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22.2.13

não há nenhum remédio em toda medicina


Eu assinava aquele monte de prontuário enquanto tentava descobrir o que deu errado entre eu e ela. Ela tinha me botado pra fora de casa com todas as minhas coisas dentro de uma mala velha e dito com as sílabas separadas pra eu nun-ca ma-is voltar pra vi-da dela. Nem tive muito tempo de pensar em nada, só enfiei a mala dentro do carro e vim pro plantão. Hospital público é essa desgraça. Eu chego, vejo que tem cem pessoas na fila, sei que vou atender as dez que estiverem pra morrer e o resto vai ficar lá, ou vai voltar pra casa depois de tanto esperar até que piore de vez pra poder entrar na fila das dez que estiverem pra morrer. A vida é uma merda, a vida é você estudar cinco anos pra chegar no último e ficar descartando ficha como se tivesse jogando war. "esse serve, esse não serve, esse aqui quem-sabe a gente atende se tiver tempo". Uma merda. Enquanto eu separava as fichas ficava pensando o que foi que eu tinha feito de tão errado pra ela acabar comigo daquele jeito. Porra, tá que eu vinha chegando tarde sempre, mas eu tinha alertado que resolver namorar com um estudante de medicina era isso. Não podia ser SÓ isso. Antes ela me esperava dos plantões acordada, me fazia café, me deixava o chuveiro quente, tomava banho junto comigo, a gente trepava antes de eu dormir e ela ia pra faculdade, ou pro trabalho, ou continuava dormindo se fosse sábado ou domingo. Não sei quando a gente se perdeu, só sei que os relacionamentos são isso: um dia você acorda pra ir pro seu plantão e a sua namorada enfiou todas as suas coisas numa mala e disse que nunca mais quer te ver. nun-ca ma-is, com as sílabas separadas e a porra toda. Não conseguia entender, a gente não tava tão bem assim, a gente trepava menos, saia menos, às vezes não conversava durante o jornal, ou durante a novela, e eu nem tinha lá muita vontade de comentar com ela essas coisas todas que eu faço, mas isso não é normal? Não é isso que a vida faz com a gente? Quero dizer, você namora com uma pessoa por três, quatro anos, depois chega uma hora que vocês não ficam mais radiantes um com o outro, você repara nas mulheres bonitas que atende quando passa pela ginecologia, mas isso não significa que o relacionamento virou uma merda sem fim e que ela precisava botar minhas coisas numa mala e me mandar embora. Bem, talvez ela precisasse sim. Talvez tudo tivesse uma merda. Eu, ela, nossa vida sexual, nossas conversas, nossos cafés da manhã em silêncio. Eu, ela, minha vida, a vida dela, a gente perdido e estressado demais pra poder se agüentar, e o sexo também andava uma bosta. Quando nem o sexo vai acho que é motivo suficiente sim pra ela enfiar todas as minhas tralhas dentro de uma mala e me mandar embora. Só podia ter tido mais cuidado com meu estetoscópio. Me jogou na cara e quase que quebra tudo. Eu quis dizer pra ela "ô, péra, isso custa caro". Só que daí ela ia ficar mais puta ainda e capaz de quebrar o estetoscópio de vez. Ela é desse tipo. Capaz de pisotear no estetoscópio e me jogar na cara os restos dele depois. Ela é assim, meio assim. 

Queria ter menos tempo pra pensar nela e nessas coisas todas. Queria que meu trabalho fosse menos mecânico. Eu só separava as fichas de acordo com a gravidade das coisas e aí tinha um tempão pra pensar em tudo enquanto analisava se estar com a perna necrosada é mesmo muito pior do que essas dores abdominais muito fortes que podem ser apendicite e apendicite é uma merda porque é um negocinho de nada, mas daí dependendo o troço estoura, o cara morre e aí é mais uma notícia de "senhor morre na fila por falta de atendimento". Não que as pessoas liguem muito, porque essa gente não tem nem nome no jornal. É só um "senhor que morreu na fila por falta de atendimento". Morrem vários, a gente não dá conta. Antes quando eu via isso na tv ficava pensando que quando eu fosse médico eu ia fazer um multidão e cuidar de toda essa gente que morre na fila, só que não dá, não tem como, não tem tempo, nem disposição e aí quando você vê, você perdeu tanto o controle da sua vida que a sua namorada de anos, com quem você planejava casar depois que terminasse a faculdade botou todas as suas coisas numa mala e disse que não quer te ver nunca mais. O tempo é cruel. É isso. Três minutos que a gente demora pra atender alguém que teve parada cardíaca e a pessoa fica comprometida pra sempre. Dois, três minutos podem ser a diferença entre alguém sair ileso ou entrar em coma, ou morrer, ou sei lá. Três minutos de atenção todo dia, de conversa, podiam ter salvo meu relacionamento. É que eu sou um bosta também. Eu devo foder mal, eu nunca prestava tanta atenção assim nas coisas que ela falava e acho que tinha vez que ela queria conversar. Acho que comecei a tratar todo mundo meio igual paciente, a gente tem que ouvir rápido porque tem mais vinte pessoa na fila, daí a gente só ouve o que importa. Aí receita alguma coisa, não tem muito mistério. Eu achei que ela também não tivesse mais mistérios. Que era só continuar do jeito que tava, entrar em casa todo dia e ver ela como parte da decoração, como o quadro que eu comprei logo que a gente decidiu morar junto e que eu sabia que nunca ia sair dali. Eu achei que ela nunca fosse sair dali também. E não saiu, né? Mas me mandou embora. Vadia. Agora deve estar contando pra todo mundo que esse ótimo estudante de medicina é um bosta, um babaca, um merda que não sabia nem tratar e nem comer ela direito mais. E ela vai falar assim mesmo "nem me comer ele comia mais". E eu até comia, mas depois virava pro lado e dormia, e acho que ficou uma coisa tão mecânica que eu nem lembrava depois se tinha sido bom ou não. Uma vez acordei com ela me pisoteando dizendo que eu era um canalha, que era sempre assim, que eu gozava e esquecia dela, que isso não se faz. Sei que eu virei pra ela e respondi "e você acha que uma chupada agora vale mais do que os cinqüenta pacientes que eu tenho pra atender amanhã? Não tenho tempo pra essas bobagens". É, pensando bem, ela tem toda razão de ter enfiado as minhas roupas na mala e me mandado embora. Devia ter feito isso antes, até. Caralho, olha o bosta que eu fui com a mulher que eu amo. Amo, amava, gosto muito, acho gostosa. Não sei. Não sei mais. O que eu sinto por ela afinal? Vai saber. Fico com pena de ter que colocar essas fichas desses velhinhos que tem mais de setenta anos na caixa de fichas que não vão ser atendidas. Sei lá, o velho acordou cedo, pegou ônibus, veio até aqui na esperança de um atendimento se não digno, ao menos mais ou menos e nem isso ele vai ter. Queria pelo menos poder oferecer um café, dizer pra voltar depois. Não devia ser assim. Merda de vida. Oito da manhã e essa gente tá aqui desde as cinco e metade delas vão voltar pra casa sem nem ter podido pegar um analgésico. Merda de vida.

