Eu assinava aquele monte de prontuário enquanto tentava descobrir o que deu errado entre eu e ela. Ela tinha me botado pra fora de casa com todas as minhas coisas dentro de uma mala velha e dito com as sílabas separadas pra eu nun-ca ma-is voltar pra vi-da dela. Nem tive muito tempo de pensar em nada, só enfiei a mala dentro do carro e vim pro plantão. Hospital público é essa desgraça. Eu chego, vejo que tem cem pessoas na fila, sei que vou atender as dez que estiverem pra morrer e o resto vai ficar lá, ou vai voltar pra casa depois de tanto esperar até que piore de vez pra poder entrar na fila das dez que estiverem pra morrer. A vida é uma merda, a vida é você estudar cinco anos pra chegar no último e ficar descartando ficha como se tivesse jogando war. "esse serve, esse não serve, esse aqui quem-sabe a gente atende se tiver tempo". Uma merda. Enquanto eu separava as fichas ficava pensando o que foi que eu tinha feito de tão errado pra ela acabar comigo daquele jeito. Porra, tá que eu vinha chegando tarde sempre, mas eu tinha alertado que resolver namorar com um estudante de medicina era isso. Não podia ser SÓ isso. Antes ela me esperava dos plantões acordada, me fazia café, me deixava o chuveiro quente, tomava banho junto comigo, a gente trepava antes de eu dormir e ela ia pra faculdade, ou pro trabalho, ou continuava dormindo se fosse sábado ou domingo. Não sei quando a gente se perdeu, só sei que os relacionamentos são isso: um dia você acorda pra ir pro seu plantão e a sua namorada enfiou todas as suas coisas numa mala e disse que nunca mais quer te ver. nun-ca ma-is, com as sílabas separadas e a porra toda. Não conseguia entender, a gente não tava tão bem assim, a gente trepava menos, saia menos, às vezes não conversava durante o jornal, ou durante a novela, e eu nem tinha lá muita vontade de comentar com ela essas coisas todas que eu faço, mas isso não é normal? Não é isso que a vida faz com a gente? Quero dizer, você namora com uma pessoa por três, quatro anos, depois chega uma hora que vocês não ficam mais radiantes um com o outro, você repara nas mulheres bonitas que atende quando passa pela ginecologia, mas isso não significa que o relacionamento virou uma merda sem fim e que ela precisava botar minhas coisas numa mala e me mandar embora. Bem, talvez ela precisasse sim. Talvez tudo tivesse uma merda. Eu, ela, nossa vida sexual, nossas conversas, nossos cafés da manhã em silêncio. Eu, ela, minha vida, a vida dela, a gente perdido e estressado demais pra poder se agüentar, e o sexo também andava uma bosta. Quando nem o sexo vai acho que é motivo suficiente sim pra ela enfiar todas as minhas tralhas dentro de uma mala e me mandar embora. Só podia ter tido mais cuidado com meu estetoscópio. Me jogou na cara e quase que quebra tudo. Eu quis dizer pra ela "ô, péra, isso custa caro". Só que daí ela ia ficar mais puta ainda e capaz de quebrar o estetoscópio de vez. Ela é desse tipo. Capaz de pisotear no estetoscópio e me jogar na cara os restos dele depois. Ela é assim, meio assim.
