(ou uma carta depois de um filme para um amor perdido).
Hoje vi um filme que me lembrou você. Tinha essa cara que sabia muito sobre vinhos. Como você. Eu, pessoalmente, nunca entendi coisa alguma sobre vinhos ou uvas ou pinots ou cabernets. Comprava o que parecia melhor. Não sei sentir cheiros, aromas frutados, coisa alguma. Sei do básico: ou gosto, ou não gosto. Quem se perdia nas prateleiras enquanto eu rodopiava pelo mercado era você. Você sempre confundia com impaciência. Na verdade, com você eu estava sempre com pressa. Acho que te encontrei poucas (pra não dizer nenhuma) vezes em que eu não tinha hora pra voltar pra casa. A equação é simples: os amores não podem ser construídos com hora pra voltar pra casa. Nossos encontros sempre tinham um fim em si mesmo. O amor precisa de eternidades. Não fosse assim, não teríamos nos encantado da primeira vez. Foi por poder conversar até o dia amanhecer que eu te conheci. Se fosse uma conversa marcada de duas horas não ia ter nada. Nosso caso tinha hora pra acabar, hora pra voltar pra casa, pressa de ir pro trabalho, de não perder a aula, de encontrar meus amigos. Nosso caso tinha hora pra acabar. Nosso caso tinha sempre uma hora pra ir embora de volta pra casa. E a minha casa sempre foi longe demais da sua.
Das poucas vezes que nos achávamos eternos, perdíamos o ônibus. Eu acabei lembrando daquela vez na padaria, em que a gente tomou duas mini garrafas de vinho e que você me contou umas histórias sobre um tal cachorro seu que a sua mãe tinha dado, daí chorou. Nunca antes eu tinha te visto chorar. Nem uma lagriminha boba, dessas que caem de canto de olho eu tinha visto. Você escrevia poemas e eu te contava sobre o sempre estar inacabado do escritor. Nunca seríamos, enfim, bons demais para sermos publicados. Naquele dia eu te contei sobre as minhas angústias enquanto devorava um brownie em que o sorvete derretia. Naquele dia você me chamava de escritora e eu acreditava em você. Naquele dia eu te disse olhando bem no fundo dos teus olhos, que não são de um castanho tão escuro assim, que você era o meu número. E, enquanto eu parecia eterna nos seus braços, o ônibus passou. Era sempre isso. Quando eu sentia que eu podia ficar com você pra sempre eu lembrava que tinha que voltar pra casa. Nenhum amor pode resistir se não tiver eternidade. O nosso se perdeu entre passagens de ônibus e meus tropeços no metrô. Não podíamos ser porque não tinhamos tempo. É preciso de tempo para amar. É preciso de tempo e o tempo é esse conceito relativo em que tudo pode acabar em um instante. Eu desisti de me desesperar. Era preciso que o tempo curasse as minhas feridas. Era preciso que a gente percebesse que um amor não se constrói correndo em visitas de quinze minutos. Em noites corridas. Em tempo marcado. Era preciso que a gente esperasse. Não ia ser dessa vez. Não no meio da minha loucura iminente porque eu não dei tempo pra curar minhas feridas. Não no meio do seu trabalho louco, dos seus afazeres, da sua mudança, das suas faxinas e das provas pras quais eu não te deixava estudar. A gente já tinha se esperado sem saber antes disso. Talvez a gente esteja em stand by pra se encontrar depois. Eu não sei. Não guardo mágoa, e não foi culpa de ninguém.
No resto dos dias eu fico aqui. Vez ou outra vejo alguma coisa que me lembra você e aí acabo ficando com vontade de escrever uma carta ou mandar um bilhete. Nunca faço. Esses dias meus fones ameaçaram quebrar e quase comprei um igual aos que eu tinha te dado. Desisti. Acho que as lembranças devem ficar na memória. Hoje foi esse filme. Tinha esse cara que queria ser escritor mas ninguém entendia seus livros. Tudo dando errado na vida dele, um sofrimento sem fim. Você nunca leu meus livros inacabados. Lembro de um vez que a gente brigou (nossa primeira briga quase-séria) e você ficou bravo porque não prestei a devida atenção no seu conto escrito na sua cafeteria preferida. Na hora achei bobagem, depois percebi que você é igual a mim. Não sabemos não ser a estrela do espetáculo. Um escritor é muito apegado à sua obra. Eu sou muito apegada às minhas histórias para que alguém não preste a devida atenção. O cara do filme tinha uns problemas de relacionamento, era ainda apegado à mulher de quem já tinha se divorciado fazia dois anos. Acho que a gente também era um pouco apegado às nossas velhas histórias. Não boto nisso a culpa do fracasso. O fracasso só acontece. Ele estava ficando careca, como você vai ficar um dia. Eu espero que você consiga publicar seus livros e que, ao contrário dele, esteja bem sucedido aos quarenta anos. Eu também espero estar. Não sei se estaremos. Pelo menos, se um de nós dois der certo, a gente pode saber um da vida do outro a distância.