Metade dessa gente que vai ser atendida vai ser internada. Dá pra ver pelos sintomas. Vai ter gente que vai precisar de cirurgia. Não tem nem mais cama direito nesse hospital. Um hospital entulhado de gente feito um depósito de supermercado entulhado de latinha de massa de tomate. Que caralho de vida. Oito horas e eu só saio no outro dia seis da manhã. Plantão de 24hrs no pronto socorro. O pior plantão. Nunca para de chegar gente. S;o de noite, porque ninguém gosta muito de vir em hospital de madrugada. Fica hostil. Fica hostil porque chega gente baleada, gente que bateu de carro, gente atropelada no meio da rua, gente que levou tiro de traficante. Vem tudo pra cá. Vem os bandidos também que a polícia pegou de madrugada. Daí a gente sempre ouve algum enfermeiro torcendo pra que o bandido morra. É engraçado porque o bandido podia ser o enfermeiro se tivesse um pouco mais de oportunidade. Nunca disse isso pra nenhum enfermeiro. Um dia vou dizer "podia ser você se você tivesse nascido na favela". Melhor não dizer nada, os enfermeiros já odeiam a gente de qualquer modo. Eu queria que de noite eu tivesse tempo de ligar pra ela. Nem que fosse no intervalo, sei lá. Lá pelas sete da tarde para de chegar gente. Eu queria entender onde é que isso tudo aconteceu. Mas aí ligo e digo o que? Peço desculpas, digo pra ela que eu sei que eu fui um merda, que eu devia ter dado mais atenção? Não vai funcionar, né? Taí o tipo de coisa que ou a gente percebe no ato ou senão ferrou. Já imagino ela no telefone me contando vários episódios dos quais não lembro e aí eu me sentindo horrível porque na hora que fiz a tal coisa que ela me acusou só conseguia pensar que a gente perde muita gente nesses hospitais. Fico pensando nas velhas às vezes que contavam de suas peripécias sexuais. Melhor que a minha vida. Eu não queria saber de nada, mas elas sempre contavam. Tem essas que contam dos filhos também. O que tem de filho que abandona a mãe, chega a ser pecado. A minha é implicante, mas nunca abandonaria. Fico com pena. Elas gostam da gente porque a gente tem a idade dos netos delas. Aí falam "cês são uns moço bonito" e a gente sempre fica sem graça. Eu fico. Tem gente que gosta. Tem gente que abraça as velhas. No começo eu abraçava também, mas agora é tanta gente que eu me sensibilizo menos. Às vezes eu tratava ela como uma dessas velhas que eu esquecia de abraçar. Acho que ela já ficou esperando por uns abraços que eu não dei. Que merda de vida. Nem sei o que se passa com ela. Eu fico tentando, mas não sei. Ela me contava as coisas e eu nem prestava atenção, depois respondia com um "sei, entendo" e ela ficava meio puta e ia fazer chá. Ela sempre fazia chá quando ficava puta e devorava um pacote de bolacha recheada. Ficava no computador vendo seriado, comia as bolachas e me olhava brava por cima do monitor. Acho que era desencanto. Não devia ter feito isso com ela, mas eu ficava tão pouco tempo em casa e tudo isso é tão estressante que eu acho que eu esqueci que eu precisava cuidar dela também. Ela cuidava de mim. Ela me fazia janta e café da manhã. Porra, teve um dia que ela me fez meu bolo preferido logo de manhãzinha. Deve ter acordado tipo quatro da manhã pra dar tempo. Nessa época a gente ainda se dava bem, eu ainda comia ela direito. Acho que depois do bolo a gente trepou na pia mesmo. Aí foi pro quarto depois e ela dormiu abraçada comigo. Eu gostava tanto dela, do cheiro dos cabelos dela quando ela saia do banho, do jeito que ela usava essas camisolas que a alça sempre caia e aí ela ficava de peito de fora. Era tão bonita. O jeito que ela arrumava a estante de livros dela, todos por cor e não por autor. "o livro da capa roxa". Eu entendia tão pouco dessas coisas que ela gostava tanto e ela sempre me explicava. Deitava com o pé no meu colo enquanto eu via futebol aí parava e lia um pedaço do livro. Eu nem me irritava, parece que dava uma poesia pra minha vida o fato dela existir. Eu queria que ela existisse mais vezes. Acho que uma vez até falei isso pra ela, eu taba aqui no hospital e ela me ligou, e eu contei de um caso de uma velha que dizia que só conseguia dormir quando tomava chá (e ela também era assim) e aí disse que elas iam gostar de se conhecer, que ela devia existir comigo mais vezes. Ela achou bonito pra caramba, ficou um silênciozinho de sorriso no telefone e ela sempre me dizia isso e tal. Que queria que eu existisse mais vezes. Aí agora olha a merda, não quer me ver nunca mais. E ainda separou as sílabas nun-ca mais. Merda de vida.

Agora eu não sei mais se eu queria que ela existisse mais vezes.
A penúltima vez que olhei no olho dela foi antes de eu gozar e ela parecia triste.
A última vez foi quando ela disse que nunca mais queria me ver e ela parecia aliviada.
Queria que ela tivesse chorado, me batido, qualquer caralho desses.
Mas ela só colocou a mala dentro do carro e disse que não queria mais me ver. 
Daí eu fui embora, né? vai fazer o quê?

O primeiro paciente entrou se queixando de dores fortes na barriga. Tinha tido câncer no estômago recentemente. Não era bom sinal, a gente sabia que podia ter voltado. Ele também sabia e por isso nem ficou me fazendo muita pergunta. Só me perguntou se ele ia ter que fazer a biópsia. Eu disse que não, que primeiro um exame pra ver se tem mesmo um tumor, e aí sim a biópsia. Só que eu e ele já sabíamos que era câncer. E que se tivesse voltado podia ser que tivesse espalhado pro resto do corpo. Ele sabia disso e eu sabia também, só que a gente não precisa falar certas coisas. Ela não precisou me dizer nada quando me olhou entrando no carro. Eu sabia que ela me odiava e que a gente podia ter morrido naquele momento. O velho também sabia que podia estar morrendo. O silêncio é um pouco isso, não é? A presença da morte. Nós dois estávamos cansados, e aí ele resolveu que ia conversar. Merda de velhos, tem mais dúzias de pacientes pra atender e eles resolvem puxar papo. Tudo bem, esse podia estar morrendo e não deve ser nada fácil perceber que a gente tá morrendo. Daí ele me perguntou:

- Doutor, o senhor sabe se tem que vir alguém acompanhar o exame ou se pode vir sozinho memo?
- Pode vir sozinho, pelo menos nesse primeiro pode vir sozinho. Se tiver que fazer biópsia daí é melhor vir acompanhado, porque é uma mini cirurgia, às vezes é bom ter alguém junto.
- É que eu não queria que a minha mulher ficasse sabendo.
- Sabendo do exame?
- É, que eu posso ter essa doença maldita de novo. Melhor nem falar o nome. É nome de má sorte. Ela ia ficar tão triste. Fez novena, tava comemorando já que eu tinha curado, mandou até rezar uma missa em agradecimento. Depois vai que voltou essa maldição, capaz dela ficar triste até com Deus. Não quero que ela fique triste nem comigo e nem com Deus. 
- Mas o senhor sabe que pode não ser nada, né? De repente é mesmo só uma gastrite.
- Mas é que pode ser também, né? Nem contei pra ela de nada. Disse que tava com desarranjo por causa de alguma coisa que tinha comido daí vim pra cá, falei que era melhor ver, que vai que é uma coisa séria, vai que é dengue. Dengue, tem dado muito surto de dengue, e dá diarréia também, acho que ela acreditou. Não quero que ela saiba que eu posso morrer de novo.
- O senhor tem medo de morrer? Porque não precisa, já disse que pode não ser nada.
- Tenho medo de morrer não, tenho medo é de deixar ela sozinha. Dela me ver sofrer e aí deixar de gostar de Deus e deixar de gostar da vida. Ela é tão alegre. única vez que vi triste foi quando eu peguei essa maldita aí. Daí ela ficava o tempo todo rezando e às vezes de noite ela chorava porque eu escutava. Mas quando eu acordava ela não ficava triste mais. Queria me animar de todo custo, trazia comida pro hospital, dormia do meu lado, botava nos programa de tv que eu gosto. Só que no fundo eu sei que ela tava triste. Sofria mais por ela do que por mim. O doutor tem mulher?
- Tenho. Tinha. Ela me mandou embora de casa hoje. Botou a mala no carro e disse que não quer me ver nunca mais.
- Oxe, mas o que o doutor aprontou?
- Acho que eu falhei em perceber que no fundo ela tava triste.
- Pode não, doutor, tem que prestar mais atenção em quem a gente ama do que na gente. Da gente a gente sabe bastante. Dos outro sempre tem coisa que aprender. Eu ainda aprendo umas coisa dela até hoje. Mas tem que cuidar sempre, porque às vezes amor também murcha, é que nem pranta. Quando a gente pranta as coisa no quintal a gente tem que sabe entende como que elas gosta das coisa. Se gosta de sol, de sombra, de muita água, de poca água. Se não presta atenção daí as pranta morre tudo. O amor da gente é e mesminha coisa. O doutor devia é de ter prestado mais atenção na mulher do senhor daí as veiz ela não tinha te largado. Coisa triste o amor da gente larga a gente. Uma vez a dorinha foi embora de casa e foi pior que essa doença maldita. O senhor fala com ela, exprica as coisa, a gente às vezes erra mesmo porque é normal, eu já errei com a dorinha. Mas perde o amor da gente dói mais que essa dor aqui na barriga, e os doutor não tem remédio pra essas dor não. 
- Acho que vou ligar pra ela. Obrigada pelos conselhos.
- De nada, doutor. Mas ói, então venho sozinho pra esse exame aí que o senhor pediu. Vou contar pra dorinha que deve de ser nada não, que é só exame de rotina daí ela não fica triste nem com Deus e nem com a vida. Depois a gente vê.
- Tá bom, assim que tiver o exame pronto traz pra gente olhar. Não há de ser nada, lembranças a dorinha.
- Pode deixa, e o senhor vê se liga mesmo pra mulher do senhor que coisa triste é vida sem amor. Mais triste que doença.
- Vou tentar, vou aguar essa planta. 

