2012 é o pior ano da minha vida.
Ao sentenciar uma coisa assim, de maneira tão clara, alguém podia vir e me dizer: "existem coisas piores para acontecer". E eu concordo. Existem, claro que existem. Meus pais podiam estar doentes, por exemplo. Alguém da minha família podia morrer. Eu podia estar tendo algum tipo de doença incurável. Podia cair uma bomba na minha casa, a gente podia sofrer um acidente. Mil coisas piores do que os meus dramas existenciais poderiam estar acontecendo. Se a gente entrar no mérito da comparação, milhares de pessoas estão tendo anos mais difíceis que o meu. Eu sei disso. Isso acontece o tempo todo, no mundo todo. O sofrimento da gente só parece essa bola de neve de tamanho colossal porque faz parte do nosso mundo. E o nosso mundo é o que mais importa pra nós. Eu nunca acreditei na lei da comparação e nunca consegui me consolar com o "podia ser pior". O que está acontecendo já me é bastante difícil, suficientemente difícil e eu não quero comparações ou falsos consolos. Nesse ano eu tenho deixado de existir. Deixar de existir do jeito que você conhecia é uma das piores sensações que existem. Existem outras sensações bem ruins como falta de ar, ou perder alguém que a gente gosta muito. Mas o distanciamento do ser traz bastante sofrimento.
Dois mil e doze, escrito em extenso, começou - embora indeciso - bastante esperançoso. Tive um ano novo sorridente, promessas de um novo amor, uma chance de recomeçar uma outra vida, em um outro lugar. Amigos voltariam de longe. Minha vida podia entrar nos eixos. E entrou. Até fevereiro tudo parecia muito bem encaminhado. Bem encaminhadíssimo. Tudo parecia tão bem que eu tinha medo que estourasse. E estourou. Não tardou muito. Março já foi o mês da ansiedade e abril veio terrível e depressivo. Eu já segurei muitos baques na minha vida. Inúmeros. Toda vez que você diz que segurou a barra da sua vida parece que você está querendo se mostrar. Eu não digo nada. Não preciso dizer. Essas pequenas grandes coisas que eu vivi me tornaram a pessoa que eu sou. A pessoa que eu sou aguenta o baque e sai fazendo piada. A vida nunca foi assim tão fácil. É claro que eu não passei fome, não tive que trabalhar, meus pais não me abandonaram. Nada disso. Eu fui filha única, mimada, e recebia uma sacola de chocolates do meu pai todo fim de semana. Não tive grandes traumas, nunca fui abusada, ninguém sentiria tanta dó assim de mim se eu contasse minha história no fantástico.
Exceto que minha vó entrou em depressão profunda quando eu era novinha e eu convivi com a doença toda, até a morte, que eu vi acontecer na minha frente. Aos dezesseis anos. Sozinha. Sempre foi assim. A única pessoa que via minhas fragilidades era a minha mãe. Mãe essa que segurou a minha mão quando a gente teve que visitar, sozinhas, meu avô na UTI depois do derrame que viria a matá-lo. Mãe com quem eu viajei de ônibus sem derramar uma lágrima quando me ligaram, no ano do TCC, dizendo que meu pai tinha tido um AVC em campinas e estava na UTI. Com ela eu chorava. No colo dela eu chorei a morte dos meus avós e a notícia da internação do meu pai. Ninguém ficava sabendo. Eu preferia assim. Das poucas vezes que tentei pedir ajuda as pessoas não entenderam muito bem. Tudo bem, é difícil entender a morte. Tudo bem, a gente aprende a perder. O estranho de tudo é que, mesmo nesses momentos, eu continuei em pé. Eu era mais aberta, ou mais resiliente. Eu tinha mais bons amigos perto de mim. Amigos que se não sabiam o que dizer ficavam do ladinho, fazendo piada, convidando pra um lanche. Do meu lado tinha gente que me entendia. Que falava a minha língua, sabe? Eu nunca chorei na frente deles. Nunca. A única pessoa que me viu chorar além dos meus pais foi meu namorado. Meu ex namorado que passou comigo três anos complicados, mas com quem eu tinha liberdade pra ser um pouco menos sisuda. Não porque eu quis, mas porque ele me ensinou a. É um processo as pessoas quererem entrar na sua vida a ponto de te abrirem aos pouquinhos, ainda mais quando você já tomou muita bordoada da vida. A gente desaprende a confiar. Fazer carinha de dó todo mundo faz, o difícil é segurar a barra da chatice, do choro, da fragilidade. Difícil é enxergar o outro. Mas tudo isso veio, passou, eu sobrevivi. Sobrevivemos. Sempre em pé, com piadinha ou sem piadinha. Sempre seguindo a vida.