Não sei muito de você. Torço pra que esteja bem. Eu ainda não estou. Larguei minha monografia de lado, pego uns trabalhos aqui e ali e me acho uma bagunça. Sou muito diferente daquilo que você conheceu nos meses em que já não estávamos muito bem. Atingi o tão querido equilíbrio. Vez ou outra ainda sei que estou apática. É assim mesmo. Às vezes a vida não tem porquê. Corro religiosamente todos os dias e ganhei um fôlego que eu não tinha. Agora corro sem pressa. Me exercito na academia ao ar-livre e tenho as pernas duras. Fiquei ruiva como você me sugeriu da última vez que nos falamos. Sempre quis ser ruiva, mas nunca dei o braço a torcer. Acho que combino assim e, vez ou outra, penso em fazer uma tatuagem. Quando falo isso lembro de você me rodopiando na cozinha dizendo "quem é que disse que nunca ia fazer uma tatuagem?". Não gosto de eternidades. Era essa a minha justificativa pra nunca selar nada no corpo. Agora queria que algumas coisas fossem eternas. É eterna a saudade dos meus avós. E um dia vai ser eterna a saudade dos meus pais. Fiquei com vontade tatuar qualquer coisa que seja que me lembre eles pra ficar eterno no corpo. Alguma coisa escrita em mim que seja deles e que vai se decompor comigo. Tenho medo do meu pai morrer jovem, antes de ter me visto ser alguma coisa na vida. A única coisa boa de não termos sido eternos pelo tempo que durasse foi que pude ficar aqui sem culpa. Cuidei dele. Estive. Restaurei a nossa relação. Tive medo do que teria sido se eu não estivesse aqui. Percebi que no mundo existem muito poucas eternidades. Eu passei o aniversário dele com você. Não me arrependo, mas depois fiquei pensando que a gente sempre acha que haverão muitos aniversários ainda por vir. Eu não sei quantos serão. Quando ele quase ficou cego tive muito medo de ter perdido o último aniversário onde ele ainda poderia me ver. Ele ainda me vê. E me chama pra tomar cafés. Como você, percebe a diferença entre os pós e os expressos e prefere sua água com gás. Vocês dois roncam alto igual. Enquanto te escrevo ouço os roncos dele e percebo que não me incomodam mais porque eles sinalizam que ele está vivo. Nada é eterno. Mas eu sou tudo o que eu tenho. Estarei comigo pela eternidade. Tudo que estiver em mim também estará. Achei que uma marca física que me lembre eles talvez faria sentido. Pensei num violão, as flores preferidas dos meus avós e a preferida da minha mãe. Nas costas. Uma versão ruiva e tatuada de mim mesma eu não sei se você imaginaria. Acho bom que estejamos em constante mudança. Você não acha?
Às vezes ouço samba sozinha e lembro que nos prometemos um samba que nunca houve. Meu avô gostava muito de tudo aquilo que a gente já ouviu junto. Acho que você ia gostar do meu avô. Ele também ia gostar de você, se te conhecesse. Eu nem sabia que você existia no planeta terra quando ele morreu. Teriam se gostado. Ele gostava muito de contar histórias, e você gosta de ouvi-las. Hoje tudo que eu tenho dele são as histórias que conto sobre ele. Lembro da vez que o seu avô ficou doente e eu estava longe. A gente brigou por nada. Era o começo do fim. Sempre achei bonito que você gostasse tanto assim dos seus avós. Continue cuidando deles e estando perto. Eles não são eternos. Mas, veja, o amor, pre existir, precisa dessa sensação de eternidade. Quando você ama alguém você sente que ela nunca vai acabar. Ela nunca vai ter que ir embora. Um dia elas tem que, mas é melhor que a gente não se lembre disso. A gente sempre lembrava que tinha que se despedir. Eu sentia que a gente ia acabar. Sua avó, se ficou sabendo de nossa horrível história, deve me achar um horror. Espero que a colcha dela permaneça intacta. Não era a minha intenção. Ela parece ser um ser adorável. Todas as avós são e nenhuma delas merece ter a colcha manchada. Ser uma bagunça nunca foi a minha intenção. Pelo menos não desse tipo de bagunça que sai destruindo tudo o que vê pela frente. Às vezes gostar não é o suficiente, sabe? É preciso um pouco mais. Eu acho que eu queria que você me salvasse. E, o paulo coelho, apesar de cafona, está certíssimo em dizer que a cura está dentro da gente. Ele deve ter dito isso em algum desses livros dele. Você gosta do paulo coelho? Eu não gosto. Nunca conversamos sobre isso. Nunca conversamos sobre várias coisas. Certas coisas só podem ser ditas quando as conversas não tem hora marcada pra acabar. As nossas tinham. Era necessário falar do que importava. E, para que o amor se construa, é necessário, vez ou outra, discutir paulo coelho.
