Eu sempre soube, desde muito criança, que o otimismo não me caia bem. Preferia a melancolia. Nenhuma razão específica a não ser um fatal: tem que ser assim. A vida nunca foi lá muito simpática comigo. Me fez alta demais em comparativo com as minhas coleguinhas, e tivemos alguns acidentes de percurso. Nasci introvertida. Não gostava das outras crianças, dos clubes, das recreações; não tinha amigos de brincar no prédio. Eu só lia. Minha mãe me deu de presente uma assinatura de gibis da turma da mônica e aquele era o melhor presente que eu podia ganhar. Ler pra mim era prêmio. Eu sempre terminava os exercícios antes de todo mundo e aí podia ir na biblioteca escolher o livro que eu bem entendesse. Acabei com a coleção da bruxa onilda e do monteiro lobato. Depois veio a coleção vagalume e os livros do pedro bandeira. Todo um imaginário que era melhor que a vida em si. Toda e qualquer literatura, ainda que trágica, é melhor que a vida em si. A vida açoita sem poesia nem pausa. A vida não tem métrica e esquece de rimar. Soube, desde muito cedo, que o único caminho era a melancolia. Acreditar era confuso demais. Eu me desiludia com facilidade. Minhas amigas me deixaram sozinha na quinta série e eu passei alguns vários recreios chorando na biblioteca. Confiar sempre foi uma coisa rara em mim. Às vezes eu mesma achava que eu tinha algum desvio sério de caráter. Não era normal que eu fosse assim, tão sem querer alguém que soubesse cada linha de mim. Não entendo dos meus traumas de infância e evitei a psicanálise tanto quanto pude. Ainda evito. Não tenho dinheiro nem saco. Nunca fui otimista. Nem no amor nem em nada. Sempre soube que a vida está aí, traiçoeira, pronta pra te dar o bote em qualquer oportunidade.
Dois mil e doze foi meu maior bote da vida. Pareço disco riscado e vitrola velha quando digo isso. Às vezes eu fico pensando como sobrevivi à tudo aquilo. Eu, com tanto medo de viver me enfiando em vans que corriam mais do que deviam em plena dutra sem saber muito bem pra onde eu estava indo e nem onde eu queria chegar. Eu, bicho afugentado sem saber que o nome daquele olhar perdido no horizonte e da minha vontade de chorar era: depressão. Eu quis que alguma coisa fosse minha salvação. Por isso tudo assim, tão louco e rápido. Algo tinha que me salvar daquilo, da minha falta de vontade de sair, da minha vontade de me enfiar debaixo das cobertas e ficar pra sempre. Eu queria que fosse um emprego, ou ele. E é claro que colocar as expectativas da sua vida em qualquer lugar que não seja você tende a um risco enorme, ainda mais quando o problema é você mesma. Depois de estragar tudo a gente acha o problema, cuida do problema e sara de mansinho. Vontade de viver eu ainda não achei tanto assim. Não tenho plano nem meta, nem vontade louca de ser alguma coisa. Não tenho nada. Um bom conselheiro um dia me disse que uma das grandes vantagens de não saber pra onde se vai é que o mundo se torna então cheio de possibilidades. Sorri no meio do caos. Ele tinha um pouco de razão embora eu ainda estivesse bem perdida. Ainda não sei qual dessas possibilidades eu quero (se é que eu quero alguma), mas é, ok, a vida ainda tem possibilidades.
Hoje foi um dia ruim. Tem dia que é. Passei metade dele tentando criar coragem pra mandar um e-mail que já estava escrito e abrir um e-mail que já tinha recebido. Depois disso várias pequenas decepções. Fui correr. Viciei em endorfina porque sim, e só correr salva. Cazuza gritava no meu ouvido que "eu te avisei, vai à luta; marca teu ponto na justa e o resto deixa pra lá". Sorri. Talvez fosse isso. Fazer o que eu tinha que fazer e deixar o resto pra lá. Todo esse resto estranho, essa gente que não me entende, minhas terças feiras frustradas e a falta de fé. Tem que ir de mansinho, o resto vem. Vem mesmo? Deve vir. Cheguei em casa menos mal, e fucei por vício a página dele. Ele parece estar com uma outra que, é claro, não sou eu e nem tem tanto assim a ver comigo exceto pelo fato que ela também corre e ela também curtiu "morangos silvestres" do bergman. Quis chorar. Aquela era a constatação óbvia de que a vida continua, não importa o quanto eu tenha ficado jogada largada no chão enquanto tentava me recuperar. Chorei. Chorei por mim, por ele, pela menina nova dele e por todos nós que queremos tanto ser felizes e não somos. Chorei por todas as conversas que não consigo ter, pela distância, por todos os convites recusados e por todas as cervejas que eu não pude dividir no bar, com outras pessoas. Chorei pelo meu grande amor perdido, que nunca mais atenderá as minhas ligações e pra quem eu nunca mais poderei pedir socorro quando a vida doer que nem doeu hoje, nessa terça feira à noite com gosto de fracasso. Meu grande amor perdido hoje casado, segura pela cintura sua mulher e divide com ela as aquarelas dos desenhos que eu nunca soube fazer. Ficou na caixa nossa ideia revolucionária de escrever quadrinhos juntos. Meu texto e o desenho dele que hoje nem tem mais traço único. Meu grande amor perdido, e exorcizado ao som de death cab for cutie. Meu grande amor perdido que não mais me seguirá dentro da escuridão, caso eu precise. Meu último amor perdido segurando pela cintura uma menina de cabelos curtos e olhos verdes. Parecia feliz, nunca sei dizer quando ele está mesmo feliz. Meu último amor perdido exorcizado ao som de coisa alguma porque vejam, não tinhamos assim uma música-tema. Chorar com shakermaker não tem graça alguma, então resolvi chorar ao som de caetano porque essa vida já tá qualquer-coisa. Meu último amor perdido sem barba e com as roupas bem escolhidas de sempre, já nem deve lembrar de mim de um jeito diferente de: "aquela louca que vomitou minha casa toda". Não é assim com tudo? Viramos umas pessoas de adjetivos simples e piadas prontas. Viramos mais uma foto no hall de relacionamentos. Acho que nunca mais verei nenhum deles, a não ser que a vida se encarregue dessas loucuras. Não espero nada.