O velho saiu do consultório atrasando toda a fila de pacientes atrás dele que já cochichava que tem gente que não tem noção, que demora muito na consulta, que não pensa nos outros, que esses médicos de hoje são todos lerdos. Fingi que não ouvi nada. Trinta fichas esperando na mesa. Todas as pessoas impacientes, pareciam que iam armar uma revolução. Queria pensar em outra coisa e só pensava nela. Nela que talvez tivesse deixado de gostar da vida por causa de mim. Pensei no olhar de alívio que ela me deu ao me dar a mala. Trinta pacientes esperando por mim e era ela quem eu tinha feito morrer. Aos poucos. Com cada grosseria, cada desatenção, com cada transa mal dada. Sou um bosta. Eu gostava tanto que ela existisse e tratava ela pior do que os pacientes, pior do que a moça do café do hospital. Acho que eu sorria pra moça que me entregava o café. Não lembro da última vez que sorri pra ela. Não lembro muito dela a não ser de uns olhares tristes que ela me lançava, mas eu achava que era cansaço. A gente passa a vida disfarçando tristeza com cansaço. Eu não soube entender que ela tava triste. Liguei pra um amigo meu, mandei ele me cobrir pelo amor de deus no plantão, que a minha vó tava passando mal, que não tinha quem acudisse que eu ia ter que ir lá correndo e aí ele puto porque tinha planejado ir numa festa, sei lá que porra, foda-se a festa dele, eu preciso resgatar minha vida antes que ela morra na fila do hospital. Ele disse que ia, saí correndo, gritei pra fila que tinha emergência, as pessoas todas me xingando, eu dizendo que calma, o outro médico vem logo. Peguei meu carro, a mala que ela fez de qualquer jeito continuava lá. Nem uma porra dum bilhete desses dela que machucam ela quis botar. Nada, ela não me disse nada. Eu já imaginava ela num almoço com as amigas dizendo que tinha me botado pra fora de casa porque eu era um babaca e aí contando uma por uma as bobagens que eu fiz, as vezes que eu tratei ela que nem lixo, as vezes que ela foi chorando no ônibus pra faculdade, as vezes que eu esqueci que ela existia. Ela contando tudo isso e todo mundo me achando um bosta também, e com razão, porque é isso que eu sou, é isso, caralho, eu não soube prestar atenção na mulher que eu amo. Amo? Amava? Amo. Amo, quase chorei quando o velho contava aquela história lá e tô aqui num carro com a mala correndo atrás dela do jeito mais estúpido possível. E eu nem sei se ela vai estar em casa porque eu nem sei mais os horários dela, eu sei lá, eu respondo tudo que ela me diz falando "sei, entendo" e não sei e nem entendo nada, essa é a grande verdade. Eu só sei falar de mim e ela ouvia no começo, caralho, ela ouvia tudo e me respondia e me fazia cafuné e dizia que eu ia conseguir sim ser um médico foda, que eu não ia virar uma pedra de gelo, ela dizia tanta coisa e eu não sei nem a merda do horário que ela chega em casa. Vou tentar, se ela não estiver. Deve estar no estágio. Caralho, que estágio, ela reclamava desse estágio mas sei lá que estágio era esse, onde fica, sei lá que dia que era. Foda-se, vou tentar em casa. Casa. Sei lá se é minha casa isso ainda. Entrei em casa e ela tava sentada no chão agachada olhando o primeiro quadro que a gente comprou. Ela olhava o quadro com um misto de raiva e pesar e acho que na verdade ela tava pesando se tirava ou não da parede. Fui eu que comprei o quadro. É do meu pintor favorito. É um quadro do miró. Eu sentei do lado dela e ela não me percebeu, Não sabia o que falar. Dizer o quê? Desculpa por ser um babaca? Que vai ser melhor dessa vez? Que eu não vou esmigalhar a vida dela em mil pedaços e que ela nunca mais vai me ver gozar enquanto me olha com um olhar triste? Tudo merda. Tudo isso já taba na memória dela enquanto ela olhava aquele quadro e tudo que eu falasse era uma chance de perder ela pra sempre. Daí ela olhou pro lado e me viu, não fez nada, nem me bateu, nem me mandou embora. Só ficou me olhando, depois olhou pro quadro de novo e deve ter pensado em toda a bosta que eu tinha sido com ela. Era eu que tinha que dizer desculpas. Era eu e não ela. Eu, mesmo que eu tivesse falado pra todo mundo que a culpa do nosso relacionamento merda era dela que era louca e chegava em casa gritando comigo falando "quem é a vadia com quem você tá?". A culpa era minha. Aí eu disse "desculpa, a culpa foi minha", e ela me olhou com a mesma cara que os pacientes diagnosticados com câncer olham pra gente quando a gente diz que tem tratamento. É uma espécie de esperança morta. Ela olhava pra mim com uma esperança morta. Ela era uma inocente com fratura exposta e eu sou o bandido que atirou e os enfermeiros rezam pra que morra. Eu mereço mesmo morrer. Eu sou um lixo. Eu ofereci minha mão, ela pegou minha mão com uns dedos moles enquanto continuava olhando o quadro na parede. Eu não sabia o que fazer. Só sabia que eu queria que ela voltasse a existir mais. Mas ela é o paciente que eu não sei se vou conseguir salvar. Os doutor não tem remédio pra essas dor não. 

19.2.13

Despedir dá febre


Ao encontrar com ela depois de tanto tempo eu não sabia o que dizer. Ela não tinha mudado muito. Não tinha mudado nada, eu podia dizer. Tinha mudado bem pouco, essa era a verdade. Apareceu pra mim com uns cabelos bem curtos, umas roupas um pouco diferentes, mas sorria do mesmo jeito. Aquele mesmo jeito de sorrir colocando a língua por de trás dos dentes e franzindo o nariz de um jeito que eu acho que só ela consegue. Provavelmente não também, né? Várias outras mulheres no mundo devem saber franzir o nariz do jeito que ela faz, e talvez até sorriam colocando a língua por trás dos dentes, mas acho que isso de gostar muito de alguém, ou pelo menos lembrar muito de alguém faz com que a gente ache que essa pessoa é única. Pra mim, naquele momento, ela era a única pessoa no mundo capaz de rir franzindo o nariz e colocando a língua por trás do dente. Nenhuma outra mulher no mundo, nem as mais lindas teriam essa habilidade. As mulheres da red light street em amsterdã poderiam saber todos os segredos do sexo, todas as posições proibidas, segredos milenares escondidos para dar prazer a um homem, mas isso não me importava, eu não trocaria ela por nenhuma delas. Por nenhuma puta, nenhuma artista de tevê, por nenhuma menina bonita que conheci andando na rua. Não trocaria ela por ninguém porque só ela me importava. Ela, aquele cabelo curto preto jogado de lado, os óculos de armação surrada, a mania de quase-nunca usar vestidos, o jeito de sorrir franzindo o nariz e colocando a língua por trás dos dentes.

