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23.10.12

a idade de nenhuma razão

fico sentada aqui, esperando que as coisas façam algum sentido. Nunca fazem. Prometo todos os dias, sem faltar nenhum, que dormirei mais cedo, que acordarei mais cedo, que finalmente conseguirei tomar café no horário cedo e, quem sabe, comer um pedaço de bolo. Olho pra minha cara cheia de sono no espelho e concluo: as olheiras estão cada vez mais funda e a apatia, embora mais amena, ainda é visível.    A tinta do meu cabelo sempre desbota; faz dias que eu não sei direito o que é me arrumar pra sair. Quase não vejo a luz do sol, exceto quando olho pela janela um pouquinho antes de sentar na mesa em que costumo desempenhar minhas atividades corriqueiras que consistem em fingir que eu faço tudo aquilo que eu deveria estar fazendo de fato. Talvez devesse ter rotina, como todo mundo; sair todo dia às sete da manhã de casa, encarar aquelas pessoas de olhares tristes que nunca sequer souberam o que era querer ter alguma coisa a mais do que uma casa com tv pra ver o jornal e a novela. No meio disso tudo, desejar ser uma dessas pessoas; desejar ter uma casa, uma quitenete que seja e eletrodomésticos financiados em doze vezes sem juros no cartão. Uma geladeira, uma tv, um computador, um sofá mais ou menos, uma poltrona, um microondas. Depois um carro, uma fruteira bonita, qualquer parafernalha dessas de decoração de casa. Mas não saio, não quero nada. Minha existência se resume à duas novelas e alguns programas sobre culinária. O de sempre.

Nesses mesmos dias imagino ligar pra ele, convidar pra uma cerveja. Fico sempre pensando nele tentando me aconselhar de um jeito meio torto, depois me perguntando de uns livros; livros que nem li inteiros, mas gostava de fingir. Às vezes eu tinha que explicar alguma coisa usando minhas figuras estranhas de linguagem, minhas metáforas cheias de cultura pop. Ele ria. Ser mais equilibrado que eu era um pouco fácil, e mesmo quando eu chegava bufando ele tinha um jeito de dizer que "não era bem assim que as coisas eram, tem de ter paciência". Quase nunca soube agradecer. Ali na estante tem uma revista que comprei faz mais de um mês pra dar pra ele. Já imaginei todos os cenários possíveis. Convidar pra uma cerveja sem contar da revista; contar da revista com um pretexto pra sair; deixar na portaria do prédio dele com algum bilhete engraçadinho e esperar a resposta. Em qualquer uma das possibilidades me sinto inadequada. Aí fica a revista e eu esperando pelo dia em que estaremos nos braços dele de novo. Se é que um dia estaremos. Minha hipocondria heróica já antevê até essa dor de coração. Tenho medo de morrer empalada nessa montanha russa de sentimento que não sei como lidar. É como uma crise de pânico. Tenho medo de ter medo. Tenho medo de tudo que posso fazer de errado e aí não faço nada. Sou eu naquela última cena do alfie dizendo que todos eles fizeram muito por mim e eu não fiz nada por ele. Eu nunca fiz nada por ele. 

Meu rosto no espelho fatigado de tanta besteira & mágoa. As olheiras de quem passou um ano terrível. Corta o filme e eu faço meu cafuné desajeitado no cabelo dele. Três ou quatro vezes até conseguir encostar a mão. Aí encostava e girava os dedos do jeito errado. Nem sei se sei fazer cafuné. Das coisas que aprendi por amor, anteriormente, acho que só me sobrou o café. De resto, sei pouco. Acho que ele me ouviria falar sobre essas coisas que agora me interessam mas não interessam ninguém mais tanto assim. Não sei, também. Olho pros meus livros do Sartre na estante e quase consigo ouvir ele me dizer em sotaque francês que vai ser sempre assim: a gente sempre vai ter essa angústia pré escolha. Porque a angústia da escolha é sempre essa: a da coisa escolhida e a da coisa deixada. Fico pensando se seria capaz de largar um pedaço da minha liberdade por ele, e ao mesmo tempo penso no revés: quero largar ele por um tico de liberdade? Não sei responder. O sartre me olharia com aqueles olhos vesguinhos dele e talvez me entendesse. Talvez. A vida é sempre isso, afinal: um eterno não saber. 