Quanto a vida, sabemos que ela é de idas e vindas, mas certas coisas permanecem. Permaneceu meu encontro único de entendimento mágico com o único homem que agora ouso chamar de "melhor amigo". Ele, que segurou as minhas barras e que me diz na cara o que eu devo ou não devo fazer se quiser continuar tendo alguma decência na vida. Minha carência era de palavra. Palavra entendida. Eu queria que alguém me fizesse um acalanto na alma, e ele sabe fazer. Nos entendemos. Sempre nos entendemos. Desde a primeira vez em que ele estava de coroinha que piscava na fila do trote da faculdade. Continuamos nos entendendo, quase seis anos depois. Eu tenho medo da vida, ele tem medo da vida, temos medo de ficar sozinhos. Ele tinha medo que eu fosse infeliz. Eu tinha medo que ele não conseguisse dar conta. Ele esteve comigo nos piores dias da minha vida, e nos melhores também. Foi quem conheceu e deu pitaco em todos esses amores que já perdi. É quem chegou antes e vai embora depois. Uma das únicas pessoas no mundo com quem eu posso falar de tudo. Nós dois sabemos do nosso desencaixe, da nossa desesperança. Nós dois sabemos um sobre o outro coisas que não falamos. Eu sei quando ele mente e ele sabe quando eu falo meia verdade. Eu sei que é por ele, e só com ele que é possível seguir em frente nas terças feiras ruins. A vida não tem jeito. Não vai chegar ninguém virando ela de cabeça pra baixo e fazendo dela um grande acontecimento. Nada de extraordinário acontecerá na maioria dos dias. Tem o que tem. É isso. Todos os dias um nada sem sentido pra de vez em quando haver alguma coisa qualquer que faça sentido.
Quanto ao presente, entendo que depois de ter perdido tudo, só dá pra começar da onde há alguma coisa. Eu faço tudo que eu posso, tento tudo o que tenho. Não dá pra querer o que eu não posso ter, não dá pra desejar o que eu não tenho mais. Meu grande amor perdido casou, meu outro amor perdido arrumou uma menina qualquer pra passar os dias e, quem sabe, namorar e cantar caetano; namorar e discutir Nabokov; namorar e dizer "eu te amo" em russo enquanto ela responde em alemão. Meu grande amor perdido hoje desenha coisas estranhas e não vai mais à orquestras. Não somos as mesmas pessoas. O que ficou pra mim é o que eu imaginava que ficaria. O outro cara que eu gostei desde o primeiro encontro desajeitado. O cara pra quem comprei uma revista que eu nunca tive coragem de dar e nunca dediquei um texto. O cara que me deixa falar sobre teorias estranhas e ouve resignado, mesmo que depois esqueça tudo. O que sobrou pra mim é isso que eu posso ter e que, talvez, seja o mais certo a se ter. E se não for ele será outro, ou não será ninguém. O que sobrou pra mim é uma pilha interminável de questionamentos sobre identidade, pós modernidade, globalização e tudo mais que o cerca. O que sobrou pra mim é uma cabeça confusa e chata, um jeitinho estridente de reclamar, uma amizade completamente perdida no processo e alguma esperança. O que sobrou pra mim é o que eu posso fazer. Não se pode antever a vida. Não sei o que será do meu próximo ano porque não sei nem como vai ser amanhã. Pode bem ser que o mundo acabe dia vinte e um destruindo todos os nossos sonhos. Deixando nossas monografias incompletas, os vestibulares sem resultado, os noivados sem casamento. Pode ser que tudo continue e o fim de tudo é isso: continuar. Porque o fim de tudo é sempre continuar. Continua quando você perde um grande amor; continua quando você perde seu último amor; continua depois de uma depressão; continua depois da doença dos seu pai; continua depois que todos os seus amigos foram morar longe de você e não existe conforto. Continua mesmo depois que você conhece o mutarelli ou o Zeca Baleiro, ou a Paula toller. Continua depois de síndromes do pânico, depois de um show visto de trás de pilastra e de inúmeras decepções. Continua mesmo nas terças feiras quando você chora encolhidinha no banheiro porque seu último amor já seguiu a vida e você ficou caída e atropelada.
Continua, porque tem que. E no meio disso tudo, não tendo outro jeito, resolvi eu continuar também. Meu último amor durou alguns poucos meses, terminou em desastre e foi exorcizado ao som de Caetano. Meu grande amor perdido durou alguns anos e foi exorcizado ao som de mick jagger. Minha decisão de continuar tem mais ou menos uma hora, veio depois de uma conversa e foi animada ao som de deborah blando. Eu soube desde criança que a vida é muito mais melancolia que otimismo, e isso daqui não é uma carta de otimismo. É uma carta de constatação: se tenho que continuar, que seja ao menos pretendendo não ser miserável. Que seja com mais café que preguiça e com mais alegria que choro encolhida no banheiro. Continuo porque, inevitavelmente, descobri que não há outro modo. E vou até o fim.