Páginas

17.11.12

sempre vai haver uma canção contando tudo de mim



O Rodrigo nunca soube que eu ouvia "Ele quer me conquistar" enquanto sonhava platonicamente que ele era perdidamente apaixonado por mim e não só queria conferir comigo as respostas de matemática no colégio. O andré nunca imaginou que eu entendi aos doze anos - depois de descobrir que ele não era apaixonado por mim, e sim pela menina que eu mais odiava no colégio - o sentido da frase "agora você vai embora, e eu não sei o que fazer; ninguém me explicou na escola, ninguém vai me responder". O Fábio não sabia que eu pensava nele ao ouvir "amanhã é 23; são oito dias para o fim do mês. Faz tanto tempo que eu não te vejo, eu queria o teu beijo outra vez" porque ele fazia aniversário no dia 22 de janeiro (que vem a ser um mês de trinta e um dias, como na música). O fernando não imaginava que, enquanto ele me perseguia pelo colégio, eu ficava cantarolando "porque é que eu não desisto de você?" tentando entender como é que podia alguém que nunca tinha falado comigo me querer tanto assim. 

Perdi as contas das crises de ciúmes que eram entendidas ao som de "Seu Espião", das noites que chorei encolhidinha na cama me perguntando "se existe alguém ou algum motivo importante que justifique a vida ou pelo menos esse instante", de quantos amores eu pensei que, se não tivessem exagerado a dose, podiam ter sido grandes amores. Meu grande amor não soube que eu só entendi exatamente cada palavra de "os outros" quando o perdi. Não soube também minha mais recente decepção amorosa que, depois de anos ouvindo "alice (não me escreva aquela carta de amor)", eu finalmente fui entender que tantos sonhos morrem em poucas palavras; um bilhete curto e já não há nada. Estavam certos em pedir a Alice pra não escrever aquela carta de amor - eu não devia ter escrito também, concluí chorando. Não sei quantas vezes citei sem ninguém entender que "eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim" e mal pude explicar a mim mesma o quanto "nada sei" é uma música libertadora porque trouxe em si toda a sensação do não-saber dos meus treze ou catorze anos. Entendi exatamente o que paula me ensinou aos onze, quando eu andava pra lá e pra cá com meu diskman rodando kid abelha, quando dizia que "garotos perdem tempo pensando em brinquedos e proteção; romances de estação, desejos sem paixão: qualquer truque contra emoção" assim que tive minha primeira decepção amorosa. Paula sempre esteve mais certa que o Leoni. Leoni retratava o igenuidade de um garoto perto de uma mulher, mas a Paula sabia que os garotos gostam mesmo é de iludir, sorrisos, planos, promessas demais. Poucos deles não queriam que eu fosse outra, entre outras iguais. 

Além da minha mãe, das novelas da tv, dos livros que eu devorava quase que maníaca; a outra responsável pela minha formação com certeza foi Paula Toller. Não só ela, como todos os meninos do Kid Abelha. Só que ela era mais, porque ela também era uma menina. Fosse um homem cantando aquilo, não faria tanto sentido. É como o Legião Urbana: eu até gostava do renato, mas sabia que certas coisas ele nunca seria capaz de entender. Ele não escreveria "Garotos" porque era um garoto também. Era um pouco isso que eu pensava, de camiseta larga e calça esquisita, ouvindo meu diskman enquanto o mundo passava em volta. Tive todos os cds do Kid Abelha que existiam. Me apaixonei pelo acústico quase que perdidamente e, encontrei em "eu tive um sonho" minha música preferida por meses e meses. "Não deixe de cruzar o seu olhar com o meu; eu vou jogar meu corpo em cima do teu" era a maior declaração de amor que um ser humano podia fazer ao outro. Sonhava em encontrar um amor que não deixasse de cruzar o olhar dele com o meu, e que desejasse nunca deixar de jogar o corpo dele em cima do meu. Não encontrei naquele ano. Pensava num único garoto que nunca me deu bola. "Dizem que sou louca por eu ter um gosto assim, gostar de quem não gosta de mim". Em todo caso aprendi também que o pior de tudo era não amar, e jogava as minhas mãos para o céu porque tinha alguém que eu gostaria que. 