Enquanto escrevo tudo isso o relógio marca que, mais uma vez, não conseguirei tomar café, tomar bolo, estar em pé antes do jornal da hora do almoço. De novo as olheiras cansadas de quem não consegue sair de casa pra comer uma coxinha, tomar um sorvete, ver se a rua continua do mesmo jeito ou se, quem sabe, construíram uma loja de alguma coisa qualquer no trajeto de sempre. As ruas são sempre assim: cheias de coisas que a gente nem queria pra invejar. Dei de andar sozinha e invejar os casais, as mulheres vendedoras em suas rotinas desgastantes, as meninas ricas que compram na arezzo às três da tarde. E eu ali, tendo que tirar dinheiro no caixa eletrônico pra comer uma coxinha, os cabelos desgrenhados, sem um propósito. Dia desses estive tão assim-assim que quase entrei na catedral. Depois fiquei pensando que estar na catedral seria mais ou menos como estar num daqueles shows que não conheço as músicas, mas todo mundo a minha volta conhece: o total despertencimento. Talvez seja isso a vida também, esse eterno show onde todo mundo conhece as músicas, menos eu. Fico querendo sumir; não sumo. Quero mandar uma mensagem pra ele; deixo pra amanhã. Ontem cantei uma dessas músicas que sempre canto e achei que ele entenderia. Sinto falta dele quando faço coisas que são exclusivamente minhas, e não sei o que significa porque não sei de nada. Enquanto escrevo tudo isso um bicho chato pousa na tela do meu computador. Canso de escrever do mesmo jeito que canso da vida; sinto muito sono e não durmo. Sei que amanhã vou desligar o despertador no momento em que ele tocar e deixar na estante. Na estante também está aquela revista que comprei pra dar pra ele e finjo pra mim mesma que agora é uma decoração pro meu quarto. Às vezes até acredito que comprei pra mim mesma. A cidade em que eu moro não faz barulho às quatro da manhã. A cidade em que eu moro é a cidade em que ele mora também. Meu coração faz um barulho estranho. Às vezes olho pra foto dele e não gosto da sensação; meu coração faz um barulho estranho. O barulho do não saber. Me olho no espelho e meus olhos estão vermelhos de sono. Prometo pra mim mesma que um dia lhe dou a tal revista. Nem eu acredito em mim. Vejo uma foto qualquer dele que surge por aí e penso envergonhada "ai de mim se ele ler esse texto". Agora sou simone de beauvoir segurando uma arma e Sartre me tendo pela cintura diz: "vai, atira!". Eu não faço nada e digo "o problema de escolher soltar a bala é a angústia de não saber o que aconteceria caso a bala tivesse ficado na espingarda". Ele me fita de olhos vesgos e sorri com os dentes podres: "a vida é a eterna angústia de não saber o que teria sido se a bala tivesse ficado na espingarda. E ao ficar, a angústia de não saber o que aconteceria se tivesse atirado". "A vida é uma merda, então", concluo. 

22.10.12

sonata do desassossego

Quando eu ligo pra ele, ele sabe, é porque as coisas entornaram o caldo de vez. "Entornar o caldo", expressão típica da minha mãe que eu uso muito porque fui criada com gente velha. O telefone tocou uma vez só, mas dessa vez nem foi tanto por mim; eu tava preocupada porque ele me disse que tava doente, vomitou no trabalho, sentia febre. Ele diz do outro lado da linha com uma tranquilidade inquietante "É princípio de pneumonia, mas não precisa se preocupar não, não é como se fosse pneumonia de fato, é só, bem, um princípio". Eu louca do outro lado da linha pensando "como pode, a pessoa quase perdendo os pulmões, vai que vira pneumonia de verdade e ele morre, vou viver sem ele como? Vou ter que pegar um avião e, imagina que trágico, pegar um avião pra ir pra cidade dele justamente quando ele já está morto e estirado num caixão. Nosso primeiro encontro na cidade dele seria um encontro-morte". Melhor nem pensar. Fato é que eu acabaria nem indo em enterro nenhum caso ele morresse. Capaz da mãe dele, ainda mais neurótica do que eu sequer sonhei ser, me dizer que a culpa foi minha, que ele morreu de tristeza porque eu sou uma asna. E eu ia bem concordar. Ia concordar porque concordo com qualquer um que me bote a culpa. Vivo até hoje sonhando em acordar  maravilhosa do "mal estar da noite passada" e limpar com esfregão e veja multi-uso todo e qualquer vestígio de sujeira que fiz naquele apartamento de pintura rosa por fora e carpete no elevador. Mil pessoas já me disseram "olha, a culpa não foi sua". Até meu médico. Segundo ele, naquelas condições, eu não teria nem forças pra me salvar de um desastre, de um caminhão que fosse. Eu ri e suspirei aliviada. Nem tão aliviada assim, entretanto. Fico com essa culpa aí. "Se fosse um caminhão e eu não tivesse corrido eu tinha morrido pelo menos. Não limpei uma merda de uma casa e lá se vai quase um ano da mais pura e genuína culpa. Mil vezes o caminhão".

