta desatenção.

Nesses dias andando com meu pai eu pude perceber que se a gente precisa fazer alguma coisa, a gente consegue. No caso do meu pai a equação é simples. Amo ele demais e qualquer coisa que acontecesse comigo me machucaria também. Cuido das ruas melhor do que eu cuido de mim. Sozinha eu corro em sinais pra fechar, atravesso no meio da rua, evito as faixas, não olho os dois lados. Com ele até me excedo. Brigo com carros que fazem qualquer coisa errada, espero os sinais abrirem, evito atravessar fora das faixas. Sei lidar. É fácil, de certa forma. Era mais difícil quando ele se recusava a ir comigo, ou não prestava atenção nas minhas coordenadas. Pra que algo aconteça entre duas pessoas, a outra tem de querer. Se uma não quiser, nada acontece. Por mais que a outra queira. Por mais que eu quisesse proteger meu pai dos perigos do mundo, eu só consegui protegê-lo quando ele deixou. Quando ele não quis, não deu. Ele resmungava, saia por aí brigando comigo, me chamava de pequena ditadora.

O amor não é muito diferente de atravessar as ruas com alguém.

Sempre me achei inapta pro amor, assim como sempre me achei incapaz de atravessar as ruas sozinha sem correr riscos. E estive certa, nas duas ocasiões. Quase fui atropelada vezes infinitas, e estraguei tantas histórias de quase amor (e de amor também) quanto pude. Não nasci com o chip. Tem gente que sabe amar. Gente que sabe mandar mensagem, dizer que ficou com saudades, escrever belos textos, galantear. Eu não sei. Todos as pessoas que conseguiram coisas de mim me quiseram muito em primeira instância. Meu primeiro namorado me venceu pelo cansaço. Não via graça nele. Ele era lindo, mas muito estranho. Eu não sabia muito bem o que aquele menino de coturno e bandana do axl rose queria comigo. Ele me disse que me amava anos luz antes de eu sequer cogitar dizer que gostava de conversar com ele, assim, de madrugada, contando as coisas que eu queria fazer quando tivesse dinheiro. Ele me chamava de "amor" e eu respondia com um apelido engraçadinho qualquer. Depois de um tempo me rendi. Ele me amava, eu amava ele de volta, e tudo que a gente queria era casar igual o axl e a namorada do axl em "november rain". Ele me prometia uma república com cinco caras numa cidade longe da minha e eu aceitava. E era isso.

Depois dele veio o segundo cara, o melhor namorado da minha vida, que me disse que me amava na segunda conversa. Era isso. Ele disse "te amo" e desligou o msn. Eu demorei três meses pra dizer que amava ele de volta de verdade, porque antes eu achava que era brincadeira. Quando ele fez planos de casar, e juntava dinheiro pra isso, eu me abstinha a achar engraçado. Depois eu vi que era verdade. 300 reais do estágio dele eram desviados do vício dele por coca pra quando a gente pudesse morar junto. Com ele eu escrevia cartas, bilhetes, presentes, mensagens de texto. Com ele eu aprendi a ser assim, explícita, porque ele também era. É como atravessar a rua. Eu atravessava com ele, porque ele me deixava ir.

Depois que eu terminei com ele teve um outro amor que nem aconteceu direito porque a gente não sabia se falar. Era como se os dois quisessem atravessar a rua, mas ninguém desse o primeiro passo, porque a gente achava que o outro não queria. Depois disso alguns caras que não queriam atravessar a rua comigo. Até que eu estava fazendo cappucino e pensando nisso daí que é o amor. Dia desses, nem faz muito tempo, alguém me disse que "eu não dei valor p'ras coisas que eu tinha porque eu não sei amar ninguém". O negócio ficou tilintando na minha cabeça, tipo música do raça negra, tipo pagode que diz que você jogou tudo fota e agora é tarde demais. Sempre me identifiquei com o eu-lírico masculino que diz pra mulher que ela foi cachorra e que agora ele está partindo pra alguém que lhe dê valor de verdade. Já aconteceu algumas vezes, teve gente que quis me cuspir na cara, e eu até tenho um sonho recorrente terrível em que todos os meus ex namorados se juntam numa mesa pra dizer pro meu namorado novo todos os porquês de não me namorar nunca-em-hipótese-alguma. Antes eu achava tudo muito pertinente, depois descobri que tenho uma tendência a me culpar. A inquisição de ex namorados é só um reflexo do fato de que eu acho mais fácil (bem mais fácil) colocar a culpa em mim e seguir vivendo. Tenho dificuldades em listar os erros dos outros porque bem, porque é chato você descobrir que o cara nem te amava tanto assim, que ele foi um retardado e tal, tudo isso.

Dessa vez em especial eu pensei sobre o lance das ruas. Ok, eventualmente eu não ligo. Eu não sei mandar mensagem dizendo que estou com saudades. Minha voz falha antes de eu ligar pra alguém pra convidar pra qualquer lugar. Meu jeito de demonstrar afeição sempre está ligado a comida ou a mostrar um vídeo que me lembra a pessoa no YouTube. Ou seja: sei demonstrar amor tanto quanto sei atravessar as ruas. Nas duas atividades sou desatenta e posso ser atropelada por um carro desgovernado a qualquer instante. Acontece que, no amor, assim como quando vou atravessar as ruas, se a pessoa me dá abertura eu consigo ir também. Eu sou capaz de prestar atenção. Eu sou capaz de retribuir gestos bonitos. Eu sou capaz de escrever textos, e-mails, mensagens bem boladas no celular. Só que fica difícil fazer tudo isso quando a outra pessoa esquece até os compromissos que tinha com você. Nunca te mandou uma mensagem de bom dia, nunca nem sequer disse de um jeito torto que se preocupa com você mais do que com qualquer fato corriqueiro da vida dela. Fica difícil descobrir se ela quer ou não que você seja aquilo que você podia ser. Fica a gente ali, parado na calçada tentando descobrir se o outro quer ou não atravessar também. Eu nunca soube se ele quis. Eu nunca tentei perguntar também porque eu não sei dar o primeiro passo. Todas as vezes em que me relacionei com alguém, a outra pessoa abriu um buraco nisso que chamam de coração e entrou. Entrou do jeito que dava, pulando de cabeça e eu só retribuia quando tinha certeza. Estraguei vários relacionamentos por causa da dúvida. Principalmente quando estive doente. Mas isso passa. Se a outra pessoa quer-mesmo estar com você, ela acaba arrumando um jeito.

Eu colocava água no pó de cappucino e, pela primeira vez, me eximi da culpa que me colocaram no ombro. Eu quis, eu sempre quis andar de mão dada na rua, ir no cinema, continuar, tentar, provar outros pratos, qualquer coisa que seja. Eu sempre quis, mas não dá pra querer sozinha. Não dá pra entender o monte de sinal ambíguo no meio da história toda. Não dá pra querer atravessar a rua com alguém quando você não sabe se ela te quer junto com ela ou se vai te xingar e dizer que prefere ir sozinha. Eu nunca soube. Daí entendi duas coisas: a primeira é que eu até sei lidar com esses troços de amor se a outra pessoa me deixar; a segunda é amor é igual tentar ajudar alguém que precisa: você só consegue se a outra pessoa também quiser.

E olha, a verdade é que não tem estrago nem tarde-demais quando você nunca soube se teve ou não teve algo pra jogar fora de verdade. Amor é que nem atravessar a rua, a gente só chega do outro lado se as duas pessoas quiserem. E se eu não fiz a minha parte, pode ser porque a outra pessoa também não tenha feito a dela.

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