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20.3.13

do encontro e da despedida


Entro no aeroporto atrasada. Sempre atraso. Nunca sei onde deixei minhas chaves e checo a mala umas sete vezes pra ver se não esqueci nada. Mesmo assim esqueço. Vez ou outra viajo sem pijama ou sem escovas de dente. Nada grave. Sempre dá pra comprar outro pijama ou outra escova de dentes em qualquer lugar do mundo. Ao chegar no táxi sempre digo pro taxista se apressar um pouco enquanto reviro a minha bolsa pra me certificar que não esqueci a identidade. Se eu esquecer tem que pedir pro mesmo taxista que apressei dar a volta e me esperar buscar os documentos. Nunca esqueço os documentos, exceto em ocasiões importantes. Quando lembro de checar sempre estão lá, quando tenho certeza que estão os esqueci em casa. Metáfora pra vida. O que a gente não esperava está, o que a gente jurou ser pra sempre vai embora. Besteira. O taxista corre um pouco, eu pago e deixo o troco com ele. Entro no aeroporto atrasada. Sempre atraso. Entrego pra moça do balcão meu check in feito na internet e só despacho as bagagens. A moça da companhia me avisa com uma voz mecânica que vai anotar que os pés da minha mala já vieram quebrados. "Pra evitar problemas posteriores", ela diz. Eu assino o papel. Rio enquanto penso que todos nós deveríamos avisar onde já viemos quebrados para "evitar problemas posteriores". Despenso. "Os relacionamentos não são contratos, os relacionamentos tem de vir da vontade de estar junto". Sei lá quem me disse isso, mas lembrei. Bobagem. Pego a minha mochila e entro na sala de embarque. Minhas botas não passam no detector de metais. Nunca passam. Não uso tênis porque as botas pesariam demais na mala. A moça da companhia com sua roupa impecável me oferece um desses protetores de pé. Digo que não precisa. Ela diz que vai sujar minhas meias. Aceito "para evitar problemas posteriores". Coloco a bota de volta. Aproximadamente quarenta minutos esperando por um vôo que vai durar uma hora. Não gosto de aeroportos. Nem de aviões. Ele não me liga pra perguntar que horas eu vou chegar ou se eu vou mesmo. Não que eu esperasse. Ninguém me liga. Já tinha deixado todo mundo de sobreaviso "eu pego um táxi, um ônibus, eu sei me virar". Todo mundo acha que eu sei mesmo porque meu celular não apita. Evito tirar o computador da bolsa. Não quero saber de ninguém. Fico trinta minutos observando o moço que ronca na cadeira a minha frente. Acho que pegaremos o mesmo vôo. Ele é bonito daquele jeito exótico das pessoas que tem um mundo a parte e não fazem a mínima questão de que alguém entenda o universo delas. Gosto de gente assim, complicada. Ele ronca alto e a sala de espera toda vez ou outra olha pra ele. A moça anuncia o meu vôo. Não sei se é o vôo do moço. Cutuco ele e digo o número do vôo. Ele me agradece meio rabugento e coloca a mochila nas costas. "É meu vôo sim, valeu aí". "Valeu aí". As pessoas tem jeitos cada vez mais estúpidos de dizer "Obrigada".