Fazia anos que eu não a via. Havíamos nos encontrado numa dessas festas de faculdade sem muita importância. Ela fazia ciências sociais, eu fazia jornalismo, ela passou a festa inteira segurando um livro de capa vermelha que depois acabei descobrindo que era "grande sertão: veredas". Ela gostava de guimarães rosa e eu também, eu gostava de cerveja e ela também, ela gostava de dançar e eu não muito. Ela parece não ter me ouvido quando eu disse que não, não ia dançar coisa nenhuma e acabou me puxando pelo braço, me levando pro meio da festa e dançando "here comes your man" do pixies, que na época fazia algum grande sucesso nessas festas universitárias. Era 1996, logo depois disso começou a tocar skank, ela disse que não gostava, eu gostava mas não quis dizer que sim e ela acabou me levando lá pra fora pra gente conversar. Foi a primeira vez que ela me sorriu franzindo o nariz e colocando a língua por trás dos dentes, mas na hora eu acho que não percebi nada disso. Ela me ofereceu um cigarro, eu disse que não fumava, ela perguntou se eu me importava que ela fumasse, eu disse que não e aí ela começou a contar da vida dela. Contou tudo, contou do curso, dos seus dezoito anos recém feitos, contou que gostava muito de música, de literatura, do David Bowie, do Radiohead, que ouvia Smiths antes de deitar, que detestava o Skank, e que simpatizava com essa nova onda de axe que ia tomando conta do Brasil. Aí ela ria, dizia que todo mundo tem que descer na boquinha da garrafa um dia se quiser ser feliz mesmo de verdade. "Se quiser ser feliz mesmo de verdade a gente não pode se levar a sério", ela concluiu. Lembro disso até hoje, foi nessa hora que eu acho que comecei a gostar dela, gostar assim de querer levar pra casa e dizer qual era meu filme preferido e mostrar meu filme preferido pra ver se de repente ela gostava. Ela falava tudo, sobre todas as coisas e eu ficava meio quieto balançando a cabeça. Depois ela me confessou, numa outra conversa, que não gosta de silêncios e tentava ocupar os espaços do meu silêncio falando e falando e falando. Até que teve uma hora que ela parou, olhou pra mim e disse "E você? me conta de você". Não soube responder. Dei uma gaguejada e disse "Eu?…Eu não sei, eu gosto do Skank". Daí ela riu e ficou me olhando. Daí eu dei um beijo nela porque eu já não sabia mais o que fazer, e ela parece ter gostado do beijo e até um pouco de mim porque me deu o telefone dela e disse que eu podia ligar quando quisesse, pra assim, quem sabe, tomar um café.

Liguei, tomamos aquele café, vários outros cafés em vários outros dias, nos encontrávamos nos intervalos das aulas, nas tardes que faziam sol e nas que choviam também e ela me contava dela com um fervor admirável, e me contava dos livros que lia, dos filmes que viu, me detalhava o nome dos diretores e vez ou outra aparecia com VHS que tinha alugado na locadora mas gostado tanto que queria que eu visse também. Depois ela pegou intimidade e levava logo a fita pra gente ver o filme juntos. Quando eu percebi eu também já contava as minhas coisas, as minhas angústias, todas essas coisas sobre o mundo que a gente tem ânsia de compartilhar com alguém que gosta de estar junto. Às vezes eu deitava no colo dela e sentia medo de tudo que eu dizia. Medo porque ela podia não gostar e eu tinha tanto medo que ela não gostasse de mim e parasse de aparecer com aqueles filmes, com um CD novo, que parece de ligar o rádio e cantarolar axé enquanto a gente ficava deitado na cama. Eu tinha medo que ela fosse embora então às vezes não falava nada, só escutava ela falar sobre todas aquelas coisas, e aquelas imensidões, e esperava ela trazer seus livros grifados com as suas partes preferidas pra me dizer "olha, olha isso que lindo!" e aí eu concordava que era lindo mesmo e ela me olhava meio de canto de olho como quem desconfia e aí dizia rindo "você gosta de tudo que eu gosto, assim não vale!". Daí pulava em cima de mim e me beijava feito louca e foi num desses dias que eu pensei que até podia viver sem ela se eu precisasse o problema é que eu não queria mais viver sem ela, daquele jeito dela de falar feito louca, de dançar no meio do quarto de rir franzindo o nariz e colocando a língua por trás do dente. Só que eu não sabia até que ponto podia ir, não sabia se a gente podia se mandar bilhete de amor, se eu podia dizer no meio do café que senti saudades de dormir com ela quando ela não dormia lá em casa, não sabia quando seria permitido chamar de "amor" (se é que um dia seria permitido), não sabia direito onde colocar a mão quando a gente andava na rua, não sabia se podia dizer que gostava dela assim, desse jeito de querer acordar de manhã e ver ela dormindo encolhida na minha cama de solteiro segurando a pontinha da coberta. É que o começo do amor é isso, é esse bebê que não sabe se equilibrar e a gente vai andando meio torto, sempre com medo de cair e o meu medo era dar um passo em falso e perder ela, por isso eu nem falava muito de sentimento nem nada, só ficava ali abraçado com ela enquanto ela trazia os filmes, os livros, as músicas; enquanto ela fazia as comidas, os bolos, as tortas e enquanto ela tentava tímida descobrir coisas sobre mim que eu nem sempre contava, mas às vezes tinha urgência de contar também e aí enchia os ouvidos dela de bobagens. Tinha ficado aquilo: a urgência de compartilhar tudo de importante com ela, sempre com medo dela me achar bobo, um pouco burro, desajeitado, incapaz. Às vezes tinha com ela longas conversas sobre o que eu queria ser, sobre as coisas que eu gostava, e às vezes até coisas mais sérias como as minhas inseguranças, como o fato do meu pai ter me abandonado quando criança e aí ela se compadecia toda e me colocava no colo daí acabava dizendo de novo que se a gente quisesse mesmo ser feliz não podia levar a vida tão a sério e no fim me beijava o nariz, ou subia em cima de mim e fazia alguma gracinha infantil pra tirar o clima estranho que fica toda vez que alguém que nunca desabafa acaba dizendo algo delicado.

Teve um dia que ela foi em casa e aí contou do curso, dos novos sociólogos, e tudo com muita empolgação e aí eu só olhava pra ela rindo que nem bobo até que percebi que era isso, eu gostava mesmo dela, não tinha mais jeito e aí danei a ficar pensativo, olhar pra frente, não falar mais nada porque se eu falasse qualquer outra coisa ia acabar me revelando. Aí ela percebeu e acabou perguntando "o que foi, tá tão quieto" aí eu ia dizer que não era nada, bobagem, coisa da sua cabeça, fiquei estudando até tarde, qualquer bobagem assim, mas acabou que falei "muita coisa importante falta nome". Aí ela sorriu, reconheceu a citação e falou "acho que não precisa inventar neologismo pro amor não, já inventaram a palavra". Aí eu sorri de volta até que ela perguntou de vez "Você acha que a gente ia dar certo namorando?" Aí eu respondi que sim, ela concordou que sim e resolvemos dar nome àquilo que na verdade já acontecia há muito tempo. Namoramos os quatro anos da faculdade e eu me lembro de poucos períodos na vida em que tenha sido mais feliz. Ela melhorava meus dias, dava vida a qualquer coisa dentro de mim que eu nem sabia o que era e nossa estante de livros, vhs e cds foi ficando cada vez maior. A gente dividia um quarto e sala modesto perto da universidade, e a casa tinha o jeito dela mas tinha o meu também. Daí eu me formei, ela se formou também, a gente mudou pra um apartamento um pouco maior no centro, ela se encarregava de uns afazeres, eu fazia o resto, a gente transava em todos os lugares da casa e eu achei que a gente ia durar pra sempre. Até que um dia me chega ela com uma carta, diz que recebeu uma proposta de trabalho na alemanha, que era pra fazer um curso e trabalhar lá "um ano, talvez mais, daí depende"  e antes que eu pudesse dizer que eu ia com ela até pra sibéria se fosse necessário ela disse "mas vou sozinha, acho que não tá dando mais. Preciso disso, assim, longe de você. não sei o que é, é muita coisa importante falta nome". Me lembro de quase querer jogar ela da sacada quando ela me veio com essa de usar pra terminar o relacionamento a frase que eu sei pra dizer que amava ela. Tentei insistir, ela dizia que não, que não dava que olha o que a gente estava fazendo com a nossa vida, nem vinte e e dois anos e já com planos de casar e isso e aquilo e ela dizendo que ela nunca conheceu outra vida que não eu, que precisava disso, que precisava ir embora pra ver se ela voltava pra mim um dia que era assim que ia ser e pronto. Fez as malas e em uma semana estava na Alemanha. Não me deixou ir no aeroporto, só deixou o grande sertão comigo com a frase "a gente só sabe bem aquilo que não entende. Te amo" escrita como dedicatória. Deixou também uma carta que ela tinha uma mania de carta e na verdade ela nunca voltou da Alemanha. Fiquei sabendo dela, quase casou por lá, depois descasou, depois voltou pra cá e namorou uns outros caras mas nunca quis saber de me procurar. Até que um dia toca o telefone e é ela. Sete anos depois. Sete anos inteiros depois ela resolve me procurar e bagunçar tudo aquilo que eu tinha conseguido ser sem ela. Logo que ela foi embora foi o inferno. Não conseguia sair de casa, me afundei, achei que nunca mais ia conseguir escrever uma matéria de jornal e o que dirá amar de novo. Amar igual amei ela não amei mesmo, mas encontrei umas garotas legais, pensei em casar, depois despensei e meu emprego ia muito bem, eu já era um jornalista de renome. Estava tudo certo na minha vida até que eu ouço a voz dela naquele maldito telefonema e ela marca comigo num café e eu não consigo dizer não porque naquelas alturas nem mágoa mais eu tinha. 

