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15.7.12

o bêbado e a equilibrista


Vejo o homem pra quem um dia jurei amor eterno (de mentirinha, mas jurei), enlouquecendo no meio de suas criações na rede social onde ainda nos temos adicionados. Ele tira fotos de cadeiras, explica sem convicção projetos que nunca sairão do papel, faz um tutorial estranho sobre como usar os obturadores e diafragmas e se culpa pela superexposição da foto da sala de jantar onde nunca jantamos juntos. Ele nunca soube tirar fotos, de qualquer maneira. Nem escrever muito bem, nem nunca teve um filme que tenha saído do papel. Só uma vez, um quase curta sobre um caio fernando abreu que ele odiava com unhas e dentes e que acabava por me deixar sozinha nas noites de sábado, quando a minha neurose precisava dele (ou julgaria ser um descaso sem fim). Teve também uma outra vez, um roteiro sobre um homem, um armário, uma vitrola e uma mulher que o deixa. O homem era ele, a mulher era eu. Tudo óbvio assim, ele chorava na minha barriga e eu não entendia a música que ele gostava tanto. Ele negava, mas eu sabia. Ninguém além de mim tinha feito um estrago tão grande naquele coração esquisito que só dava conta de me amar e bombear sangue pra um corpo doente, que ele segurava meio sôfrego com os seus pés tamanho 38 que calçavam o meu all-star.

Os episodios de loucura dele eram muito amostrados, enquanto os meus aconteciam muito dentro dos quartos, nos telefonemas durante a madrugada, nos meus e-mails quilométricos onde ora eu atribuía culpa, ora me desculpava sôfrega. No resto do tempo eu era normal. Ele, ele não. Ele saia pelas ruas do Rio de Janeiro e depois não era encontrado, desaparecia por um ou dois dias, dizia que tinha dormido na praia mesmo e, tudo bem, tudo normal, como se todo mundo adormecesse na praia e esquecesse de voltar pra casa. De vez em quando ele inventava histórias fantásticas pras moças do cinema, e ele nunca em tempo algum via problema em se misturar às crianças do playmaster - e pedir pra andar de montanha russa. A revolta precoce dele o impedia de entender os meus pais, e o jeito estranho dele me fazia ter que esconder certas coisas das outras pessoas. Tinha isso, mas na maioria do tempo ele conseguia o que pouca gente conseguia: me deixar dentro do eixo. Equilíbrio pra mim sempre foi um ideal inatingível, é só me dar um pouco de confiança que eu começo a ser um pouco louca, três tantos desconfiada, cinco tantos paranóica e o resto, o resto é neurose. Ele me segurava no meio dos meus ataques de choro que nada mais eram do que culpa por não amar tanto assim aquele menino que segurava - e demonstrava - o seu amor em viagens de doze horas para permanecer um dia só. Ele viajava vinte e quatro horas pra me ver e eu ainda tinha minhas dúvidas. Focar no discurso e nunca na ação é um problema a ser vencido, mas é mais ou menos como correr aquelas corridas com salto-com-barreira em que a gente tem que pular um obstáculo por vez (e eu sempre tropeço). 

Ele parou sua jornada de auto-conhecimento antes da metade, e tomava os rivotris pra dormir como se fossem bainhas. Dez analgésicos de vez em quando, o garoto não tinha medo de morrer. Durou duas consultas no psicólogo, depois voltava me dizendo que não, não precisava de nada, os problemas dele são muito dele e cabe a ele preserva-los. Eu criticava, mas sei também que sou um pouco assim. Os problemas são sempre os meus problemas, e cabe a mim tentar decifrá-los, mesmo que toda essa jornada do auto conhecimento me coloque frente a coisas terríveis, e pensamentos inoportunos. Os pensamentos inoportunos dele um dia deram um estopim no nosso relacionamento falido. Ele me ligou bêbado, me dizendo que me amava e que a gente ia dar um jeito em tudo. Ele mudaria tudo o que eu não gostasse, mas a gente não podia continuar daquele jeito. Eu, assistindo a novela, sem amor nenhum não quis ouvir mais nada e cheguei à conclusão que não dava mais. O relacionamento acabou, mas continuou ele me ligando quando se sentia sozinho, e eu ligando soluçando de choro, porque só na loucura é possível entender o outro, e a gente se entendia.

