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29.2.12

É triste a saudade longe de você.

Vó.

Nunca recebi conselhos seus, que resolveu se ausentar desse mundo muito antes de eu sequer entender os mistérios da vida e da morte. Tudo que você teve tempo de me ensinar foram algumas coisas muito pontuais: gostar de café, de paçoca, arrumar os cabelos do jeito correto, e orar a deus quando as coisas apertam. Continuo seguindo os conselhos rigorosamente, embora o relacionamento com deus não esteja lá muito estreitado ultimamente. Não sei se isso é bom, vó. É bom ter algo em que acreditar, e eu, sinceramente, ando muito sem esperanças. Tudo que eu aprendi com você foi a mãe que me contou. Sabe, vó, esses dias ela me disse muito triste que se você estivesse viva, não se orgulharia dela. Ela disse que não soube tomar as rédeas da própria vida e que, tem sido, nos últimos anos, uma pessoa sem iniciativa. Ela tem vivido pelo pai, que exige muito dela, porque sempre exigem demais as pessoas que só sabem enxergar seus próprios narizes. Acho que ela não sabe o quanto é forte. O quanto é difícil se manter nessa vida ainda acreditando que alguma coisa boa há de acontecer. Eu acho que já teria enlouquecido no lugar dela. Eu passo por muito menos e já estou quase enlouquecendo. Viver não é nada fácil.

Não sei se a senhora se orgulharia de mim se me visse. Cumpri a primeira parte do seu conselho muito bem. Estudei. Continuo estudando. A mãe diz que você sempre falou que uma mulher deve ter independência financeira e nunca depender de homem nenhum. Acho que levei esse conselho a risca e tento, o quanto posso, lutar pra ser bem sucedida. O vô dizia que a gente tinha que estudar fora, mas eu nunca saí do brasil. Vó, sabe, eu tenho dificuldades de sair de Londrina. Às vezes acho que se você me visse, ia dizer que eu sou muito molona. E eu sou mesmo. Me faltam as iniciativas. Ou eu acho que faltam. Você sabe que, eu consegui me virar um pouco bem em São Paulo sozinha. A gente sempre sobrevive. A mãe tem muito medo por mim. A gente sempre foi muito apegada. A gente anda é. Não sei como a gente conseguiu segurar as barras da vida. Não sei como sobrevivemos à sua doença, ou a morte do vô. Não sei como permanecemos fortes depois de perder vocês dois, que foram por anos, a nossa companhia diária. Eu vi você morrer na minha frente, e continuei viva. O vô se foi, e eu continuei viva. Eu e a mãe, continuamos. Continuamos também naquela vez que tivemos que enfrentar uma viagem toda de Londrina até Campinas sabendo que o pai estava na UTI. A força vem, de algum lugar. 

Mas sabe, vó, eu tenho estado um pouco fragilizada. Acho que é da vida. Passei por bastante coisa nesses vinte três anos, e tive muito pouco tempo pra pensar na minha vida. É claro que eu nunca tive que tomar as rédeas da minha própria vida na marra, como você e a mãe tiveram, e também espero que não tenha que ser assim, tudo tão traumático. Mas a vida é feita de traumas. Eu não sei que você diria se estivesse viva. Talvez mandasse eu enxugar essas lágrimas do meu rosto e ir viver. Imagino também que diria, em todas as vezes que eu me desesperei nos últimos dez, talvez cinco anos, que homem nenhum no mundo merece o nosso sofrimento. A mãe sempre diz que a senhora dizia que a gente nunca devia se rebaixar por homem. Sempre tomar as rédeas da própria vida. Sempre ser independente o suficiente pra poder estar com o homem por escolha, e não por necessidade. Investir um dinheiro num apartamento só nosso. Ter um lugar pra morar em eventualidades. Saber cozinhar e lavar a própria roupa. Acho que não sei nada disso direito, vó. E tenho passado pelo inferno. O inferno da insegurança, do não-saber-o-que-fazer, de não me sentir capaz. Eu sei, eu sei que você diria que ninguém no mundo tem o direito de fazer a gente se sentir incapaz. Que ninguém no mundo tem o direito de dizer que a gente não pode fazer alguma coisa. Porque a gente sempre pode. Você dizia que a gente tinha que acreditar na gente, na capacidade da gente. Eu sei, vó, que você ia me mandar enxugar essa auto comiseração e ir viver, ir ser essa menina "sacudida" na vida. Não tenho conseguido me sacudir, não, vó. Nem com café, nem com paçoca, nem sabendo que você, a mãe e o vô estariam bem bravos com essa minha preguiça de viver. Até meu pai anda menos orgulhoso do que já foi de mim, e vive falando das filhas dos amigos dele que fazem cursos no exterior e dos meus primos com seus apartamentos nos jardins.

