E aí você vai olhar pra mim e dizer. Tudo bem, aquilo era só chuva, era só água até o meio da sua perna e não tem nada a ver, pra que se preocupar com isso.
Eu vou te olhar com meus olhos baixos e a gente vai saber, que era sim, bem mais que água até o meio da perna e chuva. Era a personificação do ridículo que meu ser habita.
Não era só chuva e água molhando até o meio da canela. Era a representação exata do que vinha a ser eu.
Porque eu, meu bem, sou água até o meio da canela.
Era quarta feira, um marasmo de dia. Eu e meu livro, e começa a chover.
Chover. sim.
Meu ímpeto? me molhar até as tampas e cabelos, e roupa na água da chuva.
Minha reação? sentar na beira da varanda, arregaçar minhas calças até os joelhos e tomar chuva só até a canela. porque eu não queria me molhar inteira, porque eu nunca quero me molhar inteira. porque eu não jogo, eu não me entrego, eu não arrisco. eu até vou um pouco pra trás que é pra não molhar meu livro.
eu sou isso. uma menina que senta na beira da varanda e só aceita tomar chuva até o meio da canela. por precaução, pra não pegar gripe , não estragar o cabelo e não ouvir bronca da mãe. pode até ser mais libertador e edificante um banho de chuva por inteiro, mas eu vou estar sempre tomando chuva até o meio da canela. porque não tenho que trocar de roupa depois, ninguém vai ficar me olhando torto, eu não vou ter que arrumar meu cabelo e nem vou levar bronca. porque todo mundo diz que água até a canela pode. se molhar por inteiro numa quarta feira a tarde, no quintal não é prudente e o mundo gosta mesmo é de pessoas prudentes.
pois bem. eu sou prudente.
eu tomo chuva até a canela, e eu vivo pela metade.
vamos pensar bem, o que eu tenho?
uma faculdade medíocre, dias e dias em casa, um talento utilizado pra nada pra escrita e uma falta de vontade total de continuar nesse mundo. Eu nunca fiz nada que emanasse perigo, eu não penso em desistir da faculdade, porque afinal, já fiz dois anos. eu nunca falo pras pessoas o que eu realmente acho delas. eu sou imbecil e conformada. vivo no meio de outros mil imbecis conformados e caminho cantando e seguindo a canção. eu nunca sumi de casa, nunca fugi e nunca morri por amor. eu estou sempre levando água só até a canela pra não me molhar.
tá. que lindo, não fico gripada.
mas também não me liberto.
eu não me entrego por inteiro. eu não esbravejo. eu não retruco. eu não me exponho. eu não conto nada a ninguém. eu sou um mistério. eu rio baixo. eu falo pouco e eu não luto. eu sou conformada na minha varanda tomando água até a canela quando o que eu queria mesmo era tomar um belo dum banho de chuva e me lixar pro universo.
agora? agora eu vou esbravejar, dizer que cansei, que não vai ser mais assim.
mas não vai mudar nada. não sou proveito, sou pura fama. sempre fui, não vou mudar de uma hora pra outra. não é do nada que a gente começa a se molhar inteira e se mostrar pro mundo. mas sabe, tem dia que cansa mesmo.
mas não se iludam, não vou levantar e tomar chuva do nada.
primeiro molho minha perna inteira, depois eu pela metade e aí sim, começo com essa de tomar banho de chuva e ficar gripada.
não sei romper bruscamente com nada. nem quero.
me arrependo depois, eu sei. prudência de mais enche, mas de menos também dá dor de cabeça.
Não quero ser mais a menina com água até a canela.
Vou me entregar mais.
Mas começando aos poucos que banho de chuva que vira rotina perde a graça.
E coragem não se compra em tabletes.
Nem deveria.
Um pouco de medo faz bem pra pele.
Porque gripe sim.
Pneumonia, é burrice.
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