Ele me atendeu solicito como sempre, me deixou contar de tudo aquilo que não importa a mais ninguém. Me disse umas coisas sobre a mãe dele, que ela chega lá no médico e fica dizendo que é isso, ele não se cuida, toma três litros de coca-cola por dia, fuma, não se cuida. Ele ali me dizendo bravíssimo que nunca mais tomou coca-cola e nem fumou. Tudo culpa minha. Sinto vontade esfregar na cara da neurótica que todo o progresso do filho dela teve um pouco de mim. Tenho mais vontade esfregar na cara dele que tudo que eu sou de bom hoje tem um pouco dele, mas acabo deixando pra lá. Eu ria no telefone, ele sempre diz umas coisas que me faz pensar que a gente podia ser um casal tipo esses do "before sunset, before sunshine" e tal, qualquer coisa dessas assim. Daí penso que não fomos, esqueço os reais motivos de porque não fomos e boto na minha conta de novo. Culpa minha que fui inventar de amar outro cara sendo que ele sim era o real amor da minha vida. Tenho uma porrada de culpas. Se fosse num bom analista acho que eu acabaria por vomitar no fim de toda sessão, de tanta angústia. Não indo em analista me resta ligar pra essas pessoas que nem fazem mais tão parte assim da minha vida por preguiça de explicar tudo isso p'ras novas. Ninguém entende. Até entendem, mas deixa quieto tudo isso. Mas fácil ligar pra alguém que diferencia a risada-nervosa da risada-risada. Ele me acalmou, fez as piadas de sempre, me disse que sábados eram os piores dias da semana pra quem não sai-cai-bebe-morre e pra quem não tem namorado, daí eu concordei. Fiquei pensando em como seriam horríveis os sábados depois do fim da minha novela preferida. Ia ter que ficar chamando gente pra sair, eu odeio chamar gente pra sair. Pensei "quando a gente namorava era mais fácil". Depois des-pensei. Do jeito que eu ando, se volto com um relacionamento desses é capaz de nada acabar antes que haja um homicídio, sangue espalhado por toda a sala, tipo filme do tarantino. Não dá, né. Gente destrutiva não pode fazer nada. Também é querer demais. No começo do ano eu não conseguia "nem se salvar de um desastre, nem se viesse um caminhão atrás de você" e agora fico aí, querendo resolver a vida. Não vai ser assim.

Fico falando pra ele sobre as minhas teorias sobre pós modernidade, e ele gosta de ouvir. Gosta de ouvir tudo que eu falo. Acho que foi ele que um dia me disse que poderia ficar me escutando pelo resto da vida. Ou não foi e eu inventei. Bem capaz de eu ter inventado. Eu inventei algumas coisas na nossa relação depois que ela acabou. Algumas aconteceram de verdade. Em um dos nossos primeiros encontros eu vomitei na minha blusa. Era isso. Na blusa. Vomitei na blusa e escondi. Ele não ligou. Não me mandou limpar, jogar a blusa fora. Só aceitou. Intolerantes a lactose por vezes vomitam na blusa e é isso. Acho que ele até me beijou antes mesmo de eu passar água na boca. Esqueceu o ocorrido. Amor é um pouco isso, creio eu. Um pouco de escatologia. Sorver os fluídos do outro. Sorver  (quase) qualquer coisa que o outro tenha a oferecer. Foi depois desse dia que eu resolvi deixar de ter vergonha dele. Hoje é assim, falo qualquer coisa que eu pensar. É por isso que se eu ligo pra alguém tem de ser pra ele. Não, não tem nada de "amor da minha vida", nem nada disso. Desprendi. O último cara que eu resolvi botar no patamar de "amor da minha vida" me estragou a vida, o universo e tudo o mais de um jeito que eu não gosto nem de lembrar. Coloco a culpa em mim de novo. Não sei fazer de outro jeito.

