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26.3.13

conto de silêncio para um sentimento inominável


Ela separava as roupas de maneira metódica. Por baixo as calças; depois os vestidos; em cima as camisetas enroladas em pequenos rolinhos; nas laterais uma toalha (pra não ter que ficar usando a dele); os sapatos (bem arrumados dentro de sacolas de mercado); e por último pequenas necessaires com coisas muito necessárias ao seu dia-a-dia: maquiagens, escova de dente, escova de cabelo, seu perfume novo, uma porção de bijuterias. Tomava cuidado pra escolher roupas que a sua memória ainda lembrava que ele gostava. Lembrou-se do vestido preto que ele um dia elogiou, da saia colorida, de uma camiseta que tinham comprado juntos, de uma camisa branca. Lembrou-se do óculos escuro que ele não gostava tanto assim e deixou em cima da escrivaninha. Colocou um livro na bolsa de mão, para caso de alguma eventualidade. "Sempre bom ter um livro na bolsa", pensou. Pro caso de ter que esperar ele voltar de algum lugar, pra quando ele tiver outros afazeres. Sempre bom ter um livro. Por último colocou na bolsa o computador, os cabos todos do computador, o tocador de mp3. Checou três vezes pra ver se não tinha mesmo esquecido o celular, fechou a bolsa e ficou esperando ele chegar. Ele tinha combinado que passaria de carro em sua casa e iriam passar três ou quatro dias na casa dele na cidade grande. Ela não sabia muito bem porque tinha aceitado o convite, mas achou que era coisa montada pelo destino. As curvas daquela estrada tinham cheiro de ilusão. Ilusão de quê não sabia bem. Sentia de algum jeito, numa dessas inquietações que nos vem sem mais e nem porquê, que aquela seria uma viagem meio abismática. Abismática é certamente uma palavra que não existe na língua portuguesa, mas deveria. Se há uma coisa que as relações humanas gostam de fazer é se encaminhar pro abismo. Aquela seria uma viagem abismática. Uma dessas viagens que apontam para o abismo. E ela sabia, como todos nós sabemos, que uma vez colocado em contato com o abismo só existem duas possibilidades: a morte, ou voltar pra trás. Ela sentia que, de algum modo, aquela viagem os faria retroceder tudo aquilo que tinham construído, ou os faria morrer de algum jeito trágico. Segurava a única mala com as mãos suando. Ele chegaria logo. Chegaria logo e a encararia com olhar de desde-sempre. Ela já tinha percebido que, de uns tempos pra cá, ele a olhava como um desses objetos que sempre estiveram e sempre estarão ali. Olhar de desimportância. Tinha aceitado a viagem porque queria olhar pra dentro desses olhos que a fitavam com desimportância. Queria entender dentro daqueles olhos azuis onde é que ela tinha perdido o encanto. Porque só podia ter sido isso: uma perda rápida e sem explicação do encanto que antes havia e agora não havia mais. Segurava as malas e engolia desencantamento. Sabia que ele chegaria a qualquer momento e a indagaria sobre ter esquecido alguma coisa. Era por isso que já tinha checado tudo. Ela o esperava. Na frente da casa onde tinha vivido mais da metade da sua vida segurava uma mala e aguardava por uma viagem abismática. Tinha medo que aquela fosse a última viagem. Não sabia porque tinha aceitado o convite, mas de uns tempos pra cá tinha começado a encasquetar com essas coisas de destino. Se ele havia chamado é porque havia um porquê. Talvez as curvas da estrada mandassem todo essa inquietação pra longe. Talvez o amor fosse mesmo esse carro disposto a explodir na próxima curva (se é que podiam chamar isso de amor).

