(para se ler ao som de love is a laserquest )
sexta feira. madrugada. eu sou uma alma errante no meio da cidade fria. minha cerveja, sempre a minha cerveja. minha solidão. meus cabelos sem corte e mal cuidados. não te esperava mais porque eu não esperava ninguém em especial, eu nunca mais esperei ninguém. só foi assim. eu só cansei de esperar. estaria segurando um cigarro se fumasse, mas seguro bem minhas pulsões de morte. do jeito que posso. existir me dar náuseas, mas eu tenho medo de morrer. tenho medo de morrer porque tenho medo que o paraíso exista, e eu não sei o que fazer com a eternidade. a eternidade me dá calafrios na espinha.
seu atraso de meia hora, quase quarenta minutos. eu devia ter ido embora, mas nada me abala mais. uma, duas, três cervejas. as pessoas do bar me olham com certa pena. algumas cochicham. cochicham a minha solidão intrusa. as pessoas não sabem lidar com gente sozinha. eu sorrio um sorriso sádico e agradeço por pelo menos não ser o casal da minha frente que não se conversa. eu já fui neurótica pela sua presença e hoje evito até te mandar mensagens perguntando onde você está. podia ser um acidente de carro, uma fatalidade, é claro que podia. mas eu não acredito mais nisso. eu não acredito mais em você. eu não me importo se você morrer. eu sempre esperei que você sumisse, mas você continua. continua me perseguindo só porque você é sozinho, e quando você foge é porque se enxerga em mim. eu pensei isso no meu quinto copo de cerveja. esperaria mais vinte minutos e foda-se. se você não aparecer eu dou tudo por acabado sem te falar nada. e vou embora. eu sempre te disse que eu não sabia cultivar relacionamentos. você disse a mesma coisa. é pra isso que a gente nasceu. foi por isso que a gente se encontrou.
dai você chega. chega, não me olha nos olhos, pega um pouco da minha cerveja. pede desculpas, meio desajeitado. eu não ligo, não é como se você me machucasse. eu digo que tudo bem e sorrio. você sorri de volta, me conta da sua vida, dos seus sonhos, das suas perspectivas. quando eu falo você não me ouve assim, não completamente. seus olhos sempre procuram alguma coisa longe de mim que eu nunca vou saber o que é. talvez eu saiba. talvez seja outra garota, talvez seja a liberdade, talvez seja alguém mais simples. eu não te culparia por isso. eu nunca te culpo por nada, porque não há do que te culpar, assim, exatamente. eu soube de tudo quando te conheci. soube que nós não nos apaixonaríamos, não viveríamos uma bela história de amor, eu soube - como quem compra uma bandeja inteira de iogurtes na promoção - que eu tinha que te aproveitar logo porque a gente tinha data de validade próxima. e eu achei que fosse ali, naquele dia. você chegou desinteressado, bebendo várias cervejas, eu tinha que inventar assuntos sem vontade. você não queria meus assuntos daí a gente tentava comer, ou tentava beber, e você até tentou ocupar o vazio segurando as minhas mãos, mas nem isso daria jeito. foda-se. eu queria te deixar pra sempre. te deixar sentado na mesa segurando seu copo de cerveja e sua empáfia e te abandonar dizendo que na verdade eu nunca te quis. eu talvez te abandonasse sem dizer nada. não tinha nada a ser dito. nunca houve. eu te olhava como olhava as fotos do mural do meu quarto. meu quarto cheio de gente morta na minha vida, cheia de gente sem sentido e sem significado. eu te olhava e não achava o sentido em você. eu, vivendo a procura dos sentidos ocultos. não tinha mais o que te dizer, eu não tinha mais como fazer aquilo funcionar, eu tropeçava no meu salto alto, o mundo girava de um jeito enjoado quando você tentava me beijar. há quantos anos estamos juntos, eu pensava. pra esse cansaço todo? sete anos, talvez quinze. eu não lembrava direito nem o dia em que tinha te conhecido. eu sabia que não tinha que te anotar na agenda. eu não gosto de ser imprudente com sentimentos.
mas aquele dia tinha uma coisa, talvez o meu cansaço da vida, talvez a náusea de existir, talvez a simples vontade de romper com tudo e sair correndo. qualquer coisa dessas. qualquer coisa dessas me fez querer vomitar em você, te bater, te dizer que não precisava mais daquilo, que você podia ir embora e me largar pra sempre, e ia ser melhor assim. ia ser melhor assim porque eu não sabia lidar com seu silêncio, com o nosso cansaço, com essa merda toda. eu queria te dizer pra ir embora, ir embora de vez. me deixar, cuspir na minha cara que seja, mas acabasse logo com isso. eu já fui abandonada tantas vezes, tantas inúmeras vezes que não faz diferença, eu ia te jurar, não faz mesmo. ia ser mais uma. mais uma vez. eu ia acabar esquecendo teu rosto em dois meses e arrumando outra coisa pra me apaixonar. e você, quem sabe, se encontraria com o amor da sua vida porque é assim que funciona. é assim que funciona na minha vida. e eu, tão cansada de tudo, tão terrivelmente apática, de repente levantei e gritei:
- porra, que merda, me abandona de vez.
você me olhava e não entendia nada.