Queria ter menos tempo pra pensar nela e nessas coisas todas. Queria que meu trabalho fosse menos mecânico. Eu só separava as fichas de acordo com a gravidade das coisas e aí tinha um tempão pra pensar em tudo enquanto analisava se estar com a perna necrosada é mesmo muito pior do que essas dores abdominais muito fortes que podem ser apendicite e apendicite é uma merda porque é um negocinho de nada, mas daí dependendo o troço estoura, o cara morre e aí é mais uma notícia de "senhor morre na fila por falta de atendimento". Não que as pessoas liguem muito, porque essa gente não tem nem nome no jornal. É só um "senhor que morreu na fila por falta de atendimento". Morrem vários, a gente não dá conta. Antes quando eu via isso na tv ficava pensando que quando eu fosse médico eu ia fazer um multidão e cuidar de toda essa gente que morre na fila, só que não dá, não tem como, não tem tempo, nem disposição e aí quando você vê, você perdeu tanto o controle da sua vida que a sua namorada de anos, com quem você planejava casar depois que terminasse a faculdade botou todas as suas coisas numa mala e disse que não quer te ver nunca mais. O tempo é cruel. É isso. Três minutos que a gente demora pra atender alguém que teve parada cardíaca e a pessoa fica comprometida pra sempre. Dois, três minutos podem ser a diferença entre alguém sair ileso ou entrar em coma, ou morrer, ou sei lá. Três minutos de atenção todo dia, de conversa, podiam ter salvo meu relacionamento. É que eu sou um bosta também. Eu devo foder mal, eu nunca prestava tanta atenção assim nas coisas que ela falava e acho que tinha vez que ela queria conversar. Acho que comecei a tratar todo mundo meio igual paciente, a gente tem que ouvir rápido porque tem mais vinte pessoa na fila, daí a gente só ouve o que importa. Aí receita alguma coisa, não tem muito mistério. Eu achei que ela também não tivesse mais mistérios. Que era só continuar do jeito que tava, entrar em casa todo dia e ver ela como parte da decoração, como o quadro que eu comprei logo que a gente decidiu morar junto e que eu sabia que nunca ia sair dali. Eu achei que ela nunca fosse sair dali também. E não saiu, né? Mas me mandou embora. Vadia. Agora deve estar contando pra todo mundo que esse ótimo estudante de medicina é um bosta, um babaca, um merda que não sabia nem tratar e nem comer ela direito mais. E ela vai falar assim mesmo "nem me comer ele comia mais". E eu até comia, mas depois virava pro lado e dormia, e acho que ficou uma coisa tão mecânica que eu nem lembrava depois se tinha sido bom ou não. Uma vez acordei com ela me pisoteando dizendo que eu era um canalha, que era sempre assim, que eu gozava e esquecia dela, que isso não se faz. Sei que eu virei pra ela e respondi "e você acha que uma chupada agora vale mais do que os cinqüenta pacientes que eu tenho pra atender amanhã? Não tenho tempo pra essas bobagens". É, pensando bem, ela tem toda razão de ter enfiado as minhas roupas na mala e me mandado embora. Devia ter feito isso antes, até. Caralho, olha o bosta que eu fui com a mulher que eu amo. Amo, amava, gosto muito, acho gostosa. Não sei. Não sei mais. O que eu sinto por ela afinal? Vai saber. Fico com pena de ter que colocar essas fichas desses velhinhos que tem mais de setenta anos na caixa de fichas que não vão ser atendidas. Sei lá, o velho acordou cedo, pegou ônibus, veio até aqui na esperança de um atendimento se não digno, ao menos mais ou menos e nem isso ele vai ter. Queria pelo menos poder oferecer um café, dizer pra voltar depois. Não devia ser assim. Merda de vida. Oito da manhã e essa gente tá aqui desde as cinco e metade delas vão voltar pra casa sem nem ter podido pegar um analgésico. Merda de vida.
Metade dessa gente que vai ser atendida vai ser internada. Dá pra ver pelos sintomas. Vai ter gente que vai precisar de cirurgia. Não tem nem mais cama direito nesse hospital. Um hospital entulhado de gente feito um depósito de supermercado entulhado de latinha de massa de tomate. Que caralho de vida. Oito horas e eu só saio no outro dia seis da manhã. Plantão de 24hrs no pronto socorro. O pior plantão. Nunca para de chegar gente. S;o de noite, porque ninguém gosta muito de vir em hospital de madrugada. Fica hostil. Fica hostil porque chega gente baleada, gente que bateu de carro, gente atropelada no meio da rua, gente que levou tiro de traficante. Vem tudo pra cá. Vem os bandidos também que a polícia pegou de madrugada. Daí a gente sempre ouve algum enfermeiro torcendo pra que o bandido morra. É engraçado porque o bandido podia ser o enfermeiro se tivesse um pouco mais de oportunidade. Nunca disse isso pra nenhum enfermeiro. Um dia vou dizer "podia ser você se você tivesse nascido na favela". Melhor não dizer nada, os enfermeiros já odeiam a gente de qualquer modo. Eu queria que de noite eu tivesse tempo de ligar pra ela. Nem que fosse no intervalo, sei lá. Lá pelas sete da tarde para