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19.5.13

janelas da alma


tinha show do raça negra e eu não fui. vontade senti, mas o cansaço foi maior. cansaço físico não digo, sempre acho que cansaço físico acaba curando uma hora ou outra - nada que cinco ou seis horas de sono não resolvam, mas sim o cansaço da alma. estive de alma cansada; triste, melancólica, com medo de ter crise de ansiedade no meio do metrô. portuguesa-tietê não é coisa pra gente com nervos fracos, são paulo menos ainda, são paulo com virada cultural menos ainda. imagina só aquela gente toda indo de um lado pro outro, meio louca, meio histérica. eu tendo que tomar cuidado com a bolsa porque podem vir mendigos, ladrões, gente, gente, gente, gente de todo lado e de todo jeito. eu nem gosto de gente. não gosto de gente tanto assim, não desse tanto. também não queria pegar um ônibus, não queria conversar, não queria nada. absolutamente nada. tudo pesava demais, meu coração tem sessenta quilos desde que a história se repetiu. as histórias se repetem, assim, e eu volto a escrever em primeira pessoa. meus textos em primeira pessoa não são bons. minhas histórias não são interessantes o suficientes. o sentimento me retarda, o sentimento retarda a todos inclusive a mim. queria ficar o mais longe possível de mim e da história. queria ficar mais longe de são paulo. queria ficar longe. longe. 

longe fiquei. angústia é um sentimento estranho de explicar. dá arrepio de choque. um dia pesquisei na internet se ansiedade dava choque. dá sim. dá choque, dá ânsia, dá tremedeira a formigamento nas extremidades. tristeza também é coisa física, concluo. viver é coisa complicada demais, concordamos eu e o guimarães rosa. amar então, deus que nos livre e guarde. e deve guardar mesmo, porque o amor é o diabo. se o diabo fosse um sentimento, seria a paixão. longe estando, resolvi que devo ficar perto das coisas perenes. paixão é o diabo encarnado, amor não. amor é simples. amor de pai e de mãe, dizem, é a única coisa que não perece. deve ser a única coisa que dura muito no mundo, além dessas árvores que vivem milhares e milhares de anos. mas as árvores morrem, acho que o amor fraternal deve permanecer no espaço, quem sabe. no cinema perto do hotel onde estava, meu pai disse, ia passar um filme de dança. sabe-se lá que filme de dança era esse, mas minha mãe não quis ir ver e resolvi ir com ele. ir com ele porque não me lembrava qual a última vez que tínhamos saído juntos pra ver alguma coisa. há tempos meu pai não vê. não enxerga. há tempos o mundo do meu pai é feito de vultos. o mundo do meu pai era feito de memória e sensação. os olhos dos meu pai eram os olhos dos outros, e eu acho que deve ser triste ver com os olhos dos outros. os olhos dos outros não vêem o que a gente quer ver. coisa estranha é o olhar dos outros.

o prédio devia ter uns duzentos anos. engraçado falar que uma coisa tem duzentos anos, porque é tanto tempo que parece que ela existiu desde sempre. casarão de gente rica que hoje é museu. o museu da imagem e do som da cidade de campinas é num antigo casarão. casarão onde devem ter sido açoitados escravos propriedade de velhos senhores de café. senhores de café do oeste paulista. desgraça acontece em lugar bonito. a arte toma conta desses casarões. a arte ou os bancos. mais comumente os bancos, mas nesse, em especial, ia ter filme de dança. o filme de dança era "pina". wim wenders é um dos meus cineastas favoritos, mas ele só fez uns três ou quatro filmes bons, segundo a crítica. dizem que wim wenders começou com grandes sucessos e depois perdeu a mão. ou isso, ou não entenderam ele. não sei dizer, também só vi os filmes aclamados. os outros devem ser tão ruins p'ros outros que a gente nem acha por aí. talvez eu entendesse os filmes ruins do wim wenders porque eu entendo de fracasso, e entendo também de não ser entendida. entendo muito sobre não ser vista direito pelo olhar dos outros. coisa estranhíssima é o olhar dos outros. 

o tal filme de dança conta a história de pina, uma coreógrafa de dança contemporânea que morreu enquanto faziam o filme. ao que consta, ninguém entendeu muito bem a pina. não sabiam se o que ela fazia era dança ou teatro, e ela foi muitas vezes criticada por mostrar coisas muito agressivas. eu não conhecia a pina antes do filme. meu pai também não. fiquei apreensiva ao perceber que o filme tinha falas e que, talvez, meu pai pouco entendesse sobre a pina ou sobre a dança. felizmente, o wim wenders fez um filme com poucas falas e poucas legendas. pra entender pina, era necessário entender a dança. a dança meu pai enxergava, e isso me deixava feliz. feliz porque eu conseguia ver através dos olhos do meu pai que ele conseguia ver de novo. enxergar. há tempos meu pai não enxergava nada do que a gente via. via pelos olhos da gente, via com olhos que não eram os olhos normais. via som. via vulto. via vento. via barulho e via calor e frio. via cheiro. mas ver, ver mesmo, há tempos que não via. daí ele viu a pina, e a dança meio louca da pina. e tudo que o wim wenders queria mostrar sobre a pina. 