Eu fiz ele parar de fumar, e depois foi ele que me dizia que eu não podia começar porque estava prestes a. Ele não entendia minha jornada de auto destruição, e eu dizia que era meu jeito de não ir no médico tratar doença. No fundo é tudo a mesma coisa, sabe? Se a gente não quer viver tanto assim a gente desapega. Dessa vez, dessa vez eu tive que ir sozinha. Descobri que acho injusto recorrer à alguém só porque essa pessoa sempre-vai-me-amar. Se eu sou grande o suficiente pra me meter naquela cidade louca e andar de ônibus sem saber exatamente pra onde ele está indo eu sou grande o suficiente pra saber-lidar. Teria que ser. Ele nada soube sobre os porquês da minha depressão, nem entendia nada de quando eu ficava gripada demais e começava a reclamar de levinho, nas conversas que a gente tinha sobre o que cada um andava fazendo da vida. Ia ser difícil explicar pra ele que eu seguia com a minha vida, de um jeito torto, mas seguia. Seguia no meio de uma São Paulo louca, seguia tentando tirar amor de onde eu sabia que não viria amor-amor, só um amorzinho terno de fim-de-tarde e telefonema antes de ir pro trabalho. Ele quereria bater no homem que me fez mal, mesmo que ele tenha me feito mal sem querer, e boa parte da culpa também tenha sido minha. Quando a gente se conheceu eu nem bebia, eu nem chegava tarde demais em casa, eu não era nada além da descontrolada ativista que tentava fazer da faculdade um lugar melhor pra se habitar e viver. Quando ele me conheceu eu era crua e limpa, e tomava porrezinho de vinho no nosso quarto de hotel às três da tarde de uma quinta feira, enquanto a minha mãe saia pra fazer as coisas dela. Ele ficava chato bêbado, muito chato. Acho que era por isso que eu não bebia nunca e queria fazer ele parar. Ele bebia e grudava em mim, dizia que nunca-mais ia me deixar, que a gente ia ter uma vida tranqüila e terna em Curitiba, depois que a gente terminasse as nossas faculdades. Ele me amava demais pra que eu pudesse continuar segurando na mão dele. Ele me amava demais, e só. 

Das duas coisas que eu nunca soube lidar, o amor-demais era uma delas. Não sabia. Às vezes eu olhava pra ele, tão desgastado de tudo que tinha feito por mim, as mãos sangrantes já, os joelhos ralados e daí eu sentia muita pena. Pena dele, e pena de mim que não sabia fazer outra coisa senão apontar os dedos na cara dele dizendo que ele nunca, nunca em tempo algum seria o homem que eu esperava. Daí ele tentava ser. Se enfiava em mil loucuras pra ser esse homem. Me mandava flores, me trazia bombons, tentava entender de futebol de um jeito histérico. Tudo nele me enjoava porque ele queria demais. Queria demais me amar e eu não sei ser tão amada assim. A outra coisa com a qual eu não sabia lidar era a indiferença dita. Amor paulista é outro amor. Eu nunca consegui ser enfiada no meio das listas de prioridades de alguém como uma coisa qualquer entre o trabalho e necessidade de contato humano. Homem, homem de carne e osso, homem que manda fazer que chama o garçom com segurança, que te faz o pedido eu gelo. De vez em quando tinha ternura. Ou teve uma vez em que a gente se enlaçou longe dos afazeres de todo dia e foi viver outra vida. Naquela vida eu era prioridade no meio da vida louca dele. Depois eu fui o tempinho que sobrava. Não dava pra deixar os amigos na mão, a faxina pra depois. Nem tempo pra ficar sozinho conversando a gente teve. O terceiro elemento jazia do nosso lado enquanto eu sabia que nunca seria essa mulher que ele tanto admirava. Com as convenções históricas do que uma mulher deve ser, eu não sei lidar. Sei até ser uma boa amante, fazer uma comida, e tinha aprendido a fazer cafuné alguns meses antes. Mas atender expectativas, meu bem, isso é demais pra mim. É demais que eu saiba me portar como a dama que não suja as paredes e não mancha a fronha. Não sei sentir vergonha dos erros que cometi e esse é sim, assumo, um dos meus grandes defeitos. Eu assumo os erros. Assumo e me desculpo. Depois tento reparar, quando posso. Quando não exige mais de mim do que eu posso dar. Quando exige mais eu choro na cama como qualquer outro ser, como um gatinho afugentado que não sabe o que fazer frente a nova bordoada. Vergonha eu não sei ter. Pedir que eu tivesse antevisto o desastre e me portado, proativa, frente ao estardalhaço todo que causei é o mesmo que esperar que eu espere que me abram a porta do carro. Só faço aquilo que eu sei. O que eu não sei não faço. Agradá-lo eu não soube, daí fui rechaçada. Porque era essa a palavra. No mais de tudo, não saberia contar essa história à ele que tanto me amou porque ele não entenderia como me deixei ser assim, tão escondida no meio da vida de outra pessoa. Me acostumei a me terem com orgulho. Mesmo quando as nomenclaturas não eram bem colocadas, eu era posta na frente. Tinha orgulho neles a toda vez que saiam por aí me levando pelo braço. Lembro deles todos, os anteriores, me deixando falar e ouvindo com um certo orgulho. Eu andava do lado deles na rua, e claro, tropeçava. Mas os tropeços não importavam. 

