Olho pela janela que não é minha. É a janela do homem que amo (amo, amava, amaria, amarei?). Não sei muito bem em que tempo conjugar o verbo, nem que substantivo usar para definir o sentimento. Talvez as crianças que estudam na escola que vejo dessa janela saibam sobre os substantivos e as conjunções verbais que desaprendi com a vida. A vida desensina. A vida desensina de verbo, de substantivo, e de sentimento. A vida é.
Da janela que não é minha (mas é a janela do homem que amo) (amava, amaria, amarei, amo?) (não sei em que tempo conjugar o verbo nem que substantivo usar para nomear o sentimento), vejo um estacionamento, uma árvore que dá pinhas (dessas que minha mãe costumava colher para usar no natal como decoração), uma rua que vai dar não sei onde, várias árvores das quais não sei o nome (talvez meu vô saberia), dois prédios brancos onde deve morar gente pra quem a vida já desensinou diversas coisas; e, finalmente, a escola onde nesse momento brincam um grupo de crianças que, provavelmente, pouco pensam sobre os mistérios que penso enquanto olho por essa janela que é a janela do homem que amo (amo, amava, amaria, amarei?).
A escola é simples, não possui pintura, é de um cinza de concreto que reflete a aspereza da cidade, e tem umas janelas pequenas e coloridas, que se agrupam em grupos de seis. Seis janelas laranjas, seis azuis, seis vermelhas e seis amarelas ou beges (depende da precisão do observador). Tem também um canteirinho dessas flores que dão em todo lugar (apelidam de maria-sem-vergonha) (maria-sem-vergonha é também o nome que se dá àquelas mulheres que se dão fácil) (foi a mulher que deu nome à flor ou a flor que deu nome à mulher?), e uma quadra onde nesse momento os meninos jogam futebol enquanto as meninas permanecem imóveis sentadas numa escadinha próxima à quadra conversando.
Essa é aquela idade em que meninos e meninas não se misturam ainda. Essa é aquela idade em que eles começam a entender os mistérios do amor. Talvez uma menina chamada Ana esteja perdidamente apaixonada por um menino chamado Márcio, que nesse momento faz um gol e ela sonha que ele dedique pra ela. Talvez Márcio pense mesmo em dedicar esse gol para Fernanda, a menina que Ana mais detesta. Talvez algumas meninas comentem sobre como acham os meninos odiosos e, alguns meninos, por sua vez, ainda confessem ter nojo desses seres que gritam e falam de novela. "Bobagem de menina", eles dizem. "Besteira de meninos", elas comentam enquanto observam eles jogarem futebol. As crianças de camiseta branca e calça vermelha que vejo da janela do homem que (não sei) se amo pouco sabem sobre os mistérios do amor. A vida ainda não lhes desensinou nada de importante.
Do lado de dentro de tudo isso, do lado que a janela esconde, estou eu. Eu que olho para essas crianças que conversam, que jogam futebol, que vestem calças vermelhas e camiseta branca, que podem ou não estar começando a entender os mistérios do amor, que podem ou não se chamarem Ana e estar encantada por um menino chamado Márcio. Que não devem ter as angústias que tenho. Que não perguntam qual é o tempo verbal do sentimento e qual o melhor substantivo para defini-lo. Chamarei o que sinto pelo homem que amo (amava, amarei, amaria, amo?) de amor ou deve se chamar outra coisa? O que sinto quando olho para ele segurando o rosto com o braço esquerdo, compenetrado em seu trabalho? O que sinto quando ele insinua que tenho mania condenável de tropeçar na rua (e no jeito de sentir)? O que sinto enquanto da cama dele o vejo sorrir por uma coisa qualquer que não sou eu? Quantas vezes anda discutiremos Rubem Braga e ele reclamará que a minha presença nessa cama e nessa janela que dá pra esse estacionamento, essa árvore que dá pinhas, várias árvores que não sei o nome (mas meu vô talvez saberia), dois prédios brancos onde deve morar gente pra qual a vida já desensinou diversas coisas e, finalmente, a escola onde momentos atrás brincavam um grupo de crianças que provavelmente pouco pensam sobre os mistérios que penso, o desconcentra? Quantas vezes mais eu ainda o verei animado com uma palavra ou outra que vem das suas traduções intermináveis? - essa a única paixão que deve ser maior do que a paixão que ele tem pelas mulheres. Quantas vezes mais ainda existirei eu nessa janela que não é minha (mas é a janela do homem amo)?
Para certas perguntas da vida, não existe uma resposta definitiva, nem tampouco imediata. Certas questões da vida são a gente que cria. Começa na escola, talvez. Numa escola parecida com essa que observo da janela. Talvez comece na primeira vez em que Ana se questiona se Márcio gosta mesmo dela ou prefere Fernanda. Não há o que saber, as coisas são. As crianças sempre sabem que as coisas são. Elas não duvidam do que é. O amor existe e é amor. A mãe existe e estará sempre ali. A gente só chora quando precisa de alguma coisa. As crianças não conhecem as grandes angústias do mundo. As crianças que correm na quadra em frente ao prédio do homem que não-sei ainda não desaprenderam a vida. Eu olho a janela a procura de respostas que não virão e me inundo de dúvidas que não tem porquê. As coisas são e isso é tudo. Não importa o substantivo, o tempo verbal, ou quantas vezes ainda olharei esse homem me fitar com um olhar que às vezes traz em si uma dose de desprezo. A grande questão do mundo é que não é preciso saber. As crianças que brincam naquela quadra sabem muito sobre isso. As crianças tem mais propriedade sobre os mistérios da vida. A vida desensina. A vida desensina de verbo, de substantivo e de sentimento. A vida é.
Nenhum comentário:
Postar um comentário