Ela continuava quase do mesmo jeito, exceto por um certo cansaço. Perguntei da Alemanha, ela disse que foi tudo bem por lá, que ela precisava daquilo, que se a gente tivesse continuado do jeito que estava a gente teria tido uma separação traumática e nos odiaríamos pra sempre. "Traumática foi", pensei. "talvez não pra você, mas traumática foi bastante". Não disse nada. Deixei ela contar e ela me disse que tinha virado pesquisadora, tinha alguns livros publicados, e acabou fazendo doutorado por lá. Estava bem estabelecida, decidida e bastante jovem pra uma mulher de quase trinta anos. Não tinha mudado nada da menina de dezoito por quem me apaixonei, a não ser pelos cabelos curtos e porque agora se arrumava mais (embora tenha confessado que ainda não gosta muito de vestidos). Aí contei de mim, do meu trabalho, que estava bem, que tinha dado certo na carreira de jornalista que me trazia tantas dúvidas na época em que namorávamos e ela me ouvia compenetrada, embora continuasse com aquela mesma mania de contar tudo que podia sobre ela como se o mundo fosse acabar no próximo minuto. No começo foi tudo esquisito, a gente não sabia muito bem sobre o que podia falar e sobre o que não podia. Ela falava bem mais que eu e eu me sentia de novo naquela festa em que nos conhecemos. Eu era de novo aquele cara do lado de fora ouvindo ela contar sobre todas as coisas que achava, e nem percebia, mas achava tudo encantador. De repente ela me tira da bolsa um DVD e diz "Manhattan ainda é seu filme preferido? O Woody allen tava fazendo uma noite de autógrafos em nova york quando eu passei por lá, era de um livro na verdade, mas daí lembrei de você, que era seu filme preferido e resolvi te trazer". Aí eu não sabia mais o que fazer, ficava pensando se ela vez ou outra lembrava de mim enquanto andava pelas ruas da Alemanha fria. Se já tinha pensado em me ligar. Se ficava na sacada relembrando das coisas que eu tinha lhe dito. Se alguma vez releu grande sertão e chorou. Não quis perguntar nada, não era hora. Só agradeci muito o presente e disse: "Acho que ainda gosto muito, mas não tive mais coragem de ver". "Também não tive", ela respondeu. E me contou que na verdade tinha o DVD fazia pelo menos uns três anos e tinha tido bastante vontade de me dar, só que aí não sabia como, não sabia como me ligava, se podia ligar, se eu um dia ia querer falar com ela de novo. "Daí guardei, só te liguei agora porque achei que não tinha nada a perder" "E da fato não tinha", respondi. Aí continuamos a conversar, mas de certa forma eu tinha medo de dizer qualquer coisa, errar o tom, fazer ela ir embora me achando um completo idiota. Também não tinha sentido nos reencontrar e dizermos que nossa, na verdade sempre nos amamos e devíamos começar a história de novo agora. Tantos anos, tanto tempo, tanta gente na nossa vida. Não é simples assim. Daí enquanto ela comia um pedaço de bolo me disse "Sabe, eu te deixei aquele livro com aquela frase na dedicatória. Sempre gostei muito disso, dessa sensação da gente só saber bem aquilo que não entende. Eu fui embora quando eu não sabia mais o que eu sentia por você. Não entendia, não dava, não dava liga. Acho que não entendo bem até hoje, mas sei. Sei, sempre soube que um dia ia ser isso, a gente ia se encontrar de novo e não ia ter estranheza nem mágoa, eu sempre soube que você não ia pisotear em cima do DVD do woody allen nem nada porque eu acho que eu sei muito sobre você, eu sei muito sobre a gente, eu sei muito sobre isso que a gente não entende e eu sei que você sabe também". Naquela hora me senti exatamente do mesmo jeito que me senti quando ela me perguntou "E você, fala de você". Daí respondi meio idiota "Eu sei, eu sempre soube sobre a gente". Ela me sorriu. Ela continua tomando café forte e sem açúcar, gosta dos mesmos escritores, descobriu uns outros, amadureceu, diz que não tem mais vontade sair correndo toda vez que sente que está indo rumo a algo mais sério (seja no amor, seja na profissão), ela ainda é de esquerda só que nem tanto e continua me dando olhar desconfiado quando eu digo que concordo com ela. Ela continua. Essa era a verdade toda, ela continua. 

E aí eu queria dizer pra ela sobre todas as coisas, sobre a infinidade do universo, sobre todos os textos que eu tenho escrito, sobre esses prêmios que me deram. Queria contar pra ela de todos os livros que li e pensei nela achando que ela ia gostar. Queria dizer sobre os CDs que guardei numa caixinha pensando que seria legal ouvirmos enquanto conversávamos e tomávamos cerveja. Ela gosta de cerveja e eu também. E era tanta coisa que eu queria falar pra aquela mulher que no fundo era a mesma, porque eu também era o mesmo e eu queria levar ela pra ver meus filmes preferidos pra ver se ela também gosta dos meus filmes preferidos e eu queria contar de todos os mistérios do mundo, dos escândalos, das verdades, das mentiras, das músicas bonitas que fizeram e não ouvimos juntos, das coisas que tenho feito, de tudo que mudei e ela ainda não sabe, de tudo que permaneço e ela já sentiu. Era tanta coisa que eu queria dizer e tanto medo de que ela não gostasse de nada disso que eu tenho pra falar, que eu quero falar em madrugadas eternas que passaríamos acordados. É tanta coisa que que quero dividir, eu quero mostrar meus textos e todas as pessoas que eu conheci e eu quero ensinar pra ela tudo que ela ainda não sabe sobre mim e quero que aprendamos juntos tudo que a gente ainda não sabe sobre nós e sobre o mundo, e sobre fotografia, cinema, física quântica, gastronomia, jogar tranca, buraco, regras de tênis, qualquer coisa. Eu queria falar, eu queria pegar ela pela mão e não parar de falar nunca mais só que eu tinha tanto medo que acendi um cigarro, perguntei se ela queria, ela disse que não fumava mais, perguntei se ela se importava com o cigarro e ela disse que não, e aí  fiquei ouvindo ela contar aquelas banalidades que ela gostava tanto. Ela me disse que eu continuava muito quieto. Eu retruquei "E a senhora sabe o que é o silêncio? O silêncio é a gente mesmo demais". Ela sorriu. Lembrei do livro dela e capa vermelha dentro da minha pasta e devolvi. Ela me sorriu franzindo o nariz e colocando a língua atrás dos dentes. Eu novamente não sabia o que dizer pra aquela menina que segurava um livro de capa vermelha e me perguntava "E você? Me fala de você!".  "Eu?… Acho que eu não gosto mais de Skank".  Ao encontrar com ela depois de tanto tempo eu continuava sem saber direito o que dizer., só que dessa vez não lhe dei um beijo. Vai que apresso demais as coisas, vai que a gente se atropela e se perde. O diabo é isso de se sentir menino de novo já sendo meio velho. O diabo é ela, outra vez. Ela diz que se a gente quisesse mesmo ser feliz a gente não podia levar nada tão a sério. Aí sorrimos. Recomeça. 

13.2.13

'cause I'm a free bitch, babe.

à todas àquelas que já foram julgadas e preteridas por exercer o direito mais primitivo e genuíno: não ter medo nem vergonha de ser/fazer aquilo que se quer (à  todas as "vadias").