Dos meus arrependimentos só o de não ter conseguido amar de volta com tanta devoção as pessoas que tanto fizeram por mim. Minhas escolhas sempre acabam sendo débeis. Muito mais pela palavra do que pela ação. Eis que sempre chega aquele dia em que se percebe que jurar amor e dar amor podem ser coisas diametralmente opostas. Todo o discurso da vida que podíamos ter caia por terra quando eu era só uma amiga que foi dormir no quarto dele. Nenhum orgulho na sentença proclamada. Uma amiga. Uma amiga e só. Com os outros palavras péssimas, e devoção sempre. Além. Me chamavam pelo nome e me carregavam pelo braço. O homem que mais me amou na vida, com certeza não entenderia o porquê de, tendo tido na vida tanto amor, eu tenha me sujeitado a pedir emprestado o pouquinho que um outro não queria dar. Que ele não podia dar. Não podia ele porque era tanto quanto eu, um equilibrista. Tinha dito logo na primeira conversa que não, não seríamos, a vida se encarregaria de. Só que a vida sozinha não consegue amar ninguém. É preciso, em primeiro lugar, querer. E ele não queria, porque quem sabe nem podia querer.  Eu não podia dizer. Não podia ligar chorando no número que eu ainda sei de cor. A escolha é minha. Não pude amar quem me amou, fui construir uma estrada inteirinha de planos com quem nem me queria tanto assim. A vida, cruel a vida. Ele enlouquece no Rio de Janeiro e planeja roteiros e viagens pra São Paulo. Aquela São Paulo que ele jura que não entende porque depois de amar tanto eu vim a pegar raiva. Não posso mais com a rua augusta onde queria chorar e permaneci estática. Não posso com a avenida paulista e a livraria onde prometemos ir pra paraty. Não posso com a vida que eu queria ter e acabou. Não posso com nada disso e ele não pode saber. Ele me conta histérico dos planos dele sobre quadrinhos e filmes e eu retruco dizendo que ele nunca, em tempo algum esteve mais ridículo em toda a sua estada no planeta terra. Ele não sabe, mas vai ser mais fácil se ele me odiar. Mesmo que ele enlouqueça. Dia desses ele me ligou bêbado dizendo que sentia muito a minha falta. Eu não sentia a dele. Não sentia porque amei muito pouco esse tal homem que tanto me amou e hoje tira fotos de cadeiras. Eu só sentia mesmo falta da proteção, da admiração. De alguém olhar pra mim e me enxergar menos desastre e mais talento. Sinto falta da nossa luta. Da nossa luta conjunta em continuar amando os defeitos do outro. Sinto falta dele que nunca esperou de mim outra coisa que não fosse eu, na plenitude do ser. Eu estraguei muito mais que a casa dele. Se fosse pra colocar em reais, seria impossível. Eu estraguei tanta coisa dentro dele que sei lá se um dia ele vai conseguir consertar. Eu sei que eu estraguei, e ele, ele também sabe. Mas não me culpa. Ele não me culpa porque ele me enxerga por trás do desastre. E é isso que qualquer ser humano vivo espera. Ser visto além.

No mais ele enlouquece e eu vivo. Nunca daríamos certos juntos. Nunca em tempo algum daríamos. Ele é mais do que eu posso suportar em sentimento. Ele nunca soube manusear tão bem quanto imaginava as câmeras fotográficas, mas tirou algumas fotos minhas. Elas ficaram perdidas nos velhos HDs dos computadores que a gente não usa mais. Esses dias encontrei, revi. Eu era mais magra, os cabelos eram mais curtos, eu não tinha noção nenhuma de moda e estilo e mal devia entender a diferença entre uma roupa anos 50 e outra anos 80. Andávamos pela ferroviária. Ele usava moletom e eu uma bolsa de pano. Não lembro de tanta coisa assim, faz muito tempo. Eu sorria. Em todas as fotos eu era uma magreza estudante de design sorridente. De uma coisa eu tive certeza: depois desse ano, acho que ninguém nunca mais vai me ver daquele jeito. Ele é o bêbado, e eu a equilibrista. Só que da corda bamba do amor eu caí há alguns meses. Não levantei. Não levantarei. O público ainda aplaude esperando que eu tente de novo e eu só assumo o erro e digo, compadecida: "Eu desisto, vida. Eu desisto". 


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