- dizem que ele morreu com dois tiros na cabeça, no dia do retorno de saturno. E ele odiava astrologia.
- Eu nunca penso nisso...
- Em tiros?
- Não, em saturno.
- Eu sempre fico pensando nisso.
- Em saturno?
- Não, em tiros.
- Por quê?
- Porque eu penso em tiros?
- Não, porque você nunca pensa em saturno.
- Eu penso, às vezes. Por causa dos anéis. Acho bonito. Sabe, aquele planeta amarelo-alaranjado e os anéis... Acho muito bonito. E você?
- O que eu acho dos anéis?
- Não. Por que você nunca pensa em saturno.
- Eu penso. Quando me perguntam qual é meu planeta predileto eu respondo saturno. Talvez porque eu nunca lembre de nenhum outro planeta pra falar. Gostava de Plutão, por causa do nome: plu-tão. Me parecia qualquer coisa engraçada que fazia rir. E eu sempre preciso de coisas que façam rir. Agora Plutão foi rebaixado, não pode mais responder isso. Mas pra pensar em saturno precisa de um estímulo. Não é espontâneo como pensar em tiros. Gosto de Vênus, mas Vênus sempre me parece mais uma estrela.
- Por quê?
- Porque Vênus me parece mais uma estrela?
- Não. Por que você pensa mais facilmente em tiros.
- Porque tiros me lembram morte e quando se está vivo fatalmente se lembra de morte. Todo começo pressupõe um fim.
- Como assim?
- Como todo começo pressupõe um fim?
- Não, como você interliga tiros e morte. Você acha interessante?
- Acho.
- A morte, ou os tiros?
- Os tiros que antecedem a morte.
- Só os tiros que antecedem a morte?
- Só. Se você vive depois de um tiro é algum tipo de milagre, de descontinuação. Me interesso mais pelas coisas que seguem uma certa lógica.
- Por que isso?
- Porque eu prefiro coisas que seguem uma certa lógica?
- Não. Por que você só se interessa por tiros que antecedem a morte.
- Porque é rápido e simples. Um projétil estranho adentra o seu corpo e estoura suas veias, explode seu frágil corpo e jorra sangue por todos os lados, sem parar. Não importa se você era uma pessoa forte ou qualquer coisa. A bala perfura seus órgãos e em alguns segundos é só sangue e uma dor insuportável, um grito e o alívio. É como dormir, só que pra sempre.
- As crianças costumam dormir depois de chorarem. Talvez elas queiram sentir o alívio.
- Os depressivos dormem para esquecer a dor de estar vivo.
- Dizem que a morte é o alívio para dor de viver.
- Você acredita nisso?
- Que a morte é o alívio pra dor de viver?
- Não, que viver dói.
- às vezes. É mais ou menos como pensar em saturno. Só penso nisso quando me perguntam. Não é como pensar em morte, ou em tiros.
- por que?
- Porque eu nunca penso se viver dói?
- Não. Por que você pensa em morte e tiros.
- Não é pelo mesmo motivo que você. Eu só penso em morte e tiros porque tenho medo. Medo que aconteça comigo. Medo que um dia eu esteja andando na rua e um projétil estranho adentre as minhas víceras e depois de uma perfuração rápida e muito sangue, uma dor insuportável, um grito e o alívio.
- Todo mundo que vive tem medo de morrer.
- Você também?
- Também. Mas tenho bastante medo de estar viva.
- Tenho mais medo de levar um tiro e morrer. Por mais que seja rápido e simples. Mas e você?
- Se eu tenho medo de levar um tiro?
- Não. Se você acha que a vida dói.
- Continuamente.
- E você pensa nisso?
- Não.
- E como você sente que dói?
- Eu não sinto. Eu sei. É como uma dor crônica. Depois que dói todos os dias você esquece da dor. Mas você sabe que está doendo. É como dores crônicas nas costas, ou um casamento falido. Você se acostuma a viver com isso. Mas sabe que dói.
- E você nunca sente?
- Quase ninguém sente. Porque você acha que as pessoas estão sempre correndo o tempo todo?
- Por causa da dor?
- Pra não sentir.
- Sempre?
- Sempre. Você sente a dor quando está só você e você mesmo. Sabe, aquela hora que você acorda no meio da noite, ou o breve caminho do ponto de ônibus até em casa, quando seus pensamentos roubam seus monstros mais escondidos e colocam pra fora. É aí que dói. Não tem como evitar.
- Você faz isso?
- Se ocupar?
- Não, ficar só você e você mesma.
- Só quando eu não posso evitar.
- E se acontecer?
- Eu penso no alívio.
- Os tiros?
- Não. Dormir.
[ To be continued...
Isso ainda vira uma história total, um livro, um filme, ou o que eu inventar e me permitirem. Só a prévia. ]
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