Mas de repente era aquilo. Eu olhando meu ano em que nada deu certo, tendo que admitir fracassos e depressões, tendo que saber que mesmo eu sendo uma louca control-freak "nem se um caminhão ameaçasse te atropelar você fugiria", e seguindo a vida. Fico com inveja (e medo) de todo mundo que tem um plano traçado, muitas certezas. "Ano que vem eu vou ser uma profissional". Fico eu aqui pensando que não sei nem se amanhã vou estar viva e todo mundo aí se gabando de coisas que ainda não conquistou. Me dá raiva. Eu tinha raiva dos planos bem traçadinhos de todo mundo, desse pertencimento louco. Todo mundo curtindo as bandas que vão pro festival e eu sem saber o nome delas. Todo mundo querendo trabalhar numa grande empresa e clamando por rotina e eu querendo, se possível, não ter nem uma casa com o meu nome pra não ter obrigação de me fixar. Os carros na minha rua bradando Gagnam Style e eu morrendo por dentro a cada acorde: não gosto. Remoo coisas também. Fico pensando como teria sido se tivesse dado tudo certo do jeito que eu planejei. Estaria eu feliz na minha cidade nova, com rotina, apartamento alugado, conta pra pagar e saudades dos pais? Não sei dizer. Dia desses me veio um telefonema de DDD 19 e eu fiquei pensando "e se fosse ele?". Não quis ligar pra confirmar. Fiquei dessas loucas que põe a vida na mão do destino e vão vivendo. "Se for pra ser". Maior das bobagens que eu consigo proferir na vida, mas profiro. Meus planos deram errado, meus amores da vida hoje têm um par pra comprar chicken nuggets no mercado e eu fico aqui, pedindo boa noite pra ex-amor no telefone quando tenho medo de dormir.

Tenho umas saudades reticentes que vêm toda vez que eu penso em coisas esparsas como a narcisa tamborindeguy, músicas do raça negra, cervejas artesanais, frutos do mar e o jean paul sartre. Daí penso que todas essas pessoas que eu coloco na minha vida são um jeitinho torto de não admitir que eu não queria nenhum deles, e sim, talvez: ele. Só que não sei também. Gente assim, desastrosa como eu tem mais é que ficar quieta. Talvez dois não-pertencentes como nós tenham mais é que permanecer sozinhos, sem sorver nada um do outro. Daí vejo a foto do Sartre com a Simone e repenso: "nem sempre". Depois não sei de mais nada. Corta pro médico dizendo que "nem se um caminhão viesse você escaparia" e eu sinto menos culpa de não ter limpado as paredes com veja ou de não ter tirado dos dedos aquela mensagem que dizia "e aí, e a minha coxinha?". Só que pouca culpa não é nenhuma culpa. Do mesmo jeito que, acredito, não saber direito o que quer é meio que não querer coisa alguma. Fico assim. Não ato nem desato os nós, vivo ridiculamente um dia de cada vez, e ligo pra ele (sempre ele) quando o caldo entorna. Gente despertencida precisa ter ao menos alguém que lhe conheça pela risada. Eu tenho ele, uns livros, outros bons amigos. Eu tenho isso e nenhum plano A, B, C, nenhum plano sequer. Não sei de nada. Nunca soube de nada. De pouco em pouco me livro da apatia e concluo: a vida é mais difícil pra aqueles que não têm certeza. Depois reitero: esse é o único jeito que sei. Pelo menos agora se um caminhão vier atrás de mim eu acho que fujo. Já tento sobreviver. Quem sabe um dia eu prove esse negócio aí, esse tal de "ser feliz". Quem sabe, um dia. Quem sabe.

7.10.12

sobre atravessar ruas e se apaixonar.

