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20.2.12

Free and easy, we'll disappear completely

Queria dizer a ele milhares de coisas. Calou-se deixando a caneta e o papel de lado e deixou a mensagem escrita nos rascunhos. Pensou em talvez marcar pra dizer pessoalmente que "nós não damos mais certo", mas achou esforço demais. Ele não estava assim tão interessado em nós - se é que havia existido algum 'nós' em qualquer momento que fosse - e ela estava cansada demais. Seria assim: ele chegaria em casa e não mais a veria. Tinha feiro as malas, empacotado os presentes, separado os livros. Não mais uma estante compartilhada, não mais os almoços feitos pra dois, não mais coisa alguma. E não precisava de explicação nenhuma porque a explicação era lógica: nunca haviam se amado. Parecia cruel dizer assim, depois de tantos meses de convivência, mas era essa a verdade enfim: não havia amor.

Quando se conheceram se julgaram compatíveis. Deveria ser fácil conviver com alguém tão igual assim. O mesmo jeito de pensar a vida, o mesmo gosto pra música e filmes, o mesmo gosto para comidas. Haviam apaixonado-se em uma festa de faculdade, conversaram por horas e horas e depois julgaram-se aptos para ter um relacionamento. Três meses depois estavam morando juntos: era mais fácil dividir as despesas. Viviam como colegas de apartamento. Nunca se chamavam de namorados quando saiam um com o outro e nunca haviam se dito "eu te amo". Nem esses que a gente cala, envergonha e diz com os olhos. Nada disso tinha acontecido. Ela ainda tinha alguma esperança. Talvez fosse aquilo, o jeito torto dele de amar. O deixar chocolates na escrivaninha, o trazer um livro que ela talvez fosse gostar, o colocar a sua música preferida na hora do almoço. Mas ele nunca soube o que é o amor, e ela estava velha demais para ensinar. 

Seria mais simples se os amores ocorressem assim, tal como fórmula matemática. Dois seres extremamente compatíveis, somados com afinidades em vários aspectos teriam que ter como resultado: o amor. Mas acontece que, aparentemente, a formula para os encantos da vida é um pouco mais complexa que essa e envolve algumas variáveis. Ela se irritava com o jeito apático dele frente a tudo. Por vezes chegava da rua com várias novidades pra contar e ele ouvia desinteressado. Cabia a ela procurar um amigo pra contar tudo aquilo que lhe era importante. No começo ela ainda insistia, contava-lhe as coisas, as novidades, suas conquistas, mas depois desistiu por inteiro. Não compartilhava mais nada. Sentia-se cansada. 

Se fosse mesmo escrever uma carta para explicar o porquê do abandono, teria terminado com "eu deveria ter tido mais paciência". Deveria ter tido mais paciência, porque eram felizes. Esquisitos, mas felizes. Conseguiam se divertir com filmes, os programas na tv, as aventuras culinárias. Conseguiam discutir livros, indicarem-se músicas, sair pra dançar. Mas isso nem sempre bastava e ele parecia sempre um pouco enjoado da presença dela, depois de um tempo. Dificilmente saiam sozinhos e ela sempre dividia o seu homem com uma legião de amigos. E depois dos amigos, dividia-o com seus ídolos. Ele sempre admirava em alguém alguma coisa que ela não tinha. Ora era a cor do cabelo, depois era o jeito de escrever, e às vezes qualquer coisa sem sentido, que a fazia sentir sempre inadequada. Por mais que se esforçasse, tentasse, se superasse ela era sempre pouco. A profissão errada, o jeito errado de colocar o cabelo, a escolha inadequada das frases, o desajeito, o falar-demais. Ela aprendeu a esquecê-lo na vida também e acabava por troca-lo pelo trabalho, pelos livros, pelos filmes que preferia ver sozinha. Não demorou muito tempo até que perdesse completamente a paciência por se julgar completamente inadequada - e dispensável - na vida daquele homem que um dia se julgou capaz de amar. Deveria ter tido mais paciência, mas não era capaz.

No dia que resolveu partir, havia percebido que, por mais que tentasse, nunca seria capaz de amar completamente aquele homem pela metade. Era preciso mais. Era preciso mais que as noite divertidas em que viam filmes, era preciso mais do que ter as mesmas opiniões sobre os mais diversos assuntos, era preciso mais do que ter a mesma banda preferida. Havia percebido também que não tinha porque se explicar porque a verdade era clara: nunca tinham se amado. Gostavam da companhia um do outro, mas nunca houve espaço para o coração esperar apressado pela nova mensagem de texto, pela hora do outro ligar, pelo momento em que chegaria em casa. Não havia o olhar apaixonado e cumplice, não havia o companherismo, não haviam nem ao menos piadas de casal. Não havia nada exceto a promessa de um dia poder ter sido.  E pareciam seguir esperando, os dois, pelo dia em que se olhariam e qualquer mágica fizesse com que finalmente se tornassem um casal. O casal que nunca haviam sido. 

Pegou as malas - não eram muitas - e naquela manhã mesmo deixou a casa que nunca tinha sido um lar.  Queria ter se explicado, queria se perguntar porque foi que aquilo que podia ter dado tão certo acabou assim, desavisado, mas calou-se. Sabia que a culpa não era de ninguém, que amor não é jogo de somar. Amor acontece, ou não acontece e é preciso um pouco mais do que dividir o mesmo espaço pra se ter um lar, assim como é preciso um pouco mais do que um segurar de mãos para ser um casal. Deveria, quem sabe, ter tido mais paciência, mas sabia que não podia. Queria mais, queria ser amada, queria ser admirada, queria de novo o nervoso, o suor nas mãos, o medo de dizer algo errado e estragar tudo. Queria ser olhada nos olhos, desejada, conduzida, queria ser mostrada com orgulho, queria ser priorizada, queria se sentir parte de algo maior. Não se sentia. Talvez descobrisse não ser possível viver sem ele, meses depois. Talvez ele descobrisse que devia ter se esforçado mais, depois de perdê-la. Talvez não descobrissem nada e seguissem as suas vidas. Tudo que soube ao deixar a casa é que subitamente se sentia inteira demais para ser querida assim, tão pela metade - e se sentiu completa. 

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