Ele chegou, lhe deu um beijo morno, lhe pediu as malas. Ela lhe entregou as malas. Não queria dizer nada porque não havia nada a ser dito. Ele perguntou se ela não havia esquecido nada e ela disse que não, dessa vez não, tinha checado umas porções de vezes a mala, a bolsa, as necessaires. Depois lhe veio uma dúvida se tinha mesmo colocado as escovas de dente. Não quis dizer nada. Qualquer coisa comprava uma escova de dentes numa dessas paradas no meio da estrada, ou na farmácia logo na esquina da casa dele. Os objetos são coisas fáceis de repor. Houvesse uma loja para repor sentimentos, talvez ela tivesse cartão-fidelidade. Ficou pensando por alguns momentos o quão engraçado seria ter uma loja de repor sentimentos. Pensou sozinha que talvez fosse bom. Talvez band-aids pra alma, ou para as sucessões de mal entendidos que vão criando ferida em qualquer relacionamento que continue se segurando nas estruturas nada sólidas da vida. De quantos band-aids ele precisaria para parar de olha-la com esse olhar de quem não se encanta mais? Cinco, seis, talvez uma caixa? Vez ou outra ela percebia que ele lhe olhava com menos empolgação do que olhava pra tv quando estava passando um programa chato. Da última vez que se viram, há algum tempo atrás, ela lembra perfeitamente dos olhos dele vidrados num desses programas péssimos do domingo enquanto ela se encolhia no peito dele feito peso morto. Um peso morto encostado em um peito que não quer aquela cabeça dela ali. Talvez quisesse outra coisa. Ela sentia saudades dos domingos felizes das primeiras semanas, das urgências, da necessidade dele em permanecer sempre com um pedaço do corpo junto ao dela para que, de algum modo, estivessem sempre ligados de maneira a formarem uma coisa só durante o período que estivessem juntos. Nas últimas semanas nada disso existia e ela ficava ali, como um abajur que já não ilumina bem, ou como aquela pizza requentada que já teve a sua graça, mas agora só serve pra saciar essas fomes meio insistentes que dão na gente de madrugada. Ele trocava insistentemente as músicas do cd do carro enquanto ela via a cidade onde haviam se conhecido sumir pela janela. O primeiro beijo tinha acontecido na porta de uma sorveteria, há mais de cinco anos atrás. Não era um relacionamento linear. No começo, logo que se conheceram, haviam se encantado perdidamente um pelo outro, em um desses encantamentos inevitáveis que acontece com quase todo mundo bem mais que uma vez na vida. Ele, mais velho, já tinha ido morar na cidade grande e começado a faculdade, enquanto ela permanecia por entre as esquinas de sua cidade de interior tentando terminar o último ano do colegial. Ele parecia ter surgido pra tirar dela aquele enfado que a vida tem toda vez que começa a se enfiar em uma rotina que não traz nada de novo. Passarm juntos o mês das férias dele. Conversavam todos os dias no café do centro e quando chegavam em casa ainda se ligavam porque o assunto parecia um daqueles assuntos infinitos que tinha que continuar sem muitas interrupções, ou podia se perder. No outro mês ele voltou pra cidade grande e sentiam urgência. A internet ainda não era tudo isso que é hoje e eles se mandavam inúmeras mensagens de celular. Se ligavam a noite. Contavam os dias no calendário para a próxima visita. Até que não houveram mais visitas porque a vida tem seu caráter abismático. Ela passou no vestibular em uma outra cidade e eles decidiram que talvez o tal do destino não estivesse lá muito empolgado com essa história de amor entre os dois. Choraram umas semanas. Se ligaram por alguns meses. Aí se esqueceram, se lembraram, se lembraram sem se contar, namoraram outras pessoas, desanamoraram, se lembraram, até que no último ano se encontraram, por acaso, numa festa qualquer. Se sorriram, conversaram, se estranharam e se encantaram de novo. Ela achou que era coisa montada pelo destino. Tinha encasquetado com essas coisas de destino. Encasquetar com o destino, dizem, é coisa de quem já enjoou da vida ser assim, esse grande caos, e agora espera que os acontecimentos tenham pelo menos um pouco de sentido. A vida continua um grande caos e os acontecimentos não fazem nenhum sentido, mas é melhor não acreditar assim. Ela acreditava que o reencontro era coisa montada pelo destino. Ele acreditava que era mais uma dessas improbabilidades do grande caos do qual é formado a vida. E assim ela ia olhando pela janela até que avistou a tal sorveteria onde haviam dado o primeiro beijo.

Ela perguntou se ele ainda lembrava dali. Ele disse que sim, sem demonstrar nenhum entusiasmo maior, a não ser um sorriso desses que não são exatamente de alegria, mas que também não chegam a ser somente por educação. Depois emendou que os sorvetes dali eram bem melhores há alguns anos atrás. "As coisas mudam de um jeito que a gente não consegue acompanhar", ela respondeu enfática. "As coisas mudam", ele repetiu baixinho. Se olharam e sorriram com dentes de angústia. O tempo não lhes havia sido assim tão generoso quando deveria. Talvez o destino nem sempre montasse coisas maravilhosas. Talvez o destino às vezes só montasse coisas. Coisas deixadas ao acaso que não fazem lá muito sentido. Ele continuava a dirigir e ela cantava sem muita empolgação as poucas músicas que ele deixava tocar até o fim. Ele parecia ansioso. Dessas ansiedades que fazem a gente achar que esperar um minuto e meio para o fim de uma canção é tempo demais. Mudava as músicas em tempo recorde. Às vezes ela reclamava e dizia que daquela ela gostava, que era pra deixar. Aí ele voltava a música, meio contrariado. Pouco conversavam. Os poucos assuntos que ela puxava pareciam arrastados e então ela se explicava por longos períodos enquanto ele respondia uma frase curta. Ela e sua eloqüência se sentiam menosprezadas pelas frases curtas dele e então se calavam, ou resolviam cantarolar algumas das canções do rádio do carro. A única função dela no banco do passageiro parecia ser a de separar as moedas para o pedágio. Vez ou outra ela colocava a mão na coxa dele e ele rapidamente tirava dizendo que "essas distrações atrapalham pra dirigir na estrada e eu acho que você não quer um acidente". Ela tirava a mão da coxa dela contrariada e encarava a estrada com olhares de choro que ele não percebia. "Talvez eu quisesse sim um acidente. Quem sabe com a eminência da morte você me fala alguma coisa", ela pensou baixinho. Ele indagou o que ela tinha falado, ela disse que não tinha sido nada, ele respondeu o que respondem todas as pessoas que são respondidas com o "nada" que é dizer "você disse alguma coisa, então não pode ser nada" e ela se ateve a responder "eu não sei, você tem andado meio distante". "é que eu estou dirigindo", ele respondeu. Aí ela sabia que viria toda aquela conversa sobre como existem certas funções na vida nas quais a gente tem que se concentrar e que ela não pode querer sempre essa atenção irrestrita, essa atenção de quem é a única coisa existente no mundo porque ela não é a única coisa existente no mundo. Teve preguiça de toda a justificativa e não respondeu nada, embora tenha pensado em dizer "imagino que a sua vida seja uma grande estrada, nesse caso, e que você tenha que dirigir o tempo todo". Não disse nada. Comia um pacotinho de balas de goma e fazia questão de devorar todas as gomas vermelhas e amarelas e deixar somente as verdes, que ela sabia ser as que ele menos gostava. Tinha esse tipo de vingança infantil, embora ele também não fosse assim tão adulto. Em uma de suas últimas brigas ele resolveu cortar contato por três dias inteiros e ficar sem atender telefonemas ou responder mensagens simplesmente porque ela deveria aprender que certos comportamentos não são toleráveis. Ela respondeu essa malcriação dizendo que não conversar sobre os problemas também não é exatamente um comportamento tolerável depois  que se passa dos quinze anos, e com isso acabou por aumentar ainda mais a distância que já havia entre os dois. 