Faz mais ou menos uma semana que eu tenho tido que atravessar as ruas com meu pai. Ele não enxerga direito e cabe a mim a função de dizer pra ele quando é ou não é seguro ir pro outro lado da calçada. Faço bem a atividade, até. Vez ou outra corremos riscos, mas muito mais por causa de motoristas imprudentes do que por eu não ter visto direito. Antes disso eu sempre achei que não soubesse atravessar as ruas. Perdi a conta do tanto de vezes que quase fui atropelada. Eu sou muito desligada, não sei olhar dos dois lados, vez ou outra ando sem óculos, vez ou outra meu iPod está alto demais pra que eu ouça as buzinas. Toda vez que eu vejo um carro tirar uma fina em mim, quase posso ouvir minha mãe dizendo: "Deus protege"; e quase acredito, porque é a única explicação possível pra eu sobreviver a tanta desatenção.

Nesses dias andando com meu pai eu pude perceber que se a gente precisa fazer alguma coisa, a gente consegue. No caso do meu pai a equação é simples. Amo ele demais e qualquer coisa que acontecesse comigo me machucaria também. Cuido das ruas melhor do que eu cuido de mim. Sozinha eu corro em sinais pra fechar, atravesso no meio da rua, evito as faixas, não olho os dois lados. Com ele até me excedo. Brigo com carros que fazem qualquer coisa errada, espero os sinais abrirem, evito atravessar fora das faixas. Sei lidar. É fácil, de certa forma. Era mais difícil quando ele se recusava a ir comigo, ou não prestava atenção nas minhas coordenadas. Pra que algo aconteça entre duas pessoas, a outra tem de querer. Se uma não quiser, nada acontece. Por mais que a outra queira. Por mais que eu quisesse proteger meu pai dos perigos do mundo, eu só consegui protegê-lo quando ele deixou. Quando ele não quis, não deu. Ele resmungava, saia por aí brigando comigo, me chamava de pequena ditadora.

O amor não é muito diferente de atravessar as ruas com alguém.

Sempre me achei inapta pro amor, assim como sempre me achei incapaz de atravessar as ruas sozinha sem correr riscos. E estive certa, nas duas ocasiões. Quase fui atropelada vezes infinitas, e estraguei tantas histórias de quase amor (e de amor também) quanto pude. Não nasci com o chip. Tem gente que sabe amar. Gente que sabe mandar mensagem, dizer que ficou com saudades, escrever belos textos, galantear. Eu não sei. Todos as pessoas que conseguiram coisas de mim me quiseram muito em primeira instância. Meu primeiro namorado me venceu pelo cansaço. Não via graça nele. Ele era lindo, mas muito estranho. Eu não sabia muito bem o que aquele menino de coturno e bandana do axl rose queria comigo. Ele me disse que me amava anos luz antes de eu sequer cogitar dizer que gostava de conversar com ele, assim, de madrugada, contando as coisas que eu queria fazer quando tivesse dinheiro. Ele me chamava de "amor" e eu respondia com um apelido engraçadinho qualquer. Depois de um tempo me rendi. Ele me amava, eu amava ele de volta, e tudo que a gente queria era casar igual o axl e a namorada do axl em "november rain". Ele me prometia uma república com cinco caras numa cidade longe da minha e eu aceitava. E era isso.

Depois dele veio o segundo cara, o melhor namorado da minha vida, que me disse que me amava na segunda conversa. Era isso. Ele disse "te amo" e desligou o msn. Eu demorei três meses pra dizer que amava ele de volta de verdade, porque antes eu achava que era brincadeira. Quando ele fez planos de casar, e juntava dinheiro pra isso, eu me abstinha a achar engraçado. Depois eu vi que era verdade. 300 reais do estágio dele eram desviados do vício dele por coca pra quando a gente pudesse morar junto. Com ele eu escrevia cartas, bilhetes, presentes, mensagens de texto. Com ele eu aprendi a ser assim, explícita, porque ele também era. É como atravessar a rua. Eu atravessava com ele, porque ele me deixava ir.