Subo as escadas. Odeio as escadas do avião tanto quanto odeio o avião em si. Escadas mal projetadas e uma sensação louca de que cairemos todos estatelados com a escada que vai despencar. Sempre tropeço. Sempre tem um casal de senhores atrás de mim que me olha com reprovação. Acho meu assento na janela, não tiro os óculos escuros por nada desse mundo e fecho a janelinha no momento em que entro no avião. Não gosto de ver o avião subir, é uma coisa que eu tenho. Se eu morrer eu não quero ver o avião caindo. Morro de medo de decolagens. Não gosto do percurso e também tenho medo quando pousa. Não gosto de aviões. Uma hora inteira dentro de um negócio que voa e da onde a gente não pode sair. Uma hora inteira flutuando no ar de maneira inexplicável. Compro sempre os assentos no fundo do avião, mas longe da asa. Não gosto de gente do meu lado e pouca gente gosta de sentar no fundo. Só que o avião quase sempre lota e sempre tem alguém sentado do meu lado. Eu sinto muito medo e não gosto que me perguntem se eu estou bem, nem que se ofereçam pra pegar na minha mão. Uma vez um cara se ofereceu. Segurei a mão dele até o avião subir. Depois sei lá, não conseguia olhar pra ele por nada nesse mundo. Acho segurar a mão íntimo demais pra desconhecidos. Ele falava comigo e eu não respondia quase nada. Sei lá se era bonito, mas qual é o sentido de se começar um romance no avião? Eu ia descer e ele continuaria indo pra sei lá onde. De amores que se vão já me basta os que tenho em terra firme. Acho que disse isso pra ele "gente que vai embora já tenho bastante lá embaixo". Depois disso ele não me disse mais nada. Só segurou a minha mão na hora da aterrissagem. Eu disse que não precisava, mas ele disse que era um bom jeito de terminar a história. Acho que era mesmo. Os amores que eu tenho lá embaixo nem sempre seguram a minha mão quando eu tenho medo de cair. Nem perguntam se eu cheguei viva, aliás. Olha aí, desliguei o celular e nem um sms. Gosto de botar a culpa da falta de comunicação no sinal da operadora. A verdade é que essas operadoras de sinal ruim nos deram uma justificativa pra frustração. A gente sempre pode se enganar achando que vinha sim uma ligação um sms, mas eles não chegaram a ser completados. Bobagem. A verdade é que a pessoa em questão deve é estar muito ocupada fazendo outras coisas ou "cuidando da própria vida". Cuidar da própria vida é uma coisa que todos fazem e parece ser a grande e importante ocupação de todos os seres-humanos contemporâneos. "Não tenho tempo pra você porque tenho que cuidar da minha vida". Um dia eu tive uma crise de riso quando um cara me disse isso e ele me perguntou porquê. Aí eu respondi calmamente "Com essa frase eu pego a minha mochila e vou embora da sua casa pra nunca mais". Ele ficou me olhando perplexo dizendo que já tinha pedido a pizza. Eu respondi que se eu fizesse parte da vida dele, cuidar da própria vida contemplaria cuidar de mim também. Ele me olhou indo embora e perguntou "calma, você tá indo embora mesmo?" aí eu disse que sim, que assim ele ia ter tempo pra "cuidar da própria vida". Hoje a vida dele incluí uma noiva que, é claro, não sou eu porque ninguém gosta tanto assim de namorar pessoas que tem medo de avião, de cair, de angústias e, principalmente, medo de cuidar dessa tal de "'própria vida". 

Já estava comemorando o banco vazio quando o moço que roncava checa a passagem e percebe que comprou um assento do meu lado. "Acho que meu lugar é aqui". Não sei o que ele esperava que eu respondesse, mas eu disse "Deve ser". "29A o seu, não?", ele perguntou inquisidor. "Sim, 29A o meu e o seu deve ser 29B, certo?" "Sim, eu sento do seu lado, então". "Pois é", eu respondi. Ia responder o que? "Seja bem vindo ao seu assento?". Toda aquela conversa já não fazia nenhum sentido pra começo de conversa. Ele sentou, tirou um livro da bolsa e me indagou sobre a janela fechada. "Você não abre a janela?". Eu achei um pouco de intromissão demais, mas respondi que não, que detesto decolagens. Aí ele me perguntou se eu tinha muito medo de avião. Eu respondi que não exatamente, mas que não gosto da sensação. "E medo de morrer, você tem?". Queria olhar pra ele e dizer que eu tenho medo de muitas coisas e a morte é a mais simples delas. É muito pior o medo de estar viva, o medo de estar naquele avião sem nenhuma idéia do que eu estava indo fazer naquela cidade onde ninguém me esperava no aeroporto, é muito pior o medo da incerteza, das coisas que acabam, é muito muito pior a vida do que a morte, mas daí me ative a responder um simples "Da morte em si não tenho medo, mas acho que a angústia até morrer deve ser um negócio ruim. Principalmente se for em queda de avião". Ele concordou comigo. "Nunca tinha pensado por esse viés, mas faz sentido. Você desce ou faz conexão?". O cara queria saber nos cinco primeiros minutos de diálogo se eu desço ou faço conexão. Reprimi o impulso de dizer "e o que isso te interessa?" e respondi que sim, desço. "Você faz conexão?". "Faço". E aí soubemos que esse era mais um dos amores que nem chegariam a descer em terra firme. E gente que vai embora eu tenho bastante lá embaixo. O avião começou a taxear e ele olhava atentamente pra mim a procura de qualquer traço de medo que fosse. Eu permanecia resoluta atrás dos meus óculos escuros. Vai que ele também pergunta se eu não quero que ele segure minha mão? Não gosto dessas vulnerabilidades. Acho segurar a mão uma espécie de contrato entre duas pessoas que não deve ser estabelecido se você de fato não tiver interesse em continuar protegendo a outra pessoa das tragédias da vida. E as tragédias da vida são um pouco piores do que a decolagem e aterrissagem de um simples avião da frota de aviões mais nova  e moderna do Brasil (segundo dizia a aeromoça). A aeromoça explicava que existem quatro saídas de emergência, que os bancos flutuam em caso de queda ao mar e que, em caso de despressurização máscaras de ar cairão automaticamente sobre as suas cabeças. Todo tipo de coisa que não adianta nada se o avião resolver cair mesmo. Nunca ouvi história de gente que se salvou com o assento flutuante. Sempre penso essas bobagens enquanto as aeromoças fazem demonstração mas finjo estar interessada nas revista da companhia. As revistas da companhia agora atendem às necessidades da classe C emergente e tem entrevistas com personalidades tipo o Zeca pagodinho. O Zeca pagodinho é um desses caras que não parece ter muito medo das angústias da vida não. Sei lá né, a gente nunca sabe o que se passa dentro desse terreno misterioso que é o coração das pessoas. 

O avião começou a subir e eu fechei os olhos enquanto mascava meu chiclete. Uma vez a minha tia disse que se a gente mascar um chiclete melhora a sensação da decolagem. Não sei se melhora mesmo, ou se é uma espécie de superstição, mas eu sempre masco. Pelo menos distraí. O moço do meu lado botou a mão no meu ombro e disse "não foi decolando que a gente morreu". Sorri. "Acho que não", eu respondi. Ele sorriu de volta e voltou a ler o livro. Dez minutos depois a aeromoça nos avisa que os aparelhos eletrônicos podem ser ligados e eu pego meu iPod. Abro a janela e fico observando as nuvens. Quando eu era criança eu achava que quando a gente andava de avião era possível tirar a mão pra fora da janela e pegar na nuvem. A nuvem devia ser alguma coisa tipo algodão, ou um desses gases de experiência de programa infantil que passam pela nossa mão sem ficar. Aos dez anos eu descobri que a janela do avião não abre e que era impossível pegar na nuvem. Essa foi só uma das impossibilidades do mundo que eu descobri. A vida é cheia de impossibilidades. Gosto de viajar porque me sinto longe de qualquer lugar. Ao mesmo tempo que me angustia eu gosto de ser o ser que flutua no espaço. O ser com o celular no modo avião impossibilitado de receber qualquer mensagem, ligação, ou acessar o Facebook a procura de algum indício de desamor. Acho que morte é pior que angústia. Um avião caindo traz em si a certeza da morte. Viver não, viver traz consigo esse monte de portas e caminhos possíveis que a gente nunca sabe se são as certas ou as erradas. A vida traz desamor e desamor é pior que decolagem de avião. Certamente é. Eu olhava as nuvens e pensava que queria estar longe. Longe do lugar onde eu ia pousar e longe do lugar onde sai. Queria ser alguém sem nome e nem identidade a descer num lugar estranho e começar tudo de novo. Começar a vida longe da incerteza do amor que não sabe se é ou não é. Começar a vida com um celular onde ninguém pode mandar mensagem porque ninguém ainda sabe o número. Começar a vida sem nome e sem endereço fixo. Começar a vida com uma mala com o pé quebrado, algumas roupas, dois livros e algum dinheiro no bolso. Começar a vida num lugar sem trauma e nem angústia, sem amor não correspondido, sem coisa em aberto, sem isso de chorar de noite toda noite sem saber o que vai ser o amanhã porque num lugar onde nada se sabe o amanhã só pode ser o que não se tem idéia ainda e, nesse caso, a angústia de existir seria menor. Começar de novo "para evitar problemas posteriores". Eu olhava o céu e tudo aquilo parecia tão imenso pra minha vida sem graça. Seria o mundo essa imensa gama de possibilidades que todos falam e eu não acredito? Seria possível que o moço ao ler esse John Fante do meu lado fosse meu grande amor (mesmo eu odiando John Fante?). Não. Essa era a resposta certeira. A vida é de viés muito mais que é de sorte. A vida é um jogo imobiliário onde a gente só tira revés e paga o aluguel pra pessoas que deram certo. As pessoas que deram certo são poucas. As outras vivem tipo eu, indo de um lado pro outro e segurando o choro em aviões que vão rumo a coisas da onde não se espera tanta coisa assim. Eu devia parar de esperar coisas da vida. Gente me esperando no aeroporto, ligações antes de eu embarcar, preocupações com as minhas angústias, um simples "tá tudo bem com você" que vem quando as pessoas entram em dúvida se está tudo bem mesmo. Queria não esperar nada. Não esperar nada assim como eu não espero nada do moço do meu lado que já está na metade do livro do john fanfe. Colocar na cabeça que todas as pessoas da sua vida estão fazendo uma conexão enquanto você desce antes. Sabe-se lá o que acontece com as pessoas depois que elas te deixam. Sabe-se lá o que a vida reserva. Eu suspirei.

Acho que suspirei meio alto porque quando dei por mim o moço do meu lado tinha largado o John Fante e me olhava com aqueles olhos inquisidores de novo. Eu percebia, mas não queria olhar pra ele. Só que aí ele me cutucou. "Moça, você parece um pouco angustiada, é o medo do avião?". Eu não ia responder nada. Eu prometi pra mim mesma que ia parar com isso de desabafar com desconhecidos no avião porque já tinham sido vários, inclusive uma vez que eu perguntei pro cara do meu lado se ele se sentia triste com certa freqüência e tudo que ele fez foi pegar o iPad e começar a jogar Fruit Ninja, então eu tive um pouco de certeza que ele era triste a maior parte do tempo. Só que eu respondi. "O problema é a vida que acontece depois que o avião desce". Ele me sorriu. "Esse problema não tem jeito, moça". Sorri de volta "Acho que não", respondi. Aí voltei a olhar a janela do avião e de repente me senti inquieta. A mesma inquietude que veio no dia que eu perguntei pro cara se ele se sentia triste. Ele não parecia estar lá muito interessado no John Fante e, além do mais, faltavam só mas vinte minutos de viagem. Nada de mal podia nos acontecer. Travei o diálogo:

- Cara, você acha que é perfeitamente normal a gente se sentir angustiado o tempo todo e nunca saber que raios vai ser da vida a partir do momento em que a gente bota o pé pra fora do avião? Eu quero dizer. A vida lá embaixo ela acontece de um jeito tão louco e eu não sei o que eu quero, você acha que é normal a gente não saber o que quer e sentir medo e um medo muito maior do que o do avião cair enquanto a gente decola?

Ele me olhava estaticamente e largou o livro do John Fante no chão. Quase achei que ele ia sacar um iPad e abrir um jogo qualquer, mas ele parecia ser mesmo uma dessas pessoas que vivem em seu próprio mundo e esse tipo de pessoa sempre tem opinião sobre as subjetividades da vida, aí ele me respondeu. 

- Eu acho que você sente medo da única coisa segura que é justamente estar nesse avião vendo tudo lá embaixo como uma maquete dessas que a gente fazia na escola, sem participação nenhuma. Medo mesmo é saber que você faz parte de tudo que tem lá embaixo, que tem uma vida, um emprego, um namorado, e toda uma vida pra construir. Aqui é nada, aqui é um mundo paralelo onde os celulares não funcionam e o pior que pode acontecer com a gente é morrer, mas morrer é um clic. Viver é uma vida toda. O medo da vida é muito mais racional do que o medo do avião, no fim das contas. 

Agora erra eu quem olhava pra ele estaticamente. Se eu tivesse um livro, eu também tacaria no chão. 

- Você sabe o que quer da vida? Quero dizer, existe algo do qual você tem certeza?

Ele me sorriu.

- Todas as pessoas que tem certezas sobre a vida são idiotas completas. Exceto quando a gente ama. Quando a gente ama é bom guardar em si uma certa dose de certeza. Amar antevendo o fracasso também é coisa de idiotas completos. No mais eu acho que é normal que você seja cheia de dúvidas, e eu e todas aquelas pessoas que a gente não enxerga daqui mas que tem vidas, universos, casas, carros e sofás pra comprar em doze vezes pra poder assistir tv de fim de semana com a esposa e os filhos. Os caras das certezas são menos angustiados, mas viver sem angústia é viver sem medo e viver sem medo é nocivo. Se a gente tem medo é porque quer fazer alguma coisa. A gente só sente medo do desconhecido. Se você se angustia é porque ainda quer alguma coisa que não descobriu. A vida acaba quando a gente não quer mais nada que ainda não descobriu. Essas pessoas cheias de certeza estão fodidas, sabe? meio mortas. Os babacas que acham que o amor está fadado ao fracasso também. Achar que nada dura é ter certeza que um dia se para de descobrir o desconhecido na outra pessoa. A gente é cheio de desconhecidos a descobrir. O amor dura porque é feito de mistério. A vida também, sabe? E se não der medo é porque acabou o mistério. E se acabar o mistério acabou tudo. É perfeitamente normal a gente se sentir angustiado, se é isso que você queria saber.

Eu sorri. Ele pegou o livro do chão e voltou a ler. Eu voltei a ouvir música pensando que a vida era mais ou menos aquela nuvem que eu achava que podia pegar mas não podia. Não dá pra pegar a vida com a mão. Ela é um pouco aquele gás das experiências dos programas infantis. Ela passa pela nossa mão e se dissipa. A aeromoça avisa para apertarmos os cintos. O avião vai pousar. A cidade vai ficando cada vez mais próxima. Agora já é possível enxergar o emaranhado de carros, casas e prédios que constitui a vida das pessoas que não sei quem são. O aviso diz: "senhores passageiros, preparar para aterrissagem". Estou preparada. O moço do meu lado me olha e diz "esse é um dos medos mais simples". Eu sorrio e concordo. Pousamos no concreto quente do aeroporto. Pego minha mochila, me despeço do moço que ainda lê John Fante. "A vida nem sempre tem conexões, né?". Ele me sorri. "Às vezes a gente se encontra numa escala. E eu espero que você ainda sinta medo". Sorrio de volta. Ando pelo corredor do avião, agradeço a aeromoça simpática que me deseja boas vindas. Entro no ônibus que me leva até o saguão do aeroporto. Não ligo o celular. Não existem mensagens ou ligações perdidas. Devo ter perdido todos os meus amores em alguma escala ou em alguma conexão em que não fui informada. Queria que alguém tivesse vindo me buscar, mas ninguém veio. Provavelmente me diriám que "tinham que cuidar da própria vida". Só que eu não tenho mais o desprendimento de pegar a minha mochila e dizer que se eu fizesse mesmo parte da vida deles, cuidar da vida contemplaria cuidar de mim também. Não espero que ninguém cuide de mim. Espero, mas não admito. Prefiro não pensar. Espero minha mala chegar na esteira e tenho dificuldade de carregar tudo. Saio pra fora da sala de desembarque e vejo reencontros. Filhos felizes abraçam as mães. Namorados apaixonados buscam as namoradas. Casais casados há anos não se olham direito e não seguram mais as mãos. Casais que se conheceram pela internet levam no olhar a surpresa e o encantamento de se ver pela primeira vez. Ninguém me espera. Penso em mandar uma mensagem avisando que cheguei, mas desisto. Chego no limítrofe e me convenço que o que quer ser nosso acaba nos procurando. Um dia ele, ou qualquer outro, apareceria de surpresa em uma dessas minhas idas e vindas e aí quem sabe estivéssemos os dois dispostos a ir descobrindo os desconhecidos em nós, como disse o moço que lia John Fante no avião. Sei que o caminho pra pegar o ônibus pro centro é o mesmo de sempre. Sinto um certo enfado de sempre sair das salas de desembarque segurando as malas sozinhas. Sinto um certo enfado de passar a vida tomando conta das minhas próprias bagagens. Minha vida cabe numa mala de pés quebrados que eu sempre carrego sozinha "para evitar problemas posteriores". Eu também estou cuidando da minha própria vida, como qualquer ser-humano contemporâneo adulto faria. Mas eu cuidaria da vida de outro também. Às vezes eu queria ser a pessoa esperada ansiosamente do lado de fora da sala de embarque. Não sou. Fico querendo perguntar mil coisas pra pessoas a minha volta pra ver se elas tem uma resposta, mas sei que elas também não tem. A gente não pode pegar a vida com a mão. Não quero pegar o ônibus. Eu não sei mais onde é minha casa. Não quero chegar na cidade e encarar o silêncio do meu telefone celular que não toca nem vibra. Os silêncios. São tão angustiantes os silêncios, esses silêncios todos. Os silêncios que sempre são quebrados por mim e eu nem sou do tipo que gosta de quebrar silêncios. O nome disso é angústia. Canso de estar sozinha segurando desajeitada essa mala, essa mochila e essa vida indo encontrar alguém que eu nem sei se queria ser encontrado. Desisto. Fico parada no meio do saguão do aeroporto. Subo as escadas, vejo os aviões que sobem. Eu não quero mais correr pra encontrar ninguém. Não quero mais correr o risco de ser abandonada a minha própria sorte segurando uma mala que carrega toda a minha vida, sem saber pra onde ir. Eu quero ser aquela que parte. 

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