Sentei na ponta da cama e quis te cutucar pra dizer uma infinidade de coisas. Coisas do tipo "é só isso que você quer comigo, é só sexo, sexo, vinte noites inteiras do melhor sexo e depois deitar, virar pro lado, nem um cafuné, nem perguntar que filme eu vi ontem, o que tenho feito da vida? É só sexo e você virando pro lado e babando e por vezes roncando e se mexendo desse jeito escroto que não me deixa dormir direito pra depois você me acordar atarantado dizendo que meu deus você está atrasado pro seu compromisso, sei lá que tanto você tem de compromissos, e aí vou eu pegando o ônibus segurando a bolsa com as minhas tralhas, voltando pra casa sem nem receber uma mensagem preocupada com o fato de eu ter ou não chegado bem. É isso que eu sou pra você? Sou só uma trepada boa, uma gostosa, uma dessas vadias sem tabu nenhum, é por isso que a gente se relaciona? E depois? Depois procurar uma mulher mais cheia de pudores pra planejar casar, e ter filhos e ensinar as filhas de vocês a não serem vadias, a se darem ao respeito, a não sair de roupa curta, não dar na primeira noite, ficar de frescura pra fazer um boquete porque homem, ah, os homens valorizam mulheres assim. Você valoriza mulheres assim? Eu sou isso pra você? A gostosa na sua cama, inteligentinha, bem apessoada. A gostosa feminista na sua cama que é tão livre tão-tão livre que é capaz de fazer qualquer coisa, mas a gente nunca precisa levar pra jantar, ou pro cinema, ou saber como vai a vida porque mulheres assim não precisam disso. É isso que eu sou pra você, seu bosta?"

Desisti. Você abraçava seu travesseiro e eu não conseguia dormir porque você tinha roubado todo o espaço da sua cama de solteiro. Tudo bem também, vai, eu sempre falei aos quatro cantos que eu sou mesmo essa criatura livre. Porra, não sou? Sou sim. Minhas amigas o tempo todo me dizendo que se eu continuar assim nunca vou casar, que se eu continuar assim nunca ninguém vai me levar pro cinema e eu sempre repetindo que não, que elas são loucas, que antes ir no cinema sozinha do que ter alguém que me controle. Elas namoram uns babacas péssimos que tem que ficar levando elas na porta do restaurante toda vez que vão sair sozinhas comigo. Sei lá o que esses caras pensam, se é porque eu sou solteira e "saio com qualquer um" eu vou levar elas pra orgia. Nunca entendi qual é a deles. E daí vira e mexe o cara solta um comentário meio babaca tipo "não gosto do seu cabelo assim", ficam ligando pra elas perguntando se eas vão voltar logo. Nunca um momento de paz e elas se transfigurando nessas amélias medonhas, nessas mulheres perfeitas, que querem ser tudo que o cara quer que sejam. Um medo tão louco de perder o homem que amam que aí se sujeitam. É o preço, não? Se eu não quero me sujeitar eu que me vire indo no cinema sozinha, comentando meus livros com algum amigo, passando noite de domingo vendo fantástico e comendo arroz com tudo que tinha na geladeira. Não saio dessa posição de solteira antes que arrume alguém que me deixe existir do jeito que eu bem entendo e elas querendo me arranjar com uns caras escrotíssimos que julgam a gente pelo tamanho da saia que a gente usa e ficam de birra se a gente sabe mais sobre um assunto que eles. Tudo um saco, um bando de babacas, o mundo é feito de babacas tipo você.

Você eu sei lá o que viu em mim. Deve ter visto o que todo mundo vê e é isso que me encana. Esses dias uma amiga que eu tenho disse que eu passo "a imagem errada pros caras". Ela quis dizer que eu sou puta e exigente demais. Focou no puta dessa vez. É que é isso, né? Se você resolve que vai se portar fazendo o que você tem vontade você é uma vadia. Eu não ligo quando me chamam de vadia. Acho chato porque a pessoa acha que isso vai me ferir como ser humano, que denigre a minha existência, que eu fico chorando na cama querendo ser recatada. E não fico. E olha, eu acho feio essas meninas que correm atrás dos caras, que se jogam e tal. Não por nada, acho que se elas se sentem bem assim elas tem que fazer o que bem entendem, mas tenho pavor de correr atrás de quem não gosta de mim. Então eu nem sou dessas vadias que saem na balada e pulam em cima dos caras e fazem lap dance e o escambau. Eu nem lembro qual foi a última vez que eu saí com um cara que conheci na balada, não lembro qual foi a última vez que me insinuei pra alguém que não me queria muito pra ver se eu conseguia a coisa na força. Acontece porque acontece, sabe? Dizem que eu sou extrovertida, engraçada, espirituosa, inteligente; já até ouvi que eu tenho "magnetismo pessoal"( mas achei meio bosta porque parece coisa de auto ajuda). Só que aí o cara me conhece e eu vou lá e falo de tudo, falo de sexo, não quero que paguem minha conta, se eu tiver numas de dar no primeiro encontro eu dou, e aí quando eu vi já fiz tudo que me deu na telha e os caras tão lá me olhando com aquela cara assustada de quem queria muito uma mulher desse jeito, mas sei lá né, vai que ela faz isso com todos. "Vai que ela faz isso com todos". Olha o pensamento dessa gente. Claro que já fiz com mais gente além dele, mas isso não significa que eu não preste, que eu vá começar a namorar e dar em cima de todos os amigos do cara. Me veem e já pensam uma coisa assim, um troço tipo "próximo cara que encontrar na rua vai dar também". Tenho certeza que todos os caras que me dispensaram pensaram isso. Fico pensando que você deve pensar um pouco isso também. 

Penso nisso todas as vezes que você me liga e a gente vem pra sua casa, transa e você vira pro lado sem nem perguntar se eu quero um salgadinho pra comer. Você deve achar que eu faço isso com todos, que eu não preciso de atenção, que eu sou muito livre pra esse tipo de babaquice tipo "amor", porque né, porra, vai esperar o quê de uma menina que senta com você e fala abertamente sobre todas as coisas, que não sente vergonha de ver esses vídeos de sacanagem que você tanto gosta, que fala na cara "isso eu faço, isso eu não faço, isso podemos tentar e tenho vontade disso". Você deve achar que eu sou uma puta, mas que você não precisa me pagar. Todos os caras do mundo acham isso. Sempre reaparece um babaca qualquer que eu já peguei e vem conversar comigo, e aí até pergunta como eu tô, se eu tenho passado bem, se meu trabalho continua pagando a mesma miséria de sempre. Aí me empolgo na conversa, acho que reamente a pessoa quer saber de mim e aí logo vem uma insinuaçãozinha, uma conversinha picante, um "a gente pode se encontrar semana que vem". Não cara, não pode. Não assim, não desse jeito, eu sou uma pessoa também. Às vezes sinto vontade e vou, sabe? Vou lá só pra descartar o cara mesmo, só porque eu sou mesmo esse espírito livre, mas depois me sinto um pouco uma merda. Uma merda porque não é que eles gostam desse meu jeito, não é que eles queriam namorar uma mulher livre dessas. É que é tipo uma puta que eles não tem que pagar, não precisam nem perguntar se eu vou ter dinheiro pro taxi porque eu me sustento. E nada de mal nisso, me sustento mesmo, dou um duro danado pra não depender de ninguém, mas às vezes é tudo tão vazio. É vazio estar aqui sentada na ponta da sua cama pela décima quinta vez sabendo que quaquer dia desses você vai me apresentar sua namorada na rua. Vai, porque vai encontrar uma namorada que vai ter que convencer a fazer certas coisas e vai achar o máximo que ela tenha certos pudores, que ela morra de vergonha quando você diz alguma coisa, que ela saiba menos que você sobre os assuntos que você domina. Você vai achar o máximo ela sendo meiga, ela nunca gritando, nunca fazendo piada fora de hora. Vai achar ótimo que ela não seja fácil, que ela não sente no bar com os amigos pra falar sobre qualquer coisa. Uma dessas meninas que riem meio baixo, uma dessas meninas que gostam um pouco de literatura, um pouco de cinema, mas sempre daquele jeitinho que você tem que explicar sobre os cineastas e sobre os escritores. Eu sempre me preparo pro dia que você vai me apresentar a sua namorada nova.

Daí esses dias eu estava pensando se eu queria mesmo esse peso ou se não era melhor ser logo um personagem mais comedido, uma dessas meninas que fazem doce, que não falam, que se fingem burras, que gostam que paguem a conta do restaurante pra elas. Ia ser mais fácil, acho que ninguém mais ia me mandar mensagem querendo me comer pelo simples fato de eu mostrar tudo que eu sou. Só que daí não sei, não compensa, eu não sou aquela. Eu sou essa daqui, poxa. Sou isso daqui tudo, sou assim, não sei ficar com um cara por conveniência, não sei fingir que não gosto de coisas que na verdade gosto, não tem porque eu me esconder atrás de uma coisa qualquer, não sei, uma bobagem só pra trair um cara que queira ficar comigo pelo que eu não sou. E é aí que tá a questão toda: não é que eu não queira ninguém, não é que eu espere essa vida livre e emancipada. Eu só quero alguém que me queira pelo que eu sou, e não que queira uma imagem melhorada de mim, um bibelô, sabe-se lá. Eu não quero ter que inventar pudores ou isso, ou aquilo, só pra alguém ter coragem de me pegar pela mão. Vocês são todos uns merdas, sabe? Se enchem com esse monte de vídeos pornô daí querem um mulher assim, daí encontram e acham que é uma vadia, que é legal pra ter por uma noite ou outra, pra ter um caso, pra levar vinte vezes em casa. Mas namorada não, namorada é outra coisa, namorada é alguém com quem você divide a vida e que vai educar os seus filhos. Não pode educar um filho homem que respeite mulher vadia, né? Não pode educar uma menina pra ser livre. Todo mundo tem medo de mim. 

