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13.4.11

Heart shaped-box

"Quando o amor acaba todas as coisas as quais foram atribuídas significados viram coisas". Tinha lido essa frase em algum lugar, não sabe mais onde. Talvez em algum livro famoso, talvez numa dessas revistas de mulher - tem lido muitas dessas ultimamente, daquelas que ensinam truques de beleza e dicas para chegar ao orgasmo. Mas pensou na tal frase no momento em que olhou o guarda-roupas aberto e conseguiu lembrar, por um momento breve, a roupa que tinha escolhido pra usar no primeiro encontro com aquele que viria a ser o seu (grande?) amor. É engraçado como em cada época da vida de uma pessoa (do sexo feminino, em sua maioria) existe uma roupa que possui dentro de si a falsa capacidade de conquistar a pessoa amada. A daquela época era uma calça jeans skinny, muito apertada no corpo - mas que tinha ficado larga, emagrecera demais naqueles tempos difíceis -, uma blusa rosa por baixo de um casaco roxo, com botões de plástico, com cara de retro. Ainda tinha no guarda roupa todas aquelas peças. As lembranças já tinham se tornado um tanto rarefeitas. Mas olhando com atenção tinha uma bolsa, um doce, um livro. Algumas várias coisas que podiam fazer uma espécie de inventário daquele amor que um dia tinha sido, e não é mais.

Não sabia se de fato enxergava naqueles presentes apenas "coisas". Conseguia se lembrar do momento exato em que eles tinham sido dados. Tinha uma afeição especial por um sapo de pelúcia que tinha sido comprado de surpresa. Tinha afeições menores, mas não menos importantes, por todos os outros objetos. Os pegava na mão e conseguia lembrar que, naquele momento, tinha sido muito feliz. Às vezes a felicidade também vira coisa. Lembrança longe e que a gente tenta pegar com a mão, e não consegue. Milhares de sorrisos eternizados em um objeto que hoje é enfeite no quarto do lado de outros mil objetos diferentes. Os sorrisos embalsamados. Guardados dentro da bolsa, dentro da lata, embaixo dos cachecóis. Hoje, já não sorria tanto. Não com amores, pelo menos. Tinha uma certa felicidade em estar só. Não era comodismo, era outra coisa. A solidão é mais imensa que o amor, porque o amor se divide. A solidão é só sua. E é tão imensa que às vezes aprisiona. Ela se sentia aprisionada dentro da própria solidão. Os passos mudos, os pensamentos rápidos, as músicas. Tudo muito dela, solitário, íntimo, indivisível. Uma paz. A paz de não depender de ninguém. Não esperar ligações, mensagens, e-mails, congratulações. Não ter que esperar jantares, rosas, beijos inesperados as cinco da tarde. Não ter que preparar a comida preferida, desejar 'boa sorte', 'bom trabalho' nem dizer "te cuida, garoto, o mundo é mal". Fora do amor era menos ciumenta, menos posse, menos cuidado com o outro. Bem mais com ela. Pequenos objetos novos fazendo um inventário novo, o inventário da solidão. Roupas compradas em liquidações na rua, livros, filmes, tickets de passeios solitários no cinema, cartões das cafeterias onde ia dividir cappucinos com creme com ela mesma, e fazer um balanço geral do dia. A solidão não cabe dentro da gente.

Sentiu então uma certa inveja daquela pessoa que um dia mereceu presentes, surpresas, declarações, cartas. Um certo rancor de si mesma de ter transformado tanta coisa repleta de significado em pequenos bibelôs espelhados pela casa. Bibelôs empoeirados, esquecidos, etiquetados com datas mentais e que sempre diziam "você já pôde ser feliz". E tinha sido. Mas sempre procurou uma espécie de felicidade completa e nada, nada a preenchia. Nem o emprego (razoavelmente bem sucedido), nem os amigos (vários, sempre presentes), muito menos as novas conquistas (costumava ser apaixonante). Tinha uma preguiça imensa de dividir sua vida com outra pessoa, ensaiar novos ritos, dar significado à novas coisas. Ficava ali, então. Ela, sua solidão amiga, os livros, os discos, as falsas demonstrações de afeto que costumavam vir de tempos em tempos, conforme a necessidade de um novo amor que raramente saia do campo platônico. É que as pessoas costumam ser extremamente desinteressantes quando chegam à luz da realidade. Quase feias. Esse amor ideal não existe, amor acontece no dia-a-dia. Acontece nos passeios de mãos dadas no mercado, quando resolvem trocar o almoço por nuggets. Amor acontece nos domingos à tarde deitados na cama olhando o teto e conversando sobre a vida. Amor acontece quando a gente não está prestando muita atenção, não está fazendo nada de muito grandioso. Nenhuma declaração muito ensaiada, nenhum presente muito caro. Amor é um troço cotidiano, nem tão bonito assim, porque é meio frágil. É mais ou menos como um arco íris, ou uma borboleta. Um dia acaba, ou se tocar muito fundo pode desintegrar. A última coisa que lembra, sobre um desses amores aconteceu na cama do quarto, quando os dois deitados não esboçavam mais emoção, só cansaço. As pernas entrelaçadas, os rostos colados e um eterno cansaço. O cansaço do fim do amor. De quem andou demais, esfolou os pés e de repente não sente mais forças pra continuar.

Mas as despedidas são bonitas. Os ritos, sempre os ritos. Um último beijo, a misericórdia, um gosto doce. Nenhum desses presentes sabia que um dia torna-se-ia bibelô. Enfeite de mesinha de centro, de cabeceira, empoeirado pelo tempo e pesado de tanta lembrança. Pegou um deles na mão, lembrou do momento. Talvez os significados ainda estivessem ali. O sentimento não. Mesmo que ainda existisse, existiria transmutado. E, além do mais, depois de tanta solidão ancestral nem tinha como tirar a poeira que o tempo deixou nos presentes - e no coração. Sentiu uma espécie de gratidão. Ao mundo, ao amor, ao sentimento, à ele. Queria deixar eternizado em algum lugar que já tinha sido feliz. Colou uma etiqueta embaixo de uma boneca, escreveu a data que se lembrava "por volta de setembro" e completou "alguém me fez feliz com isso". Botou de volta no lugar, limpou a poeira e sorriu. Tinha criado uma espécie de mausoléu para a felicidade. Que hoje jazia enterrada a sete palmos e tomava cada vez mais distância do amor.

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