De vez em quando penso em você quando ouço Chico ou quando percebo que não gosto mais dos textos do Caio F. Você gostava mesmo? Foi um pouco assim que a gente se conheceu. Éramos tão jovens. Quinta feira vai ter um show de um grupo independente com a ópera do malandro. Vi e pensei que você pudesse gostar. Da peça que eu vi com texto do Caio F. também. Fiquei sabendo por cima que você fez ou gosta de teatro. Acho que eu seria atriz. Acho que eu podia ser qualquer coisa. Talvez por isso tenha optado por escrever. Escrevendo a gente pode ser qualquer coisa. Escrevendo eu posso te escrever essa carta que você não vai ler. Torço para que você esteja bem. Espero que ainda te escrevam outras cartas de amor melhores que as minhas a próprio punho e que te façam a festa com brigadeiro, bolo de chocolate e chapeuzinho de festa que eu queria ter feito ano passado mas não consegui. Espero que alguém um dia também saiba que você tem um sonho secreto de ter uma festa de criança. Espero que nós dois consigamos interlocutores interessados em nossas narrativas fantásticas. Alguém ainda há de ser sua leitora mais dedicada. Alguém que muito provavelmente não vai ser eu. Espero ver seu nome em livros nas estantes da livraria onde tivemos nosso primeiro encontro. Espero que um dia tenha o meu, também. Casaram lá esses tempos, você ficou sabendo? Todo mundo achando brega e eu rindo um pouquinho porque sei que no auge de nosso encantamento nos mandaríamos links dizendo que podíamos casar nós dois lá também. A nova temporada de mulheres ricas parece que vai ser ruim. Logo-logo vem o natal e o ano novo, e chegam as semanas em que me lembro de trocar intermináveis mensagens com você. Na virada do ano nos prometemos nos conhecer. Aconteceu. Deu certo e depois deu errado, igual a tudo na vida (não é esse o nome do seu filme do woody allen preferido?).
Não sei o que o futuro nos reserva. Espero que surpresas melhores. Talvez, algum dia, eu te encontre por aí. Talvez não. Em todo caso saiba que se me ver daqui alguns anos e eu estiver de cabelos ruivos e tatuagens, não estranhe. O mundo é essa coisa em constante mutação. Espero que esteja feliz. Espero que você seja mesmo muito feliz. Hoje, como diz aquela música que ouvimos na sua casa pouco antes do desastre: me sinto mais forte, mais feliz quem-sabe, e só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei. Acho que o Almir Sater tem lá sua razão quando afirma que é preciso chuva para florir. Às vezes lembro de você em dias como hoje e penso nisso. Penso nessas coisas todas que já se foram. Hoje penso em tudo bem mais leve. A vida é feita também de tragédias. A outra face do sentimento é a tragédia, inevitavelmente. Não quero ser um daqueles escritores geniais que no fim se matam, sabe? A vida não faz nenhum sentido mas pode ser pior sem ela. É também um pouco pior sem amor. Espero que você ame de novo e eu também. Espero sempre o melhor pra nós dois. Te-quero-sempre-bem. E digo assim, com esses hífens que você sempre disse que eu não-sei-parar-de-usar e que a língua portuguesa em sua nova ortografia vem rejeitando. Te desejo o melhor. Os melhores vinhos, o melhor sexo e a melhor literatura. Se possível, os três juntos. Se possível ainda, ser feliz. Se ainda couber um pouco mais, um apartamento bem decorado e um cachorro de pelos curtos. Por você eu lembro de querer ter um cachorro e eu nunca gostei tanto-assim de cachorros. Obrigada por tudo aquilo que você um dia fez nascer em mim. De bom e de ruim. O bom me fez feliz e o ruim me fez crescer. Obrigada por ter sido comigo enquanto deu. O destino de toda história talvez seja o mesmo dos impérios romanos: a conquista, o apogeu e um declínio com tragédia. Mas sempre sobra alguma coisa de belo, como um coliseu. Espero que de mim também tenha sobrado alguma coisa bela em você. Quem sabe a gente ainda se esbarra por aí, entre umas e outras, enquanto eu tropeço nos astros (e na rua) desastrada; como um dia cantou o Caetano - e você.
Nenhum comentário:
Postar um comentário