Sabe, vó, eu nem queria ser rica. Vocês não foram ricos nem nada. Eu só queria ser feliz, sabe? Não chegar um dia e querer desistir da vida como você quis. Ser diagnosticada com depressão, a doença incurável, porque de repente, mesmo depois de todo o esforço, a vida parecia pesada demais pra ser vivida. Nem você, a mulher mais forte que eu já conheci, teve vontade o suficiente de continuar lidando com as injustiças da vida. Você viu um neto morrer e decidiu que era demais aguentar isso da vida, e então não quis aguentar mais. E foi parar num outro mundo. Um mundo em que de vez em quando você lembrava do meu nome e me oferecia café. Me lembro de, vez ou outra, você me pedir pra te levar pra casa. E eu, na minha inocência infantil dizer "Mas vó, você tá em casa". Eu acho que casa não é o lugar onde a gente mora, né vó? Casa é o lugar onde a gente se sente confortável no seu próprio corpo, e você só queria voltar pra um lugar onde fosse feliz. Na sua cabeça era minas gerais. Eu não sei onde é esse lugar. Acho que ainda não descobri. Não sei se você se orgulharia da pessoa que tenho sido. Acordando depois do meio dia sempre, e com pouca vontade de viver. Provavelmente, ao ver me ouvir te contar essas coisas, você me diria pra largar de "bobiça" e eu concordaria com você. Viver é uma estrada complicada. Hoje eu entendo porque você desistiu. Tem vezes que é muito mais do que a força da mulher mais forte que eu conheci pode suportar. A vida é cruel. Eu tenho medo de desistir um dia também. 

Só que sabe, vó, por enquanto não. Por enquanto eu sei que se você aqui estivesse me diria que eu sou nova demais pra esse tipo de lamentação e que, existe muita coisa além disso que eu vivi pra viver ainda. Eu teria que concordar com você. Tudo seria mais fácil se você estivesse aqui me falando isso com biscoito de polvilho e uma xícara de café, mas eu me contento em saber que aprendi pelo menos um pouco daquilo que você ensinou. Tem sido difícil. Às vezes eu também tenho vontade de voltar pra casa, essa casa que eu não sei onde é. Às vezes eu sei que sou fraca demais, e sei também que por vezes me deixo acreditar quando me dizem que eu não sou capaz. Mas se eu aguentei te perder, né vô? se eu aguentei perder você e o vô, porque eu não aguentaria perder um emprego, um amor, uma casa, dois ou três amigos. A vida é feita de perdas. Umas doem mais do que as outras, mas a gente sobrevive. Sobrevive porque tem que. Sobrevive porque você ensinou a mãe a ser forte, e me ensinou também. Esse é o jeito que a vida deu de te manter viva, vó. Você vive nos meus cabelos finos e oleosos, na minha mania de nunca sair desarrumada, e principalmente, em tudo que me ensinou a ser. Eu estou devastada, mas não vou sucumbir. Ninguém tem direito de tirar a felicidade da gente, é isso que você dizia. Você dizia também que a gente nasceu sozinho e vai morrer sozinho então cabe a nós e somente a nós traçar o nosso caminho. E eu espero que o meu te deixe orgulhosa, vó. Onde quer que você esteja. 

Com o cheiro de café e bife com alho que vai estar sempre na memória, 
Sua neta mais nova. 


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