- me abandona, caralho, me abandona de vez. vai embora, me deixa a pé, andando na chuva, mas não me faz sentir como aqueles putos da mesa da frente. casados há duzentos mil anos e que não conseguem nem falar sobre o tempo. me faz pelo menos sentir raiva de você já que você tá matando todo o carinho. eu não sinto nada, caralho. eu não sinto nada você tá entendendo? na-da. me tira dessa merda. me tira. não dá assim, eu não sei continuar assim.
você pagou a conta, me puxou pelo braço, me sentou no banco lá fora. você me odiava. eu podia sentir que você me odiava. me odiava porque eu não tinha tido um porre e vomitado no seu pé, eu não tinha feito um escândalo de subir na mesa e dançar, eu não bati no teu carro nem risquei a lataria nova, eu só vomitei o que eu sentia em você. e com isso você não soube lidar. essa parte de mim você sempre preferiu esconder que existia.
- por que você fez isso?
- porque eu não nos agüento mais.
- e precisava, assim, no meio de todo mundo?
- na verdade o plano inicial era te dar as costas e ir embora sem te dizer nada. mas eu tô bêbada. eu tô bêbada e olhei pra essa sua cara de tédio e não deu. só te largar era muito pouco. eu tinha que te jogar isso, essa coisa. não dava pra ser assim, do jeito que eu achava que ia ser.
- você já gostou de mim, me diz você já gostou de mim em alguma parte disso tudo?
- eu gosto ainda.
-você disse pra eu te abandonar.
- justamente porque eu gosto de você. porque acabou a nossa urgência, dá pra ver, você olha pra mim contando as horas pra me levar pra casa. eu nem lembro qual foi a última vez que eu conversei com você alguma coisa com empolgação. é só assim, você fala, depois eu falo e você não me ouve e a gente come, depois trepa, e é tudo um pretexto ridículo, e quando não é isso estamos bêbados, e você me segura e eu vomito no teu pé, no teu carro, depois na cama. acabamos desacordados, um pra cada lado. decadentes. que rotina ridícula. a gente é ridículo. terrivelmente ridículos.
- eu não sei o que te dizer.
- você não sabe o que me dizer porque você nunca soube, porra. mas alguma coisa você sente.
- eu gosto de você.
- você gosta menos de mim do que gosta do seu cachorro.
- meu cachorro não exige validações de sentimento.
- e eu não exijo nada de você.
- isso é o que você acha.
- pode dizer que eu sou louca.
- e é. é porque complica tudo do jeito mais terrível.
- por que você não me abandona de vez?
- porque eu não consigo, tem alguma coisa em você. qualquer coisa.
- por que você não me abandona de vez?
- porque eu não quero.
- você ia mesmo me virar as costas?
- ia.
- não virou por quê?
- porque eu tinha que tentar pela última vez, vai que não sei, vai que dá certo, vai que eu redescubro em você aquilo que eu vi no primeiro dia.
- é isso que a gente vive buscando, será? aquilo que a gente era no primeiro dia?
- acho que é isso que todo mundo busca, no fim das contas. até aquele casal terrível e sofrido que tava sentado na nossa frente. todo mundo vive na esperança de voltar a sentir o encantamento e a urgência do primeiro dia.
- naquele dia você falava mais, bem mais.
- naquela época você era encantado por mim.
- você ainda sorri do mesmo jeito.
- e você nunca sabe direito a hora de me beijar.
você me beijou. eu te sorri. não queria mais te abandonar. não naquela hora. mas eu sabia, um dia aconteceria. talvez não hoje, e nem daqui há uma semana. mas chegaria o dia em que não existiria mais em nossos ossos o encantamento nem a urgência do primeiro dia, e nem seria possível recuperá-los. eu não anotei nosso primeiro beijo na agenda. não quero acreditar em amor como não quero acreditar no paraíso, porque eu não sei o que faria com a eternidade. a eternidade me dá calafrios na espinha. me enxergo te deixando deixando pra nunca mais voltar. imagino você me abandonando pra sempre, por causa da minha loucura insuportável. sorrio assim. me fazem feliz as bandejas de iogurte compradas na promoção para serem consumidas rápido, num tempo determinado. tudo tem data de validade.
."..and in the end gets easy to pretend that you are just some lover. "