de chegar gente. Eu queria entender onde é que isso tudo aconteceu. Mas aí ligo e digo o que? Peço desculpas, digo pra ela que eu sei que eu fui um merda, que eu devia ter dado mais atenção? Não vai funcionar, né? Taí o tipo de coisa que ou a gente percebe no ato ou senão ferrou. Já imagino ela no telefone me contando vários episódios dos quais não lembro e aí eu me sentindo horrível porque na hora que fiz a tal coisa que ela me acusou só conseguia pensar que a gente perde muita gente nesses hospitais. Fico pensando nas velhas às vezes que contavam de suas peripécias sexuais. Melhor que a minha vida. Eu não queria saber de nada, mas elas sempre contavam. Tem essas que contam dos filhos também. O que tem de filho que abandona a mãe, chega a ser pecado. A minha é implicante, mas nunca abandonaria. Fico com pena. Elas gostam da gente porque a gente tem a idade dos netos delas. Aí falam "cês são uns moço bonito" e a gente sempre fica sem graça. Eu fico. Tem gente que gosta. Tem gente que abraça as velhas. No começo eu abraçava também, mas agora é tanta gente que eu me sensibilizo menos. Às vezes eu tratava ela como uma dessas velhas que eu esquecia de abraçar. Acho que ela já ficou esperando por uns abraços que eu não dei. Que merda de vida. Nem sei o que se passa com ela. Eu fico tentando, mas não sei. Ela me contava as coisas e eu nem prestava atenção, depois respondia com um "sei, entendo" e ela ficava meio puta e ia fazer chá. Ela sempre fazia chá quando ficava puta e devorava um pacote de bolacha recheada. Ficava no computador vendo seriado, comia as bolachas e me olhava brava por cima do monitor. Acho que era desencanto. Não devia ter feito isso com ela, mas eu ficava tão pouco tempo em casa e tudo isso é tão estressante que eu acho que eu esqueci que eu precisava cuidar dela também. Ela cuidava de mim. Ela me fazia janta e café da manhã. Porra, teve um dia que ela me fez meu bolo preferido logo de manhãzinha. Deve ter acordado tipo quatro da manhã pra dar tempo. Nessa época a gente ainda se dava bem, eu ainda comia ela direito. Acho que depois do bolo a gente trepou na pia mesmo. Aí foi pro quarto depois e ela dormiu abraçada comigo. Eu gostava tanto dela, do cheiro dos cabelos dela quando ela saia do banho, do jeito que ela usava essas camisolas que a alça sempre caia e aí ela ficava de peito de fora. Era tão bonita. O jeito que ela arrumava a estante de livros dela, todos por cor e não por autor. "o livro da capa roxa". Eu entendia tão pouco dessas coisas que ela gostava tanto e ela sempre me explicava. Deitava com o pé no meu colo enquanto eu via futebol aí parava e lia um pedaço do livro. Eu nem me irritava, parece que dava uma poesia pra minha vida o fato dela existir. Eu queria que ela existisse mais vezes. Acho que uma vez até falei isso pra ela, eu taba aqui no hospital e ela me ligou, e eu contei de um caso de uma velha que dizia que só conseguia dormir quando tomava chá (e ela também era assim) e aí disse que elas iam gostar de se conhecer, que ela devia existir comigo mais vezes. Ela achou bonito pra caramba, ficou um silênciozinho de sorriso no telefone e ela sempre me dizia isso e tal. Que queria que eu existisse mais vezes. Aí agora olha a merda, não quer me ver nunca mais. E ainda separou as sílabas nun-ca mais. Merda de vida.
Agora eu não sei mais se eu queria que ela existisse mais vezes.
A penúltima vez que olhei no olho dela foi antes de eu gozar e ela parecia triste.
A última vez foi quando ela disse que nunca mais queria me ver e ela parecia aliviada.
Queria que ela tivesse chorado, me batido, qualquer caralho desses.
Mas ela só colocou a mala dentro do carro e disse que não queria mais me ver.
Daí eu fui embora, né? vai fazer o quê?
O primeiro paciente entrou se queixando de dores fortes na barriga. Tinha tido câncer no estômago recentemente. Não era bom sinal, a gente sabia que podia ter voltado. Ele também sabia e por isso nem ficou me fazendo muita pergunta. Só me perguntou se ele ia ter que fazer a biópsia. Eu disse que não, que primeiro um exame pra ver se tem mesmo um tumor, e aí sim a biópsia. Só que eu e ele já sabíamos que era câncer. E que se tivesse voltado podia ser que tivesse espalhado pro resto do corpo. Ele sabia disso e eu sabia também, só que a gente não precisa falar certas coisas. Ela não precisou me dizer nada quando me olhou entrando no carro. Eu sabia que ela me odiava e que a gente podia ter morrido naquele momento. O velho também sabia que podia estar morrendo. O silêncio é um pouco isso, não é? A presença da morte. Nós dois estávamos cansados, e aí ele resolveu que ia conversar. Merda de velhos, tem mais dúzias de pacientes pra atender e eles resolvem puxar papo. Tudo bem, esse podia estar morrendo e não deve ser nada fácil perceber que a gente tá morrendo. Daí ele me perguntou:
- Doutor, o senhor sabe se tem que vir alguém acompanhar o exame ou se pode vir sozinho memo?