Esses dias, veja, me deram "parabéns" por eu ser eu mesma. Disseram que era uma característica admirável e invejável. Agora pensa, óbvio que o cara quis dizer que devia ser um peso do caralho ser eu e que é pra invejar porque ninguém consegue muito. Sou muito diferente das minhas amigas, de todo mundo, todo mundo se segura um pouco, espera um homem pra proteger. E eu não sou, sou louca, boto a cara, ando de taxi sozinha, fico pedindo pra pagar o refrigerante se o cara pagar a pipoca. Aí eu fico pensando: que merda ser assim, né? Olha pra você aí, estatelado na cama, depois de uma noite de luxúrias e não levantou nem pra pegar uma água pra mim. "Eu sei me virar sozinha". Tá, eu sei, mas não significa que eu seja um monstro, que toda conversa comigo tem que descambar em sacanagem, que eu aguento tudo, que eu "sei lidar porque sou livre". Eu sou, mas sabe, meu deus, estou tão cansada. Cansada das suas mensagens me chamando pra vir aqui passar uma noite, cansada com todo mundo que não consegue falar comigo sem insinuar sexo. Quando foi que eu virei uma puta só porque eu sou o que eu sou? Meu cu, sabe? Esses dias mesmo apareceu um cara aí e eu achei que esse ia ser diferente. Começou aquele flertinho fofo, a gente falando das coisas que leu, das coisas que ouviu, ele me contando as coisas que gostava de fazer até que puf, de repente lá estava ele insinuando sacanagens. E né, eu levo numa boa, eu respondo, eu faço de volta. Demorou uma semana, te juro, uma semana e ele encanou com outra menina. Tenho certeza que pra ela ele declara poema, diz que gosta das coisas que ela gosta, que nunca faz uma piadinha de duplo sentido porque acha que ela ia se ofender. Ela fala baixo, ela ri envergonhada, ela é "fofa". Meiga, fofa, dessas pessoas que querem que todo mundo tenha um futuro lindo, que vive sorrindo nas fotos, que cuida dos animais. E eu lá. Eu isso. Essa escrachada que fala tudo que pensa e até é meiga, e fofa, mas ai, olha as coisas que ela fala. Vocês querem princesas.

Aí fico eu aqui, querendo te cutucar pra dizer que ó, eu nasci assim sem filtro mas eu também espero todas as bobagens que todo mundo espera. Espero ser amada, casinha de verão, livrinho compartilhado na estante, lanchinho na cozinha depois do sexo. Claro que eu também adoro noites sem compromisso, me envolver com caras com quem não quero nada, sumir. Óbvio que eu não quero namorar com todos os caras que fico, nem todo mundo espera namorar com todos os caras que ficam. O que eu quero dizer é que uma coisa não invalida a outra. Eu quero também alguém pra segurar na mão, pra me levar pra jantar. Só quero alguém que me ame e me respeite como eu sou. Assim, sabe? Assim sem saber fingir, assim fazendo piada e rindo alto. Assim falando sacanagem com os amigos na mesa do bar, sem esperar que um homem me faça as coisas, mas muito feliz se um homem estiver do meu lado pra ser comigo. Por que ninguém pode ser comigo, é o que eu ia te perguntar? Se eu sou assim, tão livre, tão cheia de vida, porque eu sou sempre a companhia legal pra passar uns dias, mas nunca a namorada? Se eu sou tão apaixonante por que ninguém nunca fica? Você também, você também vai encontrar uma menina meiga pra passar o resto da sua vida. Uma dessas fofas que sua mãe vai amar. Ninguém nunca acha que sou capaz. Acho até engraçado quando as meninas novas dos caras com quem fiquei sabem da minha história. Elas não ligam porque comigo "era só curtição" e com elas era amor. Então tudo bem. Então tudo bem que ele tenha ficado comigo por meses e meses e depois me largasse. Tudo bem porque eu sou livre, porque eu não ligo, porque eu não estou mesmo interessada. Meu cu pra todos vocês e pra todas elas, essas maníacas princesas que se acham superiores porque escondem tudo aquilo que querem ser atrás dessa maldita maquiagem e desses batons vermelhos. Atrás da vozinha, atrás do jeitinho fofo. Eu sou muito zoeira. Eu não sou nada disso, eu só sou eu.

Queria te acordar pra dizer que, que saco, eu também quero saber que eu posso ligar pra alguém no meio da noite e ser ouvida. Eu também quero os poemas, os jantares, as noites em que não se faz nada além de conversar sobre todas as impressões do mundo. Eu também quero um amor, esse amor que dá frio na barriga. Eu também quero cozinhar, fazer o doce preferido, dar colo, fazer chá, esperar com um novo prato que eu aprendi. Eu acho tudo isso lindo, eu quero tudo isso também. Eu também quero ficar, mas pra ficar tem que ser sendo eu, tem que ser com alguém que me ame do jeito que eu sou e cadê esse alguém? Não é você que trepa comigo depois me manda embora dizendo que a gente se vê. Não são esses caras que logo na primeira conversa insinuam qualquer coisa sabendo que eu não vou me importar. Não é nenhum desses que quer uma mulher diferente na cama e na rua. Não quero esse cara que me tolha, que não deixe eu ser quem eu sou, mesmo que eu seja uma merda, mesmo que eu devesse ser mais resignada, mais cheia de pudores, menos vadia. Eu quero alguém que me ame e me deixe ser. Alguém que não me deixe na ponta da cama sem um copo d'água, sem um cafuné, sem perguntar se a minha vida vai bem e se eu preferia as jujubas vermelhas ou as amarelas no infância. Porque tem como. Tem como ser assim como eu sou e amar, e comer jujubas e ler livros, e querer noites calmas com filme do woody allen no dvd e chocolate quente. E querer discutir filosofia. Que caralho, olha o tanto que eu estudei nessa vida, olha tudo que eu fiz e todos vocês teimam em olhar pra mim só como essa menina que fala de sexo abertamente. Falo, ué. Sinto vontade falo. Sinto vontade faço. E aí, uma coisa invalida a outra? Tem como ser louca vadia e amar. Tem como ser tudo isso e querer alguém comigo o tempo todo me amando justamente por eu ser livre pra ser quem eu sou. E livre quer dizer ser assim, isso, sabe? Isso aqui. Não quer dizer que eu queira ter mil caras ao mesmo tempo, que eu nunca queira me prender. Eu quero sim. Mas eu quero alguém que ache tudo em mim uma característica tão admirável e invejável que queira ter tudo isso pra si. Alguém que por me achar tudo isso eu nunca queira largar. Alguém que tenha orgulho de mim, de falar de mim, de contar de mim pros amigos e pras mães.  Alguém pra quem eu queria ser tudo, minha melhor versão, dar minhas melhores noites e minhas melhores conversas e minhas melhores comidas e meu melhor abraço e minhas melhores bobagens infantis, porque feito as meninas fofas, eu também tenho bobagens infantis. Porque tirando essa parte louca,  essa vadia como vocês gostam tanto de dizer, eu sou uma menina como qualquer outra. Eu sou igual a todas elas, eu só não escondo o que elas escondem. Eu não sou um monstro. Eu não mereço isso. Eu não mereço você e seu desleixo e sua vontade de me ter me-ter até arrumar alguém com mais compostura. Alguém assim, mais recatada, mais fofa, mais tudo que eu não sou. Quer saber? Você não merece saber de coisa nenhuma. Eu pego a minha roupa, pego um taxi, vazo daqui e nunca mais respondo essas suas mensagens cretinas. Alguém no mundo deve entender que puta como eu também ama.

As putas também amam.


nota da autora: esse texto não é pra ninguém nem sobre ninguém. é apenas uma ideia ficcional que veio de uma conversa sobre putas, vadias & outros animais com um amigo (e deve caber pra todas aquelas que um dia já foram chamadas de vadias pelas patrulheiras e patrulheiros da compostura - nós sabemos: as vadias também amam, e estão certíssimas). 