Era por causa dessa tal distância que ela não entendia o porquê da viagem. Tinham passado semanas sem se falar direito. As conversas todas pareciam de um esforço imenso. Os assuntos não fluíam, ele não parecia interessado, ela já havia se desencantado com a falta de interesse e passava dias olhando pro celular dizendo pra si mesma que não deveria tentar contato algum porque isso era um jeito de postergar o sofrimento, e os sofrimentos, depois de uma certa idade, não devem ser postergados. Dias depois ele liga dizendo que ia estar na cidade e pergunta se ela não quer passar os últimos três dias das férias na casa dele na capital. Primeiro ela pensou em recusar, porque não tinha nada a ver com os surtos dele de solidão. Depois achou melhor aceitar e achou que era coisa montada pelo destino (ela tinha encasquetado com essa coisa de destino). Quando se viu ali, perdida no banco de passageiro encarando com dificuldade a distância que se formava entre eles, achou que teria sido melhor não ter aceitado nada. Ela se sentia como quem quebra um vaso e tenta colar todos os pedaços com cola, só que sem muito sucesso. Era possível ver as imensas rachaduras que já tinham se formado naquela história que formava anos. Alguma coisa ainda continuava. Ela não sabia dizer o que era, nem tampouco ele. Só sabiam que alguma coisa ainda restava, de vez em quando. De vez em quando ainda se olhavam e se sorriam e aí lembravam um pouco aquele casal de cinco anos atrás. Por vezes se enfiavam em longas conversas sobre os mais diversos assuntos e, dessa maneira, se achavam os dois seres humanos mais bem conectados da face da terra. Depois acabavam por cair na mesmice. Ela olhava fixamente para um ponto qualquer no quarto enquanto ele parecia se interessar sempre pelas coisas que não eram ela. Por vezes era o trabalho, depois os amigos; de vez em quando ele arranjava passatempos estranhos dos quais nunca havia gostado e se dedicava a eles com afinco. Ela continuava com a sua vida, porque às vezes a vida não nos dá muita escolha a não ser a de continuar, e tentava se distrair com qualquer outra coisa que não fosse esse imenso abismo que se formava entre os dois. Era um abismo que dava pra pegar com a ponta dos dedos. O abismo se sentia no ar. Era um abismo que dava pra respirar. A respiração dela ao andar angustiada pelas ruas da cidade onde se conheceram era respiração de ar de abismo. Respirar o ar do abismo é como respirar angústia. Aquela era sim uma viagem abismática. No começo ela achou que não, que podia ser que ao entrar no carro uma espécie de sintonia tomasse conta dos dois e aquela fosse a viagem de suas vidas. Não foi. Cada quilômetro de silêncio era uma pontada no coração. Nela se juntava um emaranhado de coisas pra dizer. Coisas que não se pode dizer assim, despretensiosamente. São coisas dessas que vem da alma. A vida às vezes é inundada de verdades e as verdades são umas coisas tão brutas que quase se pode pegar com a mão. Não se pode jogar as verdades assim, no meio de uma viagem que parece apontar pro abismo. As verdades só são ditas no conforto da intimidade ou no limite da morte. Ela sabia que diria tudo aquilo que não sabia como dizer quando percebesse que ele havia mesmo se perdido dela. Antes disso se atinha a comer todas as gomas que ele gostava e lhes deixar somente as verdes. As grandes feridas da vida começam nos pequenos descuidos. 

Andaram mais alguns quilômetros, ele perguntou se ela sentia fome e ela respondeu que não. "Tinha pensado em não parar pra comer, assim a gente não perde tanto tempo, são só duas horas de viagem", ele completou. Ela disse que não tinha problema algum, que tinha uns salgadinhos na bolsa e que era até melhor não parar mesmo. "Você nunca tem muito tempo a perder, não é mesmo?" ela lhe disse com um tom meio triste. Ele respondeu com um olhar de desde-sempre. Continuaram a viagem. Uma hora se passou e ele continuava mudando as músicas do rádio com certa violência. Ela já tinha desistido de mandar voltar e ouvia seu próprio mp3. Pensava na vida, olhava as paisagens da estrada. Sentia uma certa paz quando andava na estrada. A paz de não pertencer a lugar nenhum. Às vezes parava os olhos nele que parecia não enxergar mais nada além do caminho que percorria. Ela se sentia como coisa invisível. Ficava encolhida no banco do passageiro cantarolando baixinho umas canções e se perguntava o que é que ela tinha ido fazer ali, naquele carro, com aquele homem que parecia deslocado do mundo e, senão do mundo, ao menos muito deslocado dela. Onde é que tinha acontecido o acidente que lhes matou? Ela não sabia a resposta. Talvez não tivesse havido ainda um acidente grave, e nem uma morte, mas que alguma coisa havia, havia. Vez ou outra ela pensava que só podia ser caso de ter se apaixonado por outra mulher. E se fosse, quem seria? Teria essa mulher menos defeitos? Moraria essa mulher mais perto, de um jeito em que se ele se sentisse sozinho ele poderia ligar pra ela e ela lhe acolheria no meio da noite com braços quentes? Estaria ele planejando um outro futuro onde ela não estaria mais inclusa e ela só seria informada disso tudo quando fosse tarde demais pra sair disso tudo sem cair num abismo e morrer? Preferia não pensar. Esses pensamentos são daqueles que começam pequenos e depois invadem a casa, roubam toda a sua paz e te tiram o sono. Há coisas que é melhor não antever. Da janela do carro já vislumbrava o trânsito pesado da cidade que não era sua, mas era a cidade dele. Ele colocou a mão no ombro dela e disse sorrindo "acho que chegamos". Nessas pequenas horas doces ela quase acreditava que o problema dele era mesmo a estrada, o trânsito, o trabalho e que ela continuava sendo alguma coisa importante que ele fazia questão de guardar, mesmo sabendo que essa coisa importante lhe exigia mais trabalho que ele gostaria de ter. Chegaram. Ele segurava todas as malas e ela segurava o travesseiro como uma espécie de escudo. A casa dele era uma dessas casas pequenas onde moram duas pessoas que dividem o aluguel porque custa caro morar em grande cidades. Tinha uma cozinha, uma sala, dois quartos e um banheiro. O quarto dele não era grande nem pequeno. Tinha um armário, uma cama e uma mesa onde ficava o computador. Na parede, as fotos que um dia foram dela, davam lugar a fotos quaisquer de gente quaisquer. Dentro de uma das gavetas ele guardava as cartas e os bilhetes que tinham trocado nos últimos cinco anos. Às vezes ela se sentia aquilo. Nada mais que uma gaveta fechada na vida dele. Ele parecia não ver nada com essa fatalidade que ela via. Pra ele a vida era um emaranhado de aleatoriedades e ela era mais um deles. Só que ela era uma dessas aleatoriedades que, de quando em vez, pareciam fazer algum sentido a mais. Algo como se a malha do universo tivesse tido um erro e grudado aquele acontecimento como uma espécie de acontecimento chave. Ao mesmo tempo que fazia parte do caos os reencontros, podia também ser coisa montada pelo destino. Mas ele não acreditava em destino. Ela também não, mas de uns tempos pra cá tinha encasquetado. 

Ele sentou na mesa, ela perguntou se ele não queria um café. Ele disse que aceitava, e indagou se ela mesmo fazia. "Sim, faço, tenho feito muito café pra me manter acordada na vida". Ele riu da mesa dizendo "Acho que só assim, mesmo". Ela passava o café e respirava ar de abismo. Se sentia presa dentro daquelas paredes brancas que nunca tinham soado como um lugar que pertencia a ela. Parecia um lugar que pertencia a todo mundo, onde ela não tinha espaço e nem conseguia pegar com naturalidade as coisas pra fazer um simples café. Disfarçava bem, entretanto. Sabia onde ficavam as coisas, devolvia no lugar com certa destreza. Disfarçava o medo do desconhecido. Passava o café e tinha vontade de chorar. O desconhecido dói. As grandes decepções da vida começam nos pequenos descuidos. Colocou o café na garrafa, serviu as xícaras, botou uma cadeira do lado dele na mesa, serviu o café, tomou um gole e encostou a cabeça no ombro dele. Queria dizer muitas coisas, mas a distância parecia embaralhar as palavras e, se ela dissesse alguma coisa, tudo soaria um idioma estranho que nem ele e nem ela conseguiriam decifrar. Era tudo silêncio. As paredes brancas do apartamento pequeno ecoavam o silêncio. Os vizinhos logo bateriam na porta reclamando do imenso barulho que o silêncio fazia. Pôs-se a chorar. O choro é tudo que não se consegue dizer traduzido em coisa palpável. Molhava com lágrimas a camiseta branca dele e ele a olhava com olhar de susto. Ela não dizia nada. Só chorava e quanto mais chorava mais se aninhava naquele ombro que já não parecia assim tão aconchegante. Abraçava ele cada vez mais forte e chorava mais doído. Ele não dizia nada. Só deixava ela ficar. De uma hora pra outra achou monte de palavras e desandou a falar  "é que eu não agüento mais. isso, você, isso. você. você…a gente, você, isso…quantos anos de casados nós fizemos? trinta, vinte e sete, sessenta? isso… você, sabe, isso tudo… a gente, essa casa… a viagem a viagem… elas, sei lá quem são elas….você, você, isso… há quanto tempo você me desama em segredo? duas, três semanas? há quanto tempo isso, você, a gente… a gente… a gente, você que não fala comigo eu que não sei nada… sabe, você, sempre isso, você… há quanto tempo isso? por que você não me diz mais nada, nunca? sempre isso, a gente… você, a distância. o silêncio, esse teu silêncio imenso. eu quero matar esse teu silêncio… quantos anos tem esse silêncio? me diz qualquer coisa…sabe? você, não esse silêncio, me manda embora me xinga me diz que ama outra… dez delas…não sei… esse silêncio, não quero esse silêncio…fala. isso, é essa a palavra: fala". Ele não dizia nada. Olhava estático pros olhos vermelhos e pro nariz inchado dela que ficava um pouco feia quando chorava, embora trouxesse em si um pouco de um desses bichinhos que dá vontade de cuidar. Mas amor não tem a ver com pena, não se pode amar ninguém com o mesmo sentimento que se ama um cachorrinho que se perdeu da mãe. Também não era isso que ele sentia por ela, embora fosse um pouco. Ele sabia que havia alguma coisa nela só que não sabia explicar o que era. Por isso o silêncio. Um silêncio de não saber. As lágrimas caiam e ela repetia baixinho "fala… você, a gente… fala". Ele não falava. Segurava com força as mãos pequeninas e suadas dela enquanto ela suplicava que ele falasse. O silêncio tomava conta do apartamento todo. Tinha sido uma viagem abismática. E quando se está a beira do abismo todos sabem que só existe dois caminhos possíveis: ou se pula e morre, ou se volta pra trás e se tenta outro caminho. Ele olhava ela fundo nos olhos e as palavras não saiam. De repente ele puxa ela pelo braço, chacoalha e finalmente diz. As palavras saiam como se tivessem tirando dele farpas que já doíam há muito tempo. "Eu não sei… de você, da gente… de tudo isso. a gente, essa casa, essa viagem… de você eu não sei. de você eu nunca sei e é por isso que você acaba sempre estando aqui de novo. essa casa, essas paredes, a gente, cinco anos. não sei. tem que saber? tem que saber tudo? eu não sei o que te dizer e aí fico em silêncio. não é essa a causa de todo o silêncio? o medo do desconhecido? de você eu não sei. tem que saber?". Ela não sabia se tinha que saber. Saber o quê exatamente? Exatamente o que ela esperava ouvir? Ela também não sabia. "Não sei se tem que saber", ela respondeu. "mas do que tem que saber a gente sabe… você, a gente… existe qualquer coisa…você aqui, eu te convidei, eu te busquei em casa". Ela olhava pra ele tentando compreender. Compreendia, mas tinha medo. Medo das coisas sem nome. Certamente haveria de ter uma palavra inventada pra esse sentimento que é e não é. É, porque existe. Não é porque não se sabe por quanto tempo nem o que é exatamente. Gostar parece pouco, amor parece demais, atração não contemplava o que existia de sublime. Não tem nome. Era isso. O que existia não tinha nome. Certamente haveria de ter uma palavra inventada para esse sentimento que é e que não é. E o que era?

Era isso. Ela pensava em dizer tudo aquilo, mas dizer tudo aquilo e calar tudo aquilo parecia ser mais ou menos a mesma coisa. Tudo aquilo, isso. Isso que é gostar de estar com ele e gostar também do jeito torto com o qual ele fica em silêncio. Odiar tudo nele. Odiar todos os cinco anos e ao mesmo tempo isso de querer estar junto a aceitar uma viagem. Não querer mais existir se a existência contemplar existir com ele na vida e então decidir tirar ele da vida. Voltar atrás e colocar ele na vida depois de uma conversa de encantamento. Se sentirem, ela e sua eloqüência, maltratadas pelos períodos curtos dele. Ficar se perguntando baixinho enquanto ele dirige "e a gente? o que é a gente, afinal?". Saber que não vai haver resposta pro silêncio e nem pra distância. Suspirar ar de abismo quando ele se distancia e saber que o próximo passo pode ser a morte deles dois. Continuar respirando ar rarefeito mesmo assim e dar dois passos pra trás prometendo tentar de novo. Tentar de novo e se perguntar se haverá um dia em que tudo isso, a gente… você, a distância, esse teu silêncio imenso serão alguma coisa a mais que isso que já existe. Se perguntar se precisa mesmo de mais do que isso que já existe. Cinco anos. Um primeiro beijo na sorveteria. Nos encantamos, desencantamos, apaixonamos, desapaixonamos e quisemos quase casar com outras pessoas mas daí isso, de volta, isso… a gente. Existe qualquer coisa. Qualquer coisa nela que é irritante e horrível e diz essas coisas espaçadas e lhe deixa só as gomas verdes numa infantilidade que não tem nem nome, mas depois é isso que sempre foi. Qualquer coisa dessas que é ela e ela é o que existe. Ela é o que ele deixa em silêncio. Ele é o que ela exacerba em falar. Certamente há de haver uma palavra inventada pra esse sentimento que é e que não é. Certamente, mesmo não havendo palavra alguma, existe o sentimento. Certamente se há uma coisa que as relações humanas gostam de fazer é se encaminhar pro abismo. Todos nós sabemos, que quando se chega no abismo só existem duas possibilidades: ou se morre, ou se volta pra trás. Deram eles dois passos pra trás e ficaram ali. Certamente ainda sofrerão de silêncio e grito desse sentimento que carece de palavra inventada pra se nomear, mas não carece de nada pra existir. Existe. Existe e inunda o apartamento de paredes brancas esse sentimento sem-nome toda vez que eles sorriem juntos por alguma bobagem; se beijam com alguma paixão; agem em sincronia invejável; versam animadamente sobre assuntos que amam; se admiram em silêncio. Talvez, um dia, não exista nenhuma outra solução a não ser pular o abismo que mata. Ela pensava isso. Talvez o silêncio dele ainda mate, já esteja matando. Talvez ela e a eloqüência dela resolvam pular antes mesmo de saber qualquer coisa de concreto. Talvez, no fim, se deva acreditar que estão os dois presos em uma dessas improbabilidades do caos da vida que não fazem nenhum sentido. Talvez se deva acreditar que isso, no fim, é coisa montada pelo destino. Ninguém acredita muito em destino, mas uma hora ou outra a gente acaba encasquetando. 

23.3.13

você nunca vai ser uma canção de amor clichê


"This one's optimistic
This one went to market
This one just came out of the swamp
This one dropped a payload
Fodder for the animals
Living on animal farm"
(Radiohead - Optimistic)


"I told you I was trouble, you know that I'm no good" cantava Amy Winehouse pela vigésima vez, trigésima vez, sabe-se lá que número de vez que foi que eu ouvi essa música e pensei baixinho "ela podia ter escrito essa letra pra mim". Em tempos espaçados sempre penso isso dessa letra e sinto um pouco de pena pela Amy que aparecia em todos os vídeos que eu vi com um semblante cansado de quem suspirava aquele suspiro que dá uma pontadinha dentro do coração que vive latejando um pouquinho. Um pouco de pena de mim, porque não é uma letra pra se orgulhar. Gostaria de ser mais essas pessoas que se identificam com alguma letra de alguma banda tipo o Snow Patrol, que tem um monte de letras positivas. Eu tenho uma amiga que gosta muito do Snow Patrol e toda vez que a gente fica angustiado ela não entende e fica olhando pra gente como se a gente fosse uma espécie de ET. Não acho que ela seja completamente feliz (ninguém é), mas eu posso garantir que ele nunca entendeu o semblante cansado da Amy Winehouse nos vídeos. Melhor pra ela que gostava muito daquele clipe em que luzes coloridas iam percorrendo a cidade e a grande mensagem era que tudo aquilo era estranho e falso, mas que o eu-lírico não desperdiçaria mais um minuto sem seu amor. Queria ser dessas pessoas que acreditam em conceitos flutuantes tipo "alma" e que realmente acham que existe um lugar escuro onde gente boa e que ama não deve ficar então eles se pegam pelas mãos e saem correndo enquanto um diz pro outro que é só esse outro abrir os olhos porque ele não vai desperdiçar mais um minuto sem ela, ou ele. Nunca gostei dessa música, achava cafona, mas ela gostava. De uma maneira geral, ela é muito menos angustiada que eu. É que ela lida com a vida desse jeito otimista de quem não vai desperdiçar mais nem um minuto sem a pessoa amada e coisa assim. Esse otimismo de quem quer sair desse lugar escuro e encontrar a luz, a paz, sabe-se lá o que, mas é uma fé. Já eu escutava Radiohead enquanto ela insistia com Snow Patrol, entendo todos os olhares enfadonhos de Amy Winehouse e às vezes concordo com ela que o amor é um jogo em que só se perde. Um dos personagens do woody allen alerta uma vez uma das moças do filme que ele tem uma visão de vida muito pessimista. A vida não faz um caminho de luzes coloridas pela cidade pra pessoas como a gente. Life is a losing game. 

Os dias não tem sido fáceis, eu digo, repito, depois choro no meu quarto por quase quinze minutos ininterruptos enquanto ouço uma música qualquer dessas bem dramáticas cantadas por alguém meio fodido tipo a Elis Regina. A Elis Regina também tem esses olhares enfadonhos de quem já sofreu demais e não agüenta mais os baques da vida. Dia desses vi ela rodopiando e chorando ao som de "travessia" e chorei também porque bem que podia ser eu ali, rodopiando e chorando ao cantar aquela canção; sem rumo na vida. Eu não tenho rumo na vida. Os pouquinhos que eu tinha tem dado errado. Às vezes eu fico querendo ser uma pessoa mais positiva, dessas que dedicam Snow Patrol pros outros, mas daí percebo que eu só posso ser eu e lidar com isso que me deram. A alma esquisita de quem já teve o semblante triste de uma cantora que morreu de overdose. Não é auto comiseração, eu não espero que sintam pena de mim ou que me mandem uma mensagem de otimismo débil, ou nada disso. Às vezes as pessoas até mandam. Dia desses me deparei com o discurso do Steve Jobs em Stanford. No vídeo ele diz que também esteve perdido, mas que certas coisas acontecem no caminho da gente pra nos levar pro caminho certo. Fico querendo acreditar nisso, nele, em qualquer música com mensagem de amor, no Paulo Coelho, em qualquer coisa que me faça acreditar que a vida não é uma viagem rumo a lugar nenhum e com um sentido que na verdade não existe. Eu queria acreditar no Steve Jobs e pensar que um dia vou ser eu fazendo discurso pra uma turma qualquer dessas de faculdade dizendo que eu comecei bem errado, mas que no fim deu tudo certo. No fim dá tudo certo? Não sei dizer, e nem sei se acredito. Talvez todos eles estejam certos em me dizer que eu devo ir com calma e que o tempo cura as feridas e se responsabiliza pelas coisas que eu não sei consertar. Não adianta sair por aí se atropelando, mandando mensagens demais, usando toda a sua eloqüência pra coisas que não valem a pena. O que se deve fazer é sentar, respirar, esperar que a vida lhe mostre um caminho que valha a pena seguir, e dizem que esse caminho um dia chega para todos nós. Em alguns bem cedo, em outros mais tarde, mas sempre chega. 

Então eu sento na sacada, rezo pra um deus que não sei se há, choro um pouco olhando pro céu, corro sete quilômetros por dia enquanto a minha cabeça não para de girar nem um minuto. Espero mensagens que nunca vem e então deixo de esperar. Fico quieta. Fico quieta dentro de mim que é pra ver se eu encontro alguma paz, fé, direção, vai saber. Organizo todas as coisas da minha casa na esperança que eu organize a minha cabeça também. Lavo as louças e coloco em pilhas. Limpo os meus óculos toda vez que percebo um embaçado. Organizo meus livros. Jogo tetris. Ando a cidade inteira, pinto meu cabelo, arrumo as minhas unhas, organizo a bagunça do meu quarto. Começo a perceber que todas as coisas fora do lugar refletem a bagunça dentro de mim. Olho pro meu armário cheio de roupas e quero organizar tudo. Jogo fora os papéis das minhas gavetas e encontro declarações de amor que nunca enviei pra pessoas que não sei se um dia vou ver. Faço listas dos livros que ainda não terminei de ler porque todas as coisas em aberto de repente me dão paura. Percebo os livros do melhor amigo que não tenho mais na estante e choro um pouco. Olho pra todas as tralhas e para os pedaços de passado jogados no meu quarto e fico pensando quando é que esse tal de nova vida começa e quando é que ela para de retornar sempre no mesmo ponto cego. Jogo no lixo os sonhos que tinha e não tenho mais. Não vou prestar um outro vestibular pra jornalismo. Não me interesso pelas coisas que me interessava antes. Não visto mais as roupas que um dia já achei bonitas. Pareço querer tirar tudo de velho que há em mim pra conseguir sair do buraco onde me enfiei. Fico ajeitando a postura quando me vejo nos reflexos dos vidros dos carros e percebo que eu não preciso ser sempre esse bichinho estranho, essa esquisita bonitinha de ver de longe. Organizo minhas bijuterias porque não agüento mais o meu desleixo de sair sem os anéis nos dedos. Prometo pra mim mesma não perder sempre os pares dos brincos e voltar os sapatos no lugar toda a vez que uso. Faço metas. Desisto das metas porque não sei se as quero. Deixo pra mais tarde um fluoxograma com todas as coisas que já pensei em fazer pra separar o que eu realmente quero e aí sim correr atrás. Me policio pra cuidar de mim, sempre, de mim primeiro e não dos outros. Aprendo alemão com alguma devoção. Me esforço em aulas de francês quase diárias. Ocupo meu tempo pra não pensar em bobagem. Fico em silêncio e o silêncio me dói. O silêncio me faz ter aquele suspiro que arde o coração. Vez ou outra sei que fico com o olhar perdido que a Amy tem quando faz shows. O olhar de quem não sabe o que está fazendo nesse mundo, mas tem um papel a cumprir. Eu não sei o que quero e nenhuma pessoa que já encontrou o seu caminho pode me entender. Força de vontade é um conceito muito abstrato quando você não sabe o que é que te faria ter vontade de levantar da cama. O que eu realmente quero fazer da vida? As perguntas continuam sem resposta e cada caminho abre várias bifurcações e tudo isso forma em mim uma dúvida tão imensa que seria capaz de ocupar todo meu apartamento de vários metros quadrados. E ocupa. E toda a casa fica pequena e claustrofíbica. E eu não sei onde me esconder de tudo isso. E aí eu sento e choro e fico esperando que o universo ou seja lá quem me apareça com uma solução qualquer, um caminho qualquer a seguir, um afago, três minutos de conversa ouvindo mesmo o que eu tenho a dizer. Antes mesmo de alguém ouvir eu fico quieta. 

Optei pelo silêncio porque as palavras estavam me criando ruído. Porque cada frase me exigia um pedido de desculpas. Resolvi ficar quieta porque ninguém pode organizar a minha bagunça ou jogar tetris com a minha confusão. Fiquei quieta num silêncio tão imenso que era possível ouvir cada pedacinho de pensamento meu. Tenho uma cabeça que nunca para e um coração que só sabe sentir medo. Ninguém segura na minha mão e eu não posso colocar o pé em nada firme. Me sinto naquelas provas daqueles programas da tarde antigos em que a gente tinha que escolher o próximo quadradinho pra pisar sem saber se ele era firme ou afundava. Algumas das coisas eu tenho certeza que posso pisar. Outras estou quase certa que se eu pular, afunda. Ando pela minha cidade e não reconheço, não sei o que faço aqui, não tiveram a decência de preservar nem os lugares onde eu tinha boas memórias. Porque vez ou outra a gente se alimenta de lembranças. Roubaram, além de tudo, as minhas pobres lembranças. Eu não me sinto em casa e me sinto mal. Mal porque da última vez que me senti assim o mundo caiu na minha cabeça. Eu escolhi pular no quadradinho que afundava. Não posso afundar mais uma vez e então decido cuidar de mim. Me afasto de tudo e fico arrumando gavetas, arrumando armários, aprendendo idiomas, correndo da minha confusão por seis quilômetros ininterruptos. Me afasto de tudo a procura de um caminho que eu não sei qual é, mas faço de pouco em pouco. Me afasto sem querer me afastar e todo o silêncio me dói feito pontada. Se eu não me aproximo é de medo. Se eu não me aproximo é de cansaço. Cansaço do silêncio que é sempre mais forte que a palavra. Cansaço da distância. Cansaço de tudo isso que eu sinto e que eu não posso falar, não posso, nunca posso nada porque eu devi agir de maneira adulta. Os adultos jogam jogos estúpidos e as crianças é que são sinceras. A gente vive num balé, num esconde-esconde de sentimento e palavra, num tetris medonho de organizar a vida pra ver o que vai somar mais pontos no final. Todo esse labirinto me machuca e se eu fico quieta é porque eu não quero entrar mais fundo. Quanto mais fundo se entra num labirinto, mais longe se fica da porta de saída. Eu já fui demais. Não sei como eu volto disso tudo. Eu fico quieta na ponta da minha cama e guardo todas as expectativas numa caixa que eu não sei se vai pro lixo ou se fica guardada no fundo do armário. Guardo tudo que espero numa daquelas caixas no sótão sem saber se elas vão mofar ou se um dia eu mexo nelas de novo, revivo, reciclo, encontro sentido. Por enquanto não encontro sentido. Eu também estou guardada numa caixa daquelas pra-quem-sabe-se. Não sei se vão me achar daqui há um mês, um ano, se vão achar que eu ainda sirvo ou se vão me jogar pra fora. 

