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11.3.10

a saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu.

É difícil te dizer essas coisas.
Mais difícil ainda porque tenho tentado repetidamente há alguns meses sem sucesso algum. Não que eu não saiba as palavras certas. Você tem que concordar comigo que de palavras eu sempre entendi. De amor nem tanto, mas sobre palavras, como colocá-las da maneira certa pra te atingir aqui ou ali eu sempre soube. Talvez saiba até hoje, mas já não tenho tanta certeza.

Existe algo, aqui dentro, que vem quebrado repetidamente. Todos os dias quebra mais um pouquinho. Não sei se você entende sobre coisas que quebram. Eu sempre fui a quebrada das coisas. Você sabe, bem por detrás do meu sorriso bonito sempre teve alguma coisa quebrada. Dor, ou qualquer coisa assim. Aquela coisa que você olhava ou ouvia e depois me dizia que não sabia como agir quando eu lhe dizia essas coisas. Eu sempre achei bonito. Bonito esse seu não-saber-mas-querer. Eram momentos assim que me faziam querer te guardar em caixinhas. Daquelas pequeninas, ali na estante. Sentimento. Dos bons.

Eu tenho repetido rotas. Rotas que repito todos os dias, repetidamente. Comigo, com outras dez pessoas, com uma só, só que outra. Partes do meu cotidiano assim, imagens daquelas tão corriqueiras que se nos pedirem os detalhes a gente nem lembra. Faz um tempo que em todas as minhas rotas lembro de você. E não importa quantas vezes eu tenha passado lá com outras pessoas e nem quantas vezes ou quanto tempo faz desde que o trajeto não é feito com os seus pés de tênis sujos do lado do meu, mas tudo grita: vo-cê. Em detalhes.

A esquina em que um dia deixei você ir e fiquei te esperando, sentada, vendo o sorriso bonito. O caminho que devo ter feito dez, vinte, sessenta e sete vezes desde a única vez que o fiz com você, mas lembro é de ti, em detalhes. Me lembro do dia que te esperei e te vi. Me lembro do único dia que me esperastes, nervoso. Me lembro dos teus pés do lado dos meus, silenciosos quase e eu gritando nervos, falando demais, como sempre-sempre. Me lembro de primeiras vezes, de únicas, de rotinas esquecidas aqui e ali. Me lembro de você. Do cheiro e do sorriso. Do jeito de rir, dos dentes errados, do desajeitamento, da altura exata e até das vezes que eu deveria ter prestado mais atenção eu me lembro.

Tenho me lembrado, que nem doença, de você.
Me lembrado como se lembra das pessoas que morreram. O não as ter nos faz lembrar delas em trajetos e rotas e rotinas. Faz lembrar do que um dia se teve e não se vai ter mais. Por fatalidade. Um dia você acorda e te contam que aquela pessoa nunca mais fará parte da sua vida. Nunca mais os telefonemas, as visitas, as tardes e as rotinas.
Nunca mais.
E é quando você começa a viver com lembranças. Me lembro do dia que. Daquele outro dia que. Da camiseta verde. Da camiseta azul marinho. Da bolsa. Da carteira. Lembranças. Lembranças que qualquer dia somem e só sobra a essência. O cheiro de morte, tudo que deveria ainda ser e não é mais.

O que eu quero dizer, sem eufemismos ou tragédia demais, é que você morreu pra mim. Não por dentro. Ninguém morre por dentro de ninguém. As pessoas que morrem continuam tão vivas ou mais vivas que as pessoas que respiram e andam perto da gente. Mas em algum lugar, você morreu. Um dia eu acordei e te vi, morto, sem nenhuma respiração ou aspiração na minha vida. Tenho contado os dias, e os meses. Tenho vestido meu luto. Tem doído. Eu tinha resolvido não aceitar. Eu tinha vestido meu luto na frente da porta e esperado você voltar. Todos os dias eu esperava você voltar. Todos os dias a saudade aumentava um pouco. Todos os dias a dor aumentava demais. Cada pedaço de terra, de rua, de comida ou de livro me lembrava você. Eu tenho um quarto todo mobiliado com coisas suas desde que você morreu. Eu tenho esperado como a mulher que perde o marido na guerra ou a mãe que espera o filho desaparecido. Eu tenho sentido as saudades mais doídas. Todos os dias.

Mas hoje eu olhei a ausência e pensei na falta de sentido que faz conservar os mortos. O falar em cada conversa, o esperar em cada jantar, o guardar os presentes e as lembranças. E é isso que eu queria te dizer, que eu espero que você morra dentro de mim, como já morreu fora. Delicadamente, causando pouco estrago, aos poucos. Eu não espero acordar amanhã e ver você morto dentro de mim. Eu sei que eu ainda vou me recolher no meu luto algumas vezes, sei que ainda vou chorar sua partida, e mais que tudo vou desejar que você estivesse comigo, vivo e falante, com todos os trejeitos que eu conheço tão bem.

Mas por hoje, eu decidi que eu quero que você morra, e é isso que eu queria te dizer. Faz tanto tempo que você se foi e eu aqui, cultivando essa saudade, esse vazio essa vontade de. Eu não posso mais, o te ter viva em mim é que me faz morrer.




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