Minha adolescência foi toda embalada pelos inúmeros CDs do Kid Abelha que eu comprei. Fiz as meninas do meu grupo na educação física dançarem "Fixação"ao invés de backstreet boys com doze anos de idade. Eu nem lembro quantas vezes eu ouvi esse tal CD duplo. Tivesse uma last.fm naquela época, Kid Abelha facilmente estaria no topo de execuções. Eu tinha a pose exata pra me fotografar, e aprendi num filme pra um dia usar. Mantinha um ar cruel de quem sabe o que quer. Sabia todas as letras de cor. Eu tinha pressa, tanta coisa me interessava - mas nada tanto assim. Eu, minha franja que não se acertava direito, minhas roupas feias e meu nariz grande demais tinhámos em Paula Toller e seus abóboras selvagens um refúgio contra o horror que é crescer sem saber direito o que era crescer. Era anacrônico ouvir Kid Abelha nos anos 90. Aquele CD era anacrônico, mas as músicas eram minhas. A Paula Toller me entendia. Quando ela entrou no palco eu não soube fazer outra coisa a não ser chorar. Eles diziam que iam fazer uma viagem pelos 30 anos de carreira. Essa viagem era também a viagem pelos meus vinte e três anos de idade. Lembrei de amores, ex-amores, dos meus pais, de amigos que não são mais meus amigos, de boas noites e de noites terríveis. Eu ouvia os barulhos do começo de "Seu espião" e podia me ver de novo encolhida no banco de trás do carro sabendo que eu ia ouvir pela décima vez meu CD preferido. Não tem palavras que digam direito o que é ver de perto a banda que embalou toda a sua formação como pessoa adulta. Eu sabia todas as letras de cor. Todas aquelas frases já tinham sido escritas nas minhas agendas em algum lugar do passado. Todos os meus amores platônicos pelos meninos da sala ao lado tinham como trilha sonora uma música qualquer com a voz doce da Paula Toller. A voz doce da Paula Toller que dias atrás me fez chorar com "uniformes" que eu ouvi encolhidinha debaixo dos lençóis, igualzinho eu fazia quando eu tinha treze anos e não queria que a minha mãe me visse chorar. 

Tanta coisa que não muda. Eu ainda vou errando enquanto o tempo me deixar; eu escolho filmes que eu não vejo no elevador pelas estrelas que eu encontro na crítica o leitor; eu ainda não sei o que fazer quando alguém vai embora porque ninguém me ensinou na escola e ninguém vai me responder; eu ainda não aprendi com a Alice a não escrever aquela carta de amor (por que você precisa ser tão sincera?). Eu queria dizer de algum jeito pra Paula Toller que ela tinha sido minha amiga. Que ela, sem nem saber, me compreendeu durante essa jornada estranha rumo a ficar adulta (ou quase). Eu não ia saber o que dizer a não ser "obrigada". Eu não soube muito bem o que fazer a não ser dançar no meu mundinho particular no meu primeiro show sozinha. Ninguém seria capaz de entender minha íntima relação com aquela banda que é da geração passada. A relação era entre eu e eles, igualzinho era quando eu ouvia mil vezes o mesmo CD deles durante as minhas viagens. Ninguém, além de mim, entenderia o porquê dos meus olhos marejados ao perceber que aquela voz que me entendia nos meus fones de ouvido que sempre quebravam, existe e faz piada. Eles existem fora do meu universo e no universo de várias outras pessoas. Eles embaralam não só a minha vida como também alguma parte da história do casal na minha frente e do menino do meu lado. Eles foram a trilha sonora da vida da minha mãe e da minha. Eles foram a trilha sonora de romances que não existiram, inseguranças que eu não contei pra ninguém e, talvez, de partes da minha vida que ainda nem aconteceram. Eu redescubro identificações que não sabia aos dez anos quando roubei o CD duplo da minha mãe. Eu entendo coisas que não entendia na época. Certas coisas eu ainda sinto exatamente do mesmo jeito, e volto a ter doze, treze, catorze, quinze anos. Certas coisas sempre vão ser iguais. Perder um grande amor vai trazer sempre consigo a ideia de que "depois de você, os outros são os outros e só"; novos sonhos ainda vão morrer em poucas palavras e, eu ainda quero alguém não deixe de cruzar o seu olhar com o meu pra eu poder jogar meu corpo em cima do seu. 

O que eu entendi é que certas coisas continuam inalteradas. Eu cresci e continuo sentindo certas coisas exatamente iguais. A Paula envelheceu e continua tendo a mesma voz que tinha quando tocava no meu diskman da philips que funcionava com pilha. Amor dói e faz feliz; às vezes nada nisso tudo faz sentido; eu ainda vou errar muitas vezes e pouco vou saber dessa vida. O que fica é isso. O que fica é isso que tem dentro. O que fica é saber que sempre existe algo que você gostaria que estivesse sempre com você na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. E esse algo pode ser qualquer coisa, desde que faça sentido; até mesmo um CD velho de uma banda dos anos 80. Afinal, sempre vai haver uma canção contando tudo de mim; sempre vai haver uma voz contando tudo de nós. 

Nenhum comentário: