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27.5.13

eu também sei dançar se não for com você

Foi ele que me fez dançar de novo. Coisa besta dessas, pensei enquanto descia do carro, numas das mil e uma vezes em que ele me deixou em casa. Às vezes as pessoas ficam na vida da gente e a gente não percebe. Custei a perceber que foi ele que me ajudou a encarar aqueles dias horríveis de cinza e medo, enquanto me levava pra passear nos lugares conhecidos da minha cidade velha. Nem sei se ele dançava, antes de mim. Imagino que não, acho que lembro de uma vez em que ele me disse que fazia anos que estava aqui, mas nunca tinha ido em lugar de dançar. Fomos em lugar de dançar, e você dançava esquisito e daí eu podia dançar esquisito também. Não lembro, antes dele, quando é que tinha dançado. Talvez com um outro, um pouco antes dele, é verdade, que me fez dançar na sala. A gente só se beijava quando dançava, coisa esquisita. Mas depois desse veio um outro, que não me fez dançar e não me fez feliz, e aí eu parei de dançar. Parei de gostar de mim, também. E aí ele apareceu e aos poucos foi me fazendo dançar de novo. Foi ele que me fez dançar de novo. 

A vida é cruel. Sentada no meu quarto, depois de uma longa viagem, percebo o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Nas gavetas da escrivaninha, o manual da câmera que meu tio me deu logo que eu comecei a tirar fotos. A câmera empoeirada, num canto, com o filme da minha última viagem pra Curitiba. Nunca mais fotografei nada, eu disse assim, baixinho pra mim, como quem conta um segredo triste. Perto das câmeras, meus trinta e poucos livros não lidos. Não lembro quando, exatamente, eu parei de tirar fotos ou de ler livros. Só sei que aconteceu. Aconteceu eu, ali, perdida na vida e de frente pro meu computador querendo achar um sentido qualquer pra existência e falhando miseravelmente. Quietinha embaixo das cobertas, no frio, um ano atrás, eu não tinha vontade de viver. Só sabia escrever. E sei que escrevia porque esse era o meu único jeito de dizer que eu ainda existia. Existência besta, eu sei; mas ainda existência. Depois que tudo aquilo aconteceu eu me perdi de mim. Eu não sabia dançar, eu não sabia ler, e eu nunca mais tirei nenhuma foto. Numa pasta velha no meu computador, encontro fotografias de shows que eu fui. O mundo visto através das lentes ruins da minha câmera ruim. A voz do meu tio me perguntando a quantas anda a fotografia e eu respondendo baixinho, como quem sentencia uma morte: nunca mais fotografei. Nunca mais. 

Foi esse ano que voltei a dançar e que, timidamente, voltei a ler alguns livros. Concentração me falta, e vez ou outra eu prefiro mesmo ficar na internet perdendo tempo com a vida das pessoas que não são eu. A vida dos outros não é melhor que a minha, mas tem como grande qualidade: não ser a minha. Estive bem. Estive tão bem que parei de falar de mim. Não precisava, não tinha o quê e o mundo parecia ter, agora, algumas nuanças. Eu tinha voltado a dançar com ele. Eu, ainda que devagar, ia riscando a lista de livros a ler. Ia vivendo. Não era ainda o melhor jeito de viver, mas era um jeito. Um jeito meu. No meio disso tudo até peguei a câmera de novo e tentei tirar umas fotos, acho que uma orquestra, não lembro bem. O filme deve estar velho e é bem capaz que ao revelar amarele ou queime tudo. Não importa. É um pequeno registro de quando eu voltei a ver. Voltar a ver é importante. Voltar a ser, parece imprescindível.

Uns dois meses atrás - talvez menos, não me lembro bem -  entretanto, as coisas voltaram feito filme de terror. A mesma história. De novo, aquilo, a mesma conversa. Que saco sou eu que não sei viver a vida que nem gente, sempre nos meus tempos estranhos, na minha falta de planejamento e urgência, nos meus livros não terminados. Que saco sou eu, sempre andando em círculos, sendo pouco atraente, com o cabelo estranho, seco, toda fora de compasso e sempre conferindo o sentido certo do metrô. Merda de cidade enorme em que a gente chora no meio da rua e ninguém percebe. De novo eu chorando na rua e me perguntando porque é que eu me maltratava assim? Desci dois pontos antes do que devia de medo de não chegar no lugar certo. Minha ansiedade ainda ia me matar. Um dia ainda mata, essa merda que não sei controlar ainda. Mata também essa urgência besta de querer ser feliz e se atrapalhar, sempre atravancada pela vontade dos outros. Tudo de novo. O quarto escuro, o sono que não passava, uns tremeliques que vinham do nada. Eu, encolhida entre cobertores paraíba, numa cidade que nem frio fazia, chorando de vontade não viver nunca mais. E lá na escrivaninha se formavam de novo pilhas de livros que não lia mais e uma câmera que empoeirava. Eu já não queria que ninguém me tirasse pra dançar. Tudo chato, não adianta, eu sou um desastre. Queria dizer pra todo mundo ir embora de uma vez. Eu não ia dar certo. Não tinha como. Não tinha como alguém descompassada como eu dar certo. Era necessário que todos soubessem logo disso. Eu ia gritar pro mundo: eu sou um fracasso. Era isso, fracasso. Nunca terminarei de ler um livro, que dirá escrever meu próprio, e sou um fracasso.

Os dias iam passando feito assombração. Era tudo lento, tudo triste, tudo cinza. Cinza feito as olheiras imensas que iam se formando embaixo dos meus olhos que agora já tinham voltado a ser tristes. Tudo vai indo porque tem que ir. Eu não queria dançar. Não queria fotografar. Não queria saber o fim dos livros que comecei. Não queria nunca mais aprender alemão. Nem francês. Nem nada. As pontinhas dos meus dedos formigavam e no coração tinha uma espécie de peso que é difícil de explicar. Eu queria que tudo isso desse um conto bonito, mas eu não conseguia escrever. A duras penas ia completando as minhas atividades, até que as coisas foram ficando mais leves. No começo da semana ele tinha me levado pra dançar. Meus coturnos pesados atrapalhavam tudo, mas ele tinha esse jeito torto de me fazer sorrir no meio da tragédia. De vez em quando a gente tinha que perder a hora dos compromissos do outro dia. Fiz tudo que devia. Ia renascendo no meu tempo, mas ia. Sou meio desorientada, mas ia dar conta. Estava dando. Tudo parecia leve. Eu ia suportar. Até que vem tudo de novo. O mesmo inferno. As mesmas brigas. Você é louca você é louca você é louca sendo repetido como um mantra. Eu quase acreditei. Eu era louca mesmo, não era? Por que é que eu me maltratava assim? Não sabia responder. Olhava pra sacada tentando entender tudo aquilo que ele tinha me dito e o mundo rodava esquisito. O mundo não girava. Era isso. O mundo tinha empacado de novo e eu tinha ficado. Besta. Sou cheia de bestagens. Eu era um fracasso. Era isso, eu ia fracassar de novo. Perdida em pensamentos e naquelas mesmas desilusões no dia de começar de vez um projeto. Adeus, mestrado. Adeus. Eu te deixei por conta de uma desilusão. Chorava feio, daqueles choros de criança sentida. Até soluçava. Não era possível. Mais uma vez. A gente cansa de se reerguer. Eu já tinha decidido: nunca terminarei nada e sou um fracasso. 

Ia ser mais uma nas coisas que eu deixei pra trás. Sonhos ali empilhados na estante junto com uma máquina com filme pela metade e uma porção de livros que pouco me interessa o final. Tudo inacabado, feito eu. A única coisa que eu conseguia sentir era dor. Punhal enferrujado no coração devia doer uma dor feito aquela. Desilusão. Mais uma pra botar na estante. De novo. O inferno. Tudo que lembro daquele dia foi ter me enfiado numa cama qualquer com um desses caras de sempre e quase ter chorado baixinho no começo de tudo. Mas depois gozei. Acho, nem lembro. Só lembro dele me dizendo que ia ficar tudo bem enquanto me dava suco pronto de maracujá. Desses de pozinho. Era tudo que eu precisava, no fim das contas. Aí decidi que não dava pra negligenciar a vida por mais um ano. Fui lá e fiz. Chorando, mas terminei tudo que tinha que fazer. De novo estava eu naquela cidade chata carregando documentos e subindo ladeiras. Conferindo no mapa o sentido do metrô. Dóia um pouco ainda. Lá dói um pouco mais. Inferno de cidade empacada. Mas eu ia sobreviver. Ia colocar a desilusão do lado das coisas que eu não uso mais, ali na estante. Estante das desilusões. Era problema de quem esperava demais da vida. Certamente. Depois tudo foi indo. Às vezes doía, mas doer acaba que dói sempre. Não era a primeira vez. Era isso: não era a primeira vez. 

Deve fazer um mês, mais ou menos - talvez menos, não me lembro bem. Sei que faz uma semana que voltei de viagem e percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Meus livros, minha paixão pela fotografia, minha mania de dançar, meu gosto pelo futebol e minha vida. Lá estava eu deixando minha vida pra trás mais uma vez. Que perigo. Aí resolvi que não dava. Voltei com os livros, prometi deixar tudo em ordem, acordar cedo. Não dá pra ficar fazendo doer pra sempre. Por que é que eu me maltratava assim? Seja o que for, se um dia valeu, hoje não vale mais a pena. Daí dei de andar na chuva, dar trela pra desconhecido, sair pra dançar sempre que der e ler antes de dormir. Quando tiver tempo volto a fotografar também. Fiquei sabendo de gente que comenta futebol. Voltei a ver futebol. Ouvi que é muito legal que eu saiba sobre diversos assuntos. Começo a achar engraçado o espanto que, de quando em vez, meu cabelo causa. Sei que sou perdida e louca. Aceitei. Gosto de mim assim, mesmo que esse "ser assim" me cause formigamentos nas pontas dos dedos. Dia desses andei na chuva, descabelada, ouvindo música. Sozinha. Sou, primordialmente, uma pessoa sozinha. Sorri baixinho, como quem descobre um grande segredo. Quase chorei de levinho quando me li comentando futebol de novo. Senti leve orgulho de conseguir ler meio livro em dois dias. Volto a ser eu. Dia atrás ele me fez dançar de novo. Sou feliz quando danço com ele, coisa besta dessas pensei descendo do carro e aí quase pensei que talvez, quem sabe, ele fosse a escolha certa a se fazer e que a escolha às vezes está mais perto do que imaginamos, o grande clichê. Mas ele não é a única pessoa que dança no mundo, e talvez essa seja a grande chave de tudo. Tem muita gente pra dançar comigo no mundo. E pensando assim, sei que volto a ser livre, como sempre fui. Percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. No meio delas, estava eu. E aí eu me fiz dançar de novo. 

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