o filme tem poucas falas, quase nada de falas. quando tem fala, são os dançarinos da pina tentando explicar a pina. mas a pina não é gente que se explica. o wim wenders, que não emplaca um sucesso a pelo menos vinte anos, sabia que não precisava explicar a pina. precisava mostrar a dança da pina. ninguém entendia direito o que a pina queria dizer com as danças dela. era alguma coisa de angústia, e alguma coisa de felicidade e alguma coisa de medo. a pina dizia p'ros dançarinos, que pra dançar alguma coisa é necessário sentir. todo mundo da companhia de dança da pina achava ela genial. é sempre genial, a gente sabe, alguém que nos faz sentir e transentir alguma coisa. é por transver a dança que o filme da pina não precisa de fala. vendo a dança a gente entende muito sobre ela, e entendendo muito sobre ela entende muito sobre a dança e sobre sentimentos, e entendendo muito sobre sentimentos entende o mundo. e pra entender o mundo não precisa mesmo de legenda. meu pai enxergava o filme. não lembro qual foi a última vez que vimos um filme que ele enxergava com os próprios olhos juntos. da última vez, assistimos santiago. santiago é um documentário que o joão moreira salles fez sobre o seu mordomo, santiago. santiago se expressava através de histórias. era falando que se sabia de santiago. meu pai viu o filme com os ouvidos. não viu uma ruga sequer de santiago, ou as vezes que ele olhava tímido pra câmera. mas entendeu santiago. pra entender o mundo não precisa enxergar com esses olhos físicos. é preciso ver com a alma. 

é com a alma, primordialmente, que se vê pina. ver a dança pela dança não diz nada. se formos ver pina com olhares técnicos, pouco entenderemos. também pouco entenderemos sobre o porquê do wim wenders ter feito o filme daquele jeito, cheio de gente dançando no meio da rua. a dança de pina nada diz se for vista com os olhos de todos. pra enxergar pina, é necessário transver as coisas. pra enxergar pina é preciso de mais. meu pai enxergou pina. com certeza não viu a dança com os mesmos olhos que eu ou que as outras pessoas da sala viram. o wim wenders mesmo uma vez participou de um documentário chamado "janelas da alma" em que a grande coisa era entender como as diferentes pessoas com diferentes problemas de visão enxergam. a conclusão é simples: ninguém vê igual. é impossível prever como o outro vê, mas não é igual ao jeito que eu vejo. meu pai não viu pina com meus olhos, mas enxergou. para enxergar, percebo, não é necessário uma visão perfeita. o jeito que meu pai viu o filme era o mais bonito de todos pra mim, porque ele estava vendo de novo com os olhos dele. e seja lá o que ele tenha visto com os olhos dele, é mais bonito do que qualquer um vendo. porque são os olhos dele vendo de novo. são os olhos dele vendo por si. eu não preciso mais ver por ele. 

pina é um lindo filme porque ninguém entendia muito bem a pina, mas o wim wenders entendeu. ninguém entendeu muito bem o wim wenders por vinte anos, mas pina é um de seus grandes sucessos. talvez porque ele se encontrou com alguém que, como ele, via coisas a mais. via com a alma. e quando se vê com a alma se enxerga o outro. enxerguei a pina com meus olhos e não sei dizer se entendi pina, mas sei que me entendi, e entendi sobre os sentimentos. e vi. alguma coisa eu vi. vi meu pai vendo de novo, o maior presente do meu ano. maior que qualquer show do raça negra. me vi angustiada e triste. me vi. percebi que eu, assim como a pina ou o wim wenders às vezes enxergo tudo tão com os meus olhos que não sou entendida. coisa terrível é o olhar dos outros. o olhar dele não me entendia. era por isso que eu queria estar longe de tudo. longe daqueles metrôs de gente gente gente gente longe dele o mais longe possível. e longe dele estive perto de mim. o mais perto de mim possível. pina dizia que é preciso dançar. dançar, creio eu, é um jeito de enxergar o mundo. parafraseio pina e digo: é preciso enxergar. é estritamente necessário enxergar. me enxerguei, enxerguei a pina, o wim wenders e o meu pai. concluo: pra enxergar não são necessários os olhos, é necessário sentir. pra sentir é necessário querer. pra enxergar é, então, necessário querer sentir. só enxerga quem quer sentir. só sente quem quer enxergar. 

talvez seja também esse texto uma dança não compreendida de pina. um filme sem bilheteria de wim wenders. tipo de coisa muito minha pra ser vista com os olhos dos outros. todos nós às vezes somos nós demais pra ser vistos com os olhos dos outros. eu, meu pai, a pina, e o wim wenders. mas alguém sempre entende. alguém sempre enxerga. bilheteria de um homem só. alguém na platéia sempre sai chorando. olhares que se encontram.  

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