3.2.13

o killers nunca vai ser melhor que o strokes

(ou, uma carta para aquele que se foi).

My dearest,

Era assim que a virgina woolf chamava o marido dela no "as horas". Esse é um dos poucos filmes que eu gosto muito e que não vimos juntos. Todos os outros eu devo ter visto com você, ou por indicação sua. Os dias passam loucos e um pouco quentes. Você não sabe, mas estou quase terminando a minha monografia. Eu, sempre entusiasta de todas as redes sociais existentes agora escrevo um tratado inteiro sobre isso. Disso você não sabe, e de varias e imensas outras coisas. É difícil ir sem você. Você sabe que das vezes que eu fico louca, só você entendia. Meu mal estar do estômago, meu jeitinho idiota de sentir ciúmes das suas outras amigas. Você sempre percebendo, sempre rindo, sempre me dizendo "e agora, vai me mandar com o fulaninho?" e eu me achando louca, falante demais, estranha, até que você vinha e me dizia que nunca tinha problema, que nada disso tinha problema, que a vida é assim e que eu era assim mesmo.

Hoje senti saudades, vez ou outra choro um pouco ouvindo a pastinha de músicas com as músicas que eu "tinha que ouvir". Tenho andado confusa, histérica, uma bagunça sem fim. Tenha andado com medo dos sentimentos que não sei manejar desde o dia em que você se foi. Tenho muito medo de tudo, o tempo todo. Enquanto te escrevo essa carta sei que deveria estar dormindo. Enquanto dizia coisas sem sentido pra ele, pra eles, em todas as redes sociais, também. Não sei até que ponto ainda sou a menina brilhante da qual você sentia orgulho. Não sei se tudo que você faz ainda traz consigo a mesma beleza de sempre. Só sei que sinto sua falta, uma falta estridente de mil noites, uma falta de dias e das filas do mercado. Uma ausência se fim e nem começo. Uma ausência e só. Sinto falta do seu perfume enjoado, do seu sorriso de dentes tortos, das calças largas que vocè amarrava com cintos velhos, das sobreposições das suas blusas tique nunca combinavam entre si. Sinto falta do seu abraço, dos jogos do brasil e da rivalidade entre o barcelona e o real madrid. Sinto falta de você me dizendo que o Messi é um anão desajeitado e eu te contando que o Mauro Beting é o melhor comentarista de jogos da liga dos campeões. Sinto falta de estarmos.

Sinto falta das coisas que só você entendia e agora procuro em fragmentos nos outros. às vezes lembro da época que você encanou que queria fazer luta e chegou pra mim com um papelzinho de propaganda da academia. Guardei, depois sumiu. Tanta coisa some, tanta coisa desaparece, tanta coisa se perde no ar. Você gosta de UFC? Será que você faz piada sem graça com a voz do anderson silva? Será que em uma das madrugas infinitas na minha casa você pediria pra eu tirar da mtv e colocar na globo pra gente ver luta juntos? Provavelmente sim, tudo isso tem a sua cara. Aquele seu jeito homem do interior que entendia das coisas finas da vida, mas nunca, em tempo algum dispensava uma pelada ou uma luta. Será que você comeu uma pipoca melhor que a minha depois? Com vocè eu deixei meu livro preferido, minhas melhores anotações, meus melhores dias, meu melhor jeito de ser. Com você eu deixei o sorriso de todos os dentes. Agora rio baixo. Agora não gargalho. Com você eu deixei meus melhores textos e meus melhores trejeitos. Com você ficou a voz, daquele livro que eu te emprestei. Com você ficou a vontade de morar num quarto em que não existisse nada além de nós dois. Com você ficou o jogo do corinthians que nunca assistimos juntos e a promessa de caminhadas regulares no parque, quando chegasse o horário de verão, que nunca se concretizou. Com você ficou o que eu tinha de bonito e importante, com você ficou a parte de mim que eu sabia entender porque exergava em você.

Em mim ficou o medo de tentar de novo. O medo de estar me atropelando. Sempre ele, o medo, de não saber decifrar o que eu estou sentindo desde que você se foi. Com você meu surto era leve, meu ciúme tinha graça, pra você eu ironizava a vida pelo olho. Pra você eu fazia meus melhores pratos e era só com você que eu me sentia em casa. Desde que você se foi sei lá. É esse eterno andar por esquinas tortuosas, e quando eu me deparo com um dia como hoje, cheio de excessos, eu fico pensando o que é que você me diria pra fazer. Será que você ia achar graça? Será que você estaria no sofá de casa comendo brigadeiro direto da panela? Será que você me diria que a vista de casa permite o melhor do trabalho intelectual? Será que você ia rir da derrota do meu time? Ia me fazer chá, ia sentar do meu lado do sofá sem nunca encostar em mim porque eu sempre tinha a impressão que a gente ia dar choque? Será que quando eu estivesse perto de chorar você ia me segurar pela mão e me levar pra gritar pras pessoas que passam na rua da minha sacada? O que eu faço? O que eu faço comigo, com eles, com nós todos? Como é que eu paro de beber tanto, de tomar tanto café, como é que eu sossego se você era a única pessoa que entendia meu ciume bobo, meu jeito infantil, minha risada sem graça, meu desespero em demonstrar que você era pra mim a melhor pessoa do mundo. Você me chamava de porca quando eu derrubava molho do lanche no tênis. Eu te chamava de babaca todas as vezes em que eu sentia que te amava. Você era o melhor babaca do mundo.

Me manda alguma notícia, uma carta alguma coisa sua. Me faz rir de novo com uma música do terrasamba. me diz que você é o melhor jogador do time, o melhor artista da cidade, o cara mais bonito do mundo, o mais inteligente dentre os caras da sua idade. Me mostra de novo como é que eu faço pra ser incrível, como é que eu faço pra não falar demais. Me diz que tem como gostar de mim do jeito que você gostava. Me explica como que eu lido com os outros caras do mundo que não são você. Me diz o que eu faço da vida sem meu melhor amigo. Você podia dizer que eu sou uma pata, uma chorona, que eu torço pro pior time do mundo, que eu não tenho modos, que isso não é jeito de se fazer. Você podia querer me tirar da internet, das minhas conversas da internet, você podia esconder meu celular e me mandar viver naquele parque cheio de mosquito. Você podia criticar todos os meus novos amores, você podia rir de mim em todas as minhas novas crises de ciumes. Você podia roubar todos os meus livros, os meus filmes, a minhas vontades, a minha casa, o controle da minha TV. Você podia rir aquela sua risada horrorosa depois que eu te contasse tudo que eu fiz hoje e me aconselhar a ir com calma porque o mundo não vai acabar amanhã. E se acabar? Se acabar não ia adiantar nada também. Você ia me dizer isso? O que você ia me dizer? Você podia me bater, sujar meu sofá, quebrar minha caneca preferida, reclamar do meu café, ser o maior estorvo da minha vida e odiar todos os meus namorados que não gostavam de futebol. Você podia me dizer que não ia ser pra sempre o complemento perfeito para todos os homens que não traziam em si a dose perfeita de heterossexualidade e rir de mim todas as vezes que eu dissesse que eu arrumei mais um desses que não torcem pro brasil nem na copa. Você podia se morder de ciúmes dos que fossem iguais a você e me ligar dizendo que "ele não entende de futebol como eu entendo e eu esculacharia esse otário na nossa primeira pelada". Você podia reivindicar pra sempre o seu lugar de macho alfa na minha vida e socar meu ombro enquanto me contava histórias. Você podia tudo. Você podia estar aqui comigo na minha loucura, no meu stress e nos meus sentimentos que só vocè sabia dizer se era verdade ou capricho. Eu juro que eu nem ia te bater se você dissesse com aquele ar superior "esse amor que você inventou dessa vez não tem nada a ver, vamos ver uns filmes". Você podia tudo. Você só não podia ter e deixado.

São cinco e vinte da manhã, eu vou acordar atrasada como sempre acordei e eu juto que eu me pergunto onde é que a gente foi se perder. Não obtenho resposta. Só faço merda e depois choro baixinho em cima do meu computador. Nunca acredito em mim. Não sei como ir nessas estradas sem você. Se você ler isso em qualquer dia, em qualquer hora, em qualquer lugar. Volta pra mim, seu babaca. Eu prometo continuar sem nunca admitir que te amo.

Ps. O Killers nunca vai ser melhor que o Strokes.