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1.11.12

e quantas frases feitas vão me explicar?

você se espanta com o meu cabelo/ é que eu saí de outra história/ os heróis da minha blusa não são os que você usa/ e eu não te entendo bem. 

- para se ler ao som de "Uniformes - Kid Abelha"

Quando ele trancou a porta de casa e me levou pra comer, eu sabia que era pra sempre o abandono. Eu me segurava numa espécie de fantasia de alguém que podia ser eu, mas não era exatamente. O vestido xadrez roxo não combinava tão bem assim com aquele oxford vazado azul, mas era tudo o que eu tinha. Eu carregava a minha mochila de zebra que sempre caía uma alça e me sentia extremamente inadequada. É claro que a mochila que eu comprei teria que vir com uma alça com defeito. Eu combino com uma mochila capenga, cheia de repartições que eu não consigo manejar bem. Em uma das vezes deixei vinte reais com a moça do metrô e não peguei o troco. Enquanto isso minha mochila caia e uma legião de paulistanos tentava me alertar dos dezessete reais que eu tinha deixado no guichê. Não por compaixão; não existe com-paixão em SP, mas sim porque quanto mais eu demorasse pra pegar meu troco, mais eu atrasaria a fila. A linha amarela tem tanta escada quanto tem gente apressada pra chegar em algum lugar. Eram nove ou dez horas de uma quinta feira terrivelmente quente e eu me espremia chorando na frente de um cara que ouvia maroon five meio alto e não me percebia chorar atrás dos meus óculos marrons. Minha mochila capenga de um lado não combinava com um dos hotéis mais caros da avenida paulista, todo mundo podia ver, mas acho que eles não se importavam tanto assim. Eu, menos ainda. Tudo que eu queria era deitar naquela cama que cheirava a mofo e esquecer a noite passada em que eu tinha entrado num ônibus sem saber onde parar e tido uma noite estranha onde eu me dei muito mais por apatia do que por vontade. Eu soube na hora em que eu olhava pra minha janela que não abria e enxergava o prédio cinza: não existe amor em SP. Só que eu não quis acreditar. Continuei tentando arrumar do mesmo jeito que eu tentei arrumar a maldita alça da bolsa de zebra que sempre acabava caindo de novo. Tem certas coisas que a gente sabe que não tem conserto, mas também não consegue jogar fora.

Nesse dia foi ainda pior que essa sucessão de desastres. Eu estava do lado dele, e eu não sabia o que sentia por ele, e do lado desse outro que nunca foi nada na minha vida - mas me ofereceu soro caseiro. Minha mochila ainda caia, meus cabelos estavam errados, ele soltava da minha mão e tudo que eu não tinha conseguido fazer me passava como um filme. Eu era de novo aquela adolescente maltrapilha que não pertencia ao lugar onde estava. De vez em quando eu olhava pra ele e lembrava de tudo "ela vomitou em mim" "pra quê existe lei maria da penha?" "não se fazem mais mulheres como (insira aqui o nome de qualquer idealização que não seja eu)". Corta pra mim, com uma camiseta molhada de água de tanque berrando fluorescent adolescent. Os heróis na minha blusa não são os que você usa, porque ele preferia o brandon flowers. Mas o brandon flowers, imagino eu, é mormón demais pra entender gente depressiva. O alex turner não. Pisa na ferida da adolescência igualzinho a Paula Toller. "Landed in a very common crisis" não é lá muito diferente de "eu ouço sempre os mesmos discos, repenso as mesmas idéias". Ele um dia me disse que eu era bem esquisitinha. Ele disse isso e eu já lembrei de mim segurando aquele maldito livro do Drummond aos doze anos enquanto todo mundo se degladiava pelo Harry Potter. Concordei. Preferia assim. Antes óculos de aro grosso que "normalidade". "Normalidade é superestimada", eu quase retruquei. Só que não pra ele. Ele preferia que eu fosse mais normal.

Por várias vezes eu preferi que ele tivesse me batido. Doiria menos, apagaria o trauma mais fácil. Ninguém remói a história com alguém que te bateu. Agora, dar culpa pra alguém que já é ancestralmente culpada, daí sim era problema. Fiquei lá. Conseguia lembrar até das manchetes de vôlei que não conseguia acertar na educação física. De quando eu perdi o (até então) amor da minha vida pra aquela outra menina porque não soube falar o que eu sentia. Eu vestia uma camiseta do surfista prateado, na ocasião. Eu nem sei o que o surfista prateado faz, mas usava mesmo assim. Os heróis na blusa dele não eram os que eu usava, só que ele me entendia bem. Ao contrário dessa vez em que eu só ficava me perguntando se ainda podia doer mais do que estava doendo. Mais do que a adolescência. Mais do que quando me chamavam de esquisita e eu saia chorando. Bem, podia. Minha mochila de zebra quase derrubou um vinho caro da adega da padaria cara e de repente eu me sentia com treze anos tropeçando e levando a rede de vôlei junto comigo. Eu sempre sou aquela menina que era a penúltima a ser escolhida na educação física, antes só da menina claramente retardada que não falava. Naquele dia o mundo todo parecia que não era o meu lugar. Eu sabia que ele ia desistir de mim. Não adiantava eu pedir desculpas, ajoelhar no meio da paulista. Não adiantava que o relógio do itaú mostrasse uma mensagem de amor. Já tinha sido tudo. Éramos incompatíveis. Estávamos, ao menos. Minha depressão não me deixava fazer nada além de sentir culpa e reviver todos os momentos em que eu tinha estragado tudo. Eu, apática, no pátio do shopping relembrando todos os dias em que eu tinha feito alguma coisa inadequada e, enquanto isso, tentando arrumar pela décima vez a alça da minha bolsa de zebra. 

Eu não lembrava dessa tal canção da Paula Toller enquanto me arrumava pra sair e tentar esquecer. Tentava me animar com meu coturno "eu limpo as minhas botas, não sou ninguém sem elas". Foram elas que me acompanharam em boa parte desse desastre. No dia em si eu usava o oxford porque fazia parte da fantasia. Claro que nem as minhas botas me salvavam do desastre. Tropecei na rua, e tive que tirá-las no aeroporto porque elas tinham metal demais. De algum modo, essa canção tocou na minha cabeça durante todo esse episódio. A canção da inadequação. Tudo aquilo, desde eu errando tudo o que ele esperava de mim, até o fato de eu não saber que ele, como fernando pessoa, não gosta que lhe peguem no braço podia ser resumido nessa frase que permeou toda a minha adolescência: "os heróis na minha blusa não são os que você usa, e eu não te entendo bem". Eu sempre volto a ser a menina de franja feia, camisa larga e calça de gorgurão que tropeçou na própria calça e saiu rolando a arquibancada toda acabando assim por quebrar o dente da frente inteiro. Algumas quedas da vida nos quebram os dentes, outras nos quebram a alma (essa, impossível de consertar com resina). Minha alma já estava rachada em mil pedaços. Tão quebrada como a minha bolsa de zebra. Ele só terminou de rasgar a alça e aí não teve mais onde me segurar. Caí. Meu coração caiu no meio da estação da sé as seis da tarde e ficou. Pisoteado. Estou quase boa. Daí ouvi essa canção de novo e chorei. Eu ouço sempre os mesmos discos, repenso as mesmas idéias. Não sei quantos uniformes ainda vou usar, não sei quantas frases feitas vão me explicar. Aí fico pensando se um dia a gente vai se encontrar quando os soldados tiram a farda pra brincar. Não obtenho resposta. Talvez não - é que eu saí de outra história. 

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