- Pode vir sozinho, pelo menos nesse primeiro pode vir sozinho. Se tiver que fazer biópsia daí é melhor vir acompanhado, porque é uma mini cirurgia, às vezes é bom ter alguém junto.
- É que eu não queria que a minha mulher ficasse sabendo.
- Sabendo do exame?
- É, que eu posso ter essa doença maldita de novo. Melhor nem falar o nome. É nome de má sorte. Ela ia ficar tão triste. Fez novena, tava comemorando já que eu tinha curado, mandou até rezar uma missa em agradecimento. Depois vai que voltou essa maldição, capaz dela ficar triste até com Deus. Não quero que ela fique triste nem comigo e nem com Deus.
- Mas o senhor sabe que pode não ser nada, né? De repente é mesmo só uma gastrite.
- Mas é que pode ser também, né? Nem contei pra ela de nada. Disse que tava com desarranjo por causa de alguma coisa que tinha comido daí vim pra cá, falei que era melhor ver, que vai que é uma coisa séria, vai que é dengue. Dengue, tem dado muito surto de dengue, e dá diarréia também, acho que ela acreditou. Não quero que ela saiba que eu posso morrer de novo.
- O senhor tem medo de morrer? Porque não precisa, já disse que pode não ser nada.
- Tenho medo de morrer não, tenho medo é de deixar ela sozinha. Dela me ver sofrer e aí deixar de gostar de Deus e deixar de gostar da vida. Ela é tão alegre. única vez que vi triste foi quando eu peguei essa maldita aí. Daí ela ficava o tempo todo rezando e às vezes de noite ela chorava porque eu escutava. Mas quando eu acordava ela não ficava triste mais. Queria me animar de todo custo, trazia comida pro hospital, dormia do meu lado, botava nos programa de tv que eu gosto. Só que no fundo eu sei que ela tava triste. Sofria mais por ela do que por mim. O doutor tem mulher?
- Tenho. Tinha. Ela me mandou embora de casa hoje. Botou a mala no carro e disse que não quer me ver nunca mais.
- Oxe, mas o que o doutor aprontou?
- Acho que eu falhei em perceber que no fundo ela tava triste.
- Pode não, doutor, tem que prestar mais atenção em quem a gente ama do que na gente. Da gente a gente sabe bastante. Dos outro sempre tem coisa que aprender. Eu ainda aprendo umas coisa dela até hoje. Mas tem que cuidar sempre, porque às vezes amor também murcha, é que nem pranta. Quando a gente pranta as coisa no quintal a gente tem que sabe entende como que elas gosta das coisa. Se gosta de sol, de sombra, de muita água, de poca água. Se não presta atenção daí as pranta morre tudo. O amor da gente é e mesminha coisa. O doutor devia é de ter prestado mais atenção na mulher do senhor daí as veiz ela não tinha te largado. Coisa triste o amor da gente larga a gente. Uma vez a dorinha foi embora de casa e foi pior que essa doença maldita. O senhor fala com ela, exprica as coisa, a gente às vezes erra mesmo porque é normal, eu já errei com a dorinha. Mas perde o amor da gente dói mais que essa dor aqui na barriga, e os doutor não tem remédio pra essas dor não.
- Acho que vou ligar pra ela. Obrigada pelos conselhos.
- De nada, doutor. Mas ói, então venho sozinho pra esse exame aí que o senhor pediu. Vou contar pra dorinha que deve de ser nada não, que é só exame de rotina daí ela não fica triste nem com Deus e nem com a vida. Depois a gente vê.
- Tá bom, assim que tiver o exame pronto traz pra gente olhar. Não há de ser nada, lembranças a dorinha.
- Pode deixa, e o senhor vê se liga mesmo pra mulher do senhor que coisa triste é vida sem amor. Mais triste que doença.
- Vou tentar, vou aguar essa planta.