Daí veio dois mil e doze, o ano do apocalipse. Não deu mais. Não dava mais pra segurar o choro, não dava mais pra respirar fundo e ser forte. Não dá, não deu, foram vinte e três anos assim. Desculpem. E dá menos ainda quando as pessoas que te enxergam mudaram pra longe. O pior momento do meu ano aconteceu num abril meio louco e eu segurei o choro por dois dias. Cheguei em casa e desabei. Ninguém acreditou que eu desabaria. Acho que não acreditam até hoje. Eu não pareço ser esse tipo de pessoa que sucumbe. Eu não sou. Mas sucumbi. Sucumbi tanto que três meses depois eu não vejo tantas melhoras assim. É uma atrás da outra. Uma decepção, um baque, uma depressão leve, um problema no estômago, uma gripe, uma dor de garganta, um emagrecimento, outro problema no estômago. Daí as coisas parecem estar se encaminhando e de novo alguma outra decepção, alguma outra gripe. Eu aguentei. Eu aguentei firme. Ninguém teve que me ouvir reclamar meu medo de sair de casa. Eu não joguei a culpa em cima de ninguém. Ninguém foi culpado pela minha falta de apetite, pela minha fraqueza, pelos meus inúmeros resfriados. Eu não obriguei ninguém a me ouvir reclamando. Ouviram quando quiseram, quando se preocuparam. Eu fiquei de pé. Cambaleando, mas fiquei de pé. Mas agora é julho, eu tenho quatro meses pra entregar a monografia que eu nem comecei e tô amargando a pior gripe que eu já tive esse ano.
Eu desmaiei na sala. Desmaiar é uma das maiores sensações de impotência que a gente pode ter consciente. Numa hora você tá em pé, na outra tudo ficou preto e você caiu no chão. No chão, estatelada. Meu pai me segurou, mas quem foi andando até o sofá fui eu. Porque eu não espero que me carreguem. Eu acho que esperei, algum dia, quando tinha uns treze anos. Depois voltei a ter esperanças aqui e ali, esse ano até achei ser possível, mas não é. A sua barra quem segura é você. Eu nunca estive tão cansada. E não é uma questão de querer apontar dedos na cara de ninguém, é uma questão existencial. Eu não me reconheço. Fico apática esperando que a vida me dê um pouco de ar, mas eu recebo febre. Minha mãe faz bolo e mantêm a calma. Eu tive medo, eu tive muito medo de adoecer de vez. É sintoma, é claro que é sintoma. Minha tosse chatinha não é maior que o desespero que às vezes bate aqui dentro. Hoje eu acordei fraca e repeti baixinho que eu não aguento mais isso. Não aguento mais esse ano, essa apatia, essa fraqueza, essa falta de comunicação, esse mundo inteiro que não tem falado a minha língua. Não aguento mais e ponto. Fico correndo essa corridinha de obstáculos babaca e sempre acabo batendo na barreira. Depois levanto, tento de novo. Mas sempre bato. Sempre bato no obstáculo. Esses dias me disseram brincando que eu precisava ser mais frágil. Eu concordei, também brincando, mas no fundo eu até queria. Ser dessas pessoas que mandam mensagens pros seus pares amorosos que nem são fixos dizendo "cuida de mim". Mas eu não tô acostumada. Eu levanto do desmaio e vou até o sofá. Eu meço a minha própria temperatura e pego a minha comida na cozinha. Eu não sei dar trabalho. E a única vez que eu dei, me custou o ano. A vida é injusta, né? Teu único momento de fraqueza é punido com danação eterna. A danação eterna de um ano apocaliptico.
Sempre fico me perguntando se eu merecia tudo isso, e chego a conclusão que a vida não é questão de merecimento. Fosse assim minha mãe também não teria segurado essas barras todas, e eu não conseguiria me enxergar nela, toda vez que ela finge calma e bom humor no meio da tragédia. A vida vem do jeito que tem que vir, a gente querendo ou não carregar. E isso não é um martírio, um pedido de socorro, nada disso. É só um jeito de dizer baixinho que de algum jeito esse ano é uma torre de babel. Eu tento dizer alguma coisa que ninguém entende. Nem eu mesma. E tudo tem me deixado cansada. Existencialmente cansada. Eu sei, vai passar, eu vou superar. Eu sei disso mais do que todo mundo, inclusive. Eu superei coisas piores. Todo mundo é sozinho no fim. Esse é o problema do mundo. A gente vive cantando músicas em línguas que não sabe. Ninguém se entende, ou se reconhece. É preciso enxergar. Urgentemente é preciso enxergar-se.
Dois mil e doze, não me maltrata mais não. Tá? Eu sei que eu aguento, mas eu tô muito cansada de.
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