Depois que eu terminei com ele teve um outro amor que nem aconteceu direito porque a gente não sabia se falar. Era como se os dois quisessem atravessar a rua, mas ninguém desse o primeiro passo, porque a gente achava que o outro não queria. Depois disso alguns caras que não queriam atravessar a rua comigo. Até que eu estava fazendo cappucino e pensando nisso daí que é o amor. Dia desses, nem faz muito tempo, alguém me disse que "eu não dei valor p'ras coisas que eu tinha porque eu não sei amar ninguém". O negócio ficou tilintando na minha cabeça, tipo música do raça negra, tipo pagode que diz que você jogou tudo fota e agora é tarde demais. Sempre me identifiquei com o eu-lírico masculino que diz pra mulher que ela foi cachorra e que agora ele está partindo pra alguém que lhe dê valor de verdade. Já aconteceu algumas vezes, teve gente que quis me cuspir na cara, e eu até tenho um sonho recorrente terrível em que todos os meus ex namorados se juntam numa mesa pra dizer pro meu namorado novo todos os porquês de não me namorar nunca-em-hipótese-alguma. Antes eu achava tudo muito pertinente, depois descobri que tenho uma tendência a me culpar. A inquisição de ex namorados é só um reflexo do fato de que eu acho mais fácil (bem mais fácil) colocar a culpa em mim e seguir vivendo. Tenho dificuldades em listar os erros dos outros porque bem, porque é chato você descobrir que o cara nem te amava tanto assim, que ele foi um retardado e tal, tudo isso.

Dessa vez em especial eu pensei sobre o lance das ruas. Ok, eventualmente eu não ligo. Eu não sei mandar mensagem dizendo que estou com saudades. Minha voz falha antes de eu ligar pra alguém pra convidar pra qualquer lugar. Meu jeito de demonstrar afeição sempre está ligado a comida ou a mostrar um vídeo que me lembra a pessoa no YouTube. Ou seja: sei demonstrar amor tanto quanto sei atravessar as ruas. Nas duas atividades sou desatenta e posso ser atropelada por um carro desgovernado a qualquer instante. Acontece que, no amor, assim como quando vou atravessar as ruas, se a pessoa me dá abertura eu consigo ir também. Eu sou capaz de prestar atenção. Eu sou capaz de retribuir gestos bonitos. Eu sou capaz de escrever textos, e-mails, mensagens bem boladas no celular. Só que fica difícil fazer tudo isso quando a outra pessoa esquece até os compromissos que tinha com você. Nunca te mandou uma mensagem de bom dia, nunca nem sequer disse de um jeito torto que se preocupa com você mais do que com qualquer fato corriqueiro da vida dela. Fica difícil descobrir se ela quer ou não que você seja aquilo que você podia ser. Fica a gente ali, parado na calçada tentando descobrir se o outro quer ou não atravessar também. Eu nunca soube se ele quis. Eu nunca tentei perguntar também porque eu não sei dar o primeiro passo. Todas as vezes em que me relacionei com alguém, a outra pessoa abriu um buraco nisso que chamam de coração e entrou. Entrou do jeito que dava, pulando de cabeça e eu só retribuia quando tinha certeza. Estraguei vários relacionamentos por causa da dúvida. Principalmente quando estive doente. Mas isso passa. Se a outra pessoa quer-mesmo estar com você, ela acaba arrumando um jeito.

Eu colocava água no pó de cappucino e, pela primeira vez, me eximi da culpa que me colocaram no ombro. Eu quis, eu sempre quis andar de mão dada na rua, ir no cinema, continuar, tentar, provar outros pratos, qualquer coisa que seja. Eu sempre quis, mas não dá pra querer sozinha. Não dá pra entender o monte de sinal ambíguo no meio da história toda. Não dá pra querer atravessar a rua com alguém quando você não sabe se ela te quer junto com ela ou se vai te xingar e dizer que prefere ir sozinha. Eu nunca soube. Daí entendi duas coisas: a primeira é que eu até sei lidar com esses troços de amor se a outra pessoa me deixar; a segunda é amor é igual tentar ajudar alguém que precisa: você só consegue se a outra pessoa também quiser.

E olha, a verdade é que não tem estrago nem tarde-demais quando você nunca soube se teve ou não teve algo pra jogar fora de verdade. Amor é que nem atravessar a rua, a gente só chega do outro lado se as duas pessoas quiserem. E se eu não fiz a minha parte, pode ser porque a outra pessoa também não tenha feito a dela.