O velho saiu do consultório atrasando toda a fila de pacientes atrás dele que já cochichava que tem gente que não tem noção, que demora muito na consulta, que não pensa nos outros, que esses médicos de hoje são todos lerdos. Fingi que não ouvi nada. Trinta fichas esperando na mesa. Todas as pessoas impacientes, pareciam que iam armar uma revolução. Queria pensar em outra coisa e só pensava nela. Nela que talvez tivesse deixado de gostar da vida por causa de mim. Pensei no olhar de alívio que ela me deu ao me dar a mala. Trinta pacientes esperando por mim e era ela quem eu tinha feito morrer. Aos poucos. Com cada grosseria, cada desatenção, com cada transa mal dada. Sou um bosta. Eu gostava tanto que ela existisse e tratava ela pior do que os pacientes, pior do que a moça do café do hospital. Acho que eu sorria pra moça que me entregava o café. Não lembro da última vez que sorri pra ela. Não lembro muito dela a não ser de uns olhares tristes que ela me lançava, mas eu achava que era cansaço. A gente passa a vida disfarçando tristeza com cansaço. Eu não soube entender que ela tava triste. Liguei pra um amigo meu, mandei ele me cobrir pelo amor de deus no plantão, que a minha vó tava passando mal, que não tinha quem acudisse que eu ia ter que ir lá correndo e aí ele puto porque tinha planejado ir numa festa, sei lá que porra, foda-se a festa dele, eu preciso resgatar minha vida antes que ela morra na fila do hospital. Ele disse que ia, saí correndo, gritei pra fila que tinha emergência, as pessoas todas me xingando, eu dizendo que calma, o outro médico vem logo. Peguei meu carro, a mala que ela fez de qualquer jeito continuava lá. Nem uma porra dum bilhete desses dela que machucam ela quis botar. Nada, ela não me disse nada. Eu já imaginava ela num almoço com as amigas dizendo que tinha me botado pra fora de casa porque eu era um babaca e aí contando uma por uma as bobagens que eu fiz, as vezes que eu tratei ela que nem lixo, as vezes que ela foi chorando no ônibus pra faculdade, as vezes que eu esqueci que ela existia. Ela contando tudo isso e todo mundo me achando um bosta também, e com razão, porque é isso que eu sou, é isso, caralho, eu não soube prestar atenção na mulher que eu amo. Amo? Amava? Amo. Amo, quase chorei quando o velho contava aquela história lá e tô aqui num carro com a mala correndo atrás dela do jeito mais estúpido possível. E eu nem sei se ela vai estar em casa porque eu nem sei mais os horários dela, eu sei lá, eu respondo tudo que ela me diz falando "sei, entendo" e não sei e nem entendo nada, essa é a grande verdade. Eu só sei falar de mim e ela ouvia no começo, caralho, ela ouvia tudo e me respondia e me fazia cafuné e dizia que eu ia conseguir sim ser um médico foda, que eu não ia virar uma pedra de gelo, ela dizia tanta coisa e eu não sei nem a merda do horário que ela chega em casa. Vou tentar, se ela não estiver. Deve estar no estágio. Caralho, que estágio, ela reclamava desse estágio mas sei lá que estágio era esse, onde fica, sei lá que dia que era. Foda-se, vou tentar em casa. Casa. Sei lá se é minha casa isso ainda. Entrei em casa e ela tava sentada no chão agachada olhando o primeiro quadro que a gente comprou. Ela olhava o quadro com um misto de raiva e pesar e acho que na verdade ela tava pesando se tirava ou não da parede. Fui eu que comprei o quadro. É do meu pintor favorito. É um quadro do miró. Eu sentei do lado dela e ela não me percebeu, Não sabia o que falar. Dizer o quê? Desculpa por ser um babaca? Que vai ser melhor dessa vez? Que eu não vou esmigalhar a vida dela em mil pedaços e que ela nunca mais vai me ver gozar enquanto me olha com um olhar triste? Tudo merda. Tudo isso já taba na memória dela enquanto ela olhava aquele quadro e tudo que eu falasse era uma chance de perder ela pra sempre. Daí ela olhou pro lado e me viu, não fez nada, nem me bateu, nem me mandou embora. Só ficou me olhando, depois olhou pro quadro de novo e deve ter pensado em toda a bosta que eu tinha sido com ela. Era eu que tinha que dizer desculpas. Era eu e não ela. Eu, mesmo que eu tivesse falado pra todo mundo que a culpa do nosso relacionamento merda era dela que era louca e chegava em casa gritando comigo falando "quem é a vadia com quem você tá?". A culpa era minha. Aí eu disse "desculpa, a culpa foi minha", e ela me olhou com a mesma cara que os pacientes diagnosticados com câncer olham pra gente quando a gente diz que tem tratamento. É uma espécie de esperança morta. Ela olhava pra mim com uma esperança morta. Ela era uma inocente com fratura exposta e eu sou o bandido que atirou e os enfermeiros rezam pra que morra. Eu mereço mesmo morrer. Eu sou um lixo. Eu ofereci minha mão, ela pegou minha mão com uns dedos moles enquanto continuava olhando o quadro na parede. Eu não sabia o que fazer. Só sabia que eu queria que ela voltasse a existir mais. Mas ela é o paciente que eu não sei se vou conseguir salvar. Os doutor não tem remédio pra essas dor não.
2 comentários:
lindo texto, larissa!
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