Todas as incertezas da minha vida machucam. As que cabem a mim eu dou um jeito. Com as que não cabem mais eu resolvi não mexer. Às vezes fico querendo sair feito criança que não sabe mentir falando todas as verdades do mundo, todas aquelas certezas, as poucas certezas que eu sei que eu tenho. Explicar tudo isso que eu sinto pra ver se de uma vez por todas eu sou entendida, pra ver se de uma vez por todas esse silêncio e esse indiferença se transformam em algum desses sentimentos que arrebatam, nem que seja raiva. Raiva é melhor que silêncio. Vida acontecendo é melhor que stand-by. Eu suspiro baixinho e sinto pontada no coração. Tudo em mim tão bagunçado que eu quero organizar tudo e quase esqueço que tem coisa que não sabe a mim. Já não acredito no caráter fatalista da vida. A vida é isso que a gente vê. Sem surpresas mágicas, sem encontros inevitáveis, sem tanta poesia. A vida é crua e as distâncias somam a gente pra menos. As distâncias somam a gente tão pra menos que a gente some. Vejo tudo sumindo e me calo numa espécie de retiro espiritual que serve muito pouco pra mim. Se me calo é pra não criar atrito. Me calo e passo as madrugadas no escuro enquanto vejo a amy segurar um copo de whisky e olhar a vida com cara de enfado. Entendo o olhar. Reproduzo o mesmo olhar do lado de cá da tela. Não quero acabar como a Amy e sei que não vou. Continuo a minha vida com a fúria dos que querem sobreviver. É o único e o pior caminho que se tem a seguir: continuar. Sigo sem otimismo algum, mas sigo. Já entendi que o mundo é estranho e falso, e que eu desperdiçarei inúmeros minutos sem você. Eu já não espero que ninguém tenha o papel de me tirar da escuridão. O mundo é mesmo escuro, o tempo todo escuro. Assim como woody allen, eu tenho uma visão muito pessimista da vida. E é a única visão que eu sei ter. Talvez fosse mais fácil ser uma dessas pessoas que quando a gente fala de angústia nos olham estranho. Talvez fosse mais fácil sair sorrindo em todas as fotos. Talvez fosse mais fácil ser qualquer outra mas daí eu escolhi ser a melhor versão de mim mesma e entendi que - felizmente - essa é a melhor coisa que eu posso ser. Aceitei de uma vez por todas que eu nunca vou conseguir (nem querer) ser uma canção otimista. Eu não gosto dos clichês (e eu sempre preferi Radiohead). 

20.3.13

do encontro e da despedida


Entro no aeroporto atrasada. Sempre atraso. Nunca sei onde deixei minhas chaves e checo a mala umas sete vezes pra ver se não esqueci nada. Mesmo assim esqueço. Vez ou outra viajo sem pijama ou sem escovas de dente. Nada grave. Sempre dá pra comprar outro pijama ou outra escova de dentes em qualquer lugar do mundo. Ao chegar no táxi sempre digo pro taxista se apressar um pouco enquanto reviro a minha bolsa pra me certificar que não esqueci a identidade. Se eu esquecer tem que pedir pro mesmo taxista que apressei dar a volta e me esperar buscar os documentos. Nunca esqueço os documentos, exceto em ocasiões importantes. Quando lembro de checar sempre estão lá, quando tenho certeza que estão os esqueci em casa. Metáfora pra vida. O que a gente não esperava está, o que a gente jurou ser pra sempre vai embora. Besteira. O taxista corre um pouco, eu pago e deixo o troco com ele. Entro no aeroporto atrasada. Sempre atraso. Entrego pra moça do balcão meu check in feito na internet e só despacho as bagagens. A moça da companhia me avisa com uma voz mecânica que vai anotar que os pés da minha mala já vieram quebrados. "Pra evitar problemas posteriores", ela diz. Eu assino o papel. Rio enquanto penso que todos nós deveríamos avisar onde já viemos quebrados para "evitar problemas posteriores". Despenso. "Os relacionamentos não são contratos, os relacionamentos tem de vir da vontade de estar junto". Sei lá quem me disse isso, mas lembrei. Bobagem. Pego a minha mochila e entro na sala de embarque. Minhas botas não passam no detector de metais. Nunca passam. Não uso tênis porque as botas pesariam demais na mala. A moça da companhia com sua roupa impecável me oferece um desses protetores de pé. Digo que não precisa. Ela diz que vai sujar minhas meias. Aceito "para evitar problemas posteriores". Coloco a bota de volta. Aproximadamente quarenta minutos esperando por um vôo que vai durar uma hora. Não gosto de aeroportos. Nem de aviões. Ele não me liga pra perguntar que horas eu vou chegar ou se eu vou mesmo. Não que eu esperasse. Ninguém me liga. Já tinha deixado todo mundo de sobreaviso "eu pego um táxi, um ônibus, eu sei me virar". Todo mundo acha que eu sei mesmo porque meu celular não apita. Evito tirar o computador da bolsa. Não quero saber de ninguém. Fico trinta minutos observando o moço que ronca na cadeira a minha frente. Acho que pegaremos o mesmo vôo. Ele é bonito daquele jeito exótico das pessoas que tem um mundo a parte e não fazem a mínima questão de que alguém entenda o universo delas. Gosto de gente assim, complicada. Ele ronca alto e a sala de espera toda vez ou outra olha pra ele. A moça anuncia o meu vôo. Não sei se é o vôo do moço. Cutuco ele e digo o número do vôo. Ele me agradece meio rabugento e coloca a mochila nas costas. "É meu vôo sim, valeu aí". "Valeu aí". As pessoas tem jeitos cada vez mais estúpidos de dizer "Obrigada".

Subo as escadas. Odeio as escadas do avião tanto quanto odeio o avião em si. Escadas mal projetadas e uma sensação louca de que cairemos todos estatelados com a escada que vai despencar. Sempre tropeço. Sempre tem um casal de senhores atrás de mim que me olha com reprovação. Acho meu assento na janela, não tiro os óculos escuros por nada desse mundo e fecho a janelinha no momento em que entro no avião. Não gosto de ver o avião subir, é uma coisa que eu tenho. Se eu morrer eu não quero ver o avião caindo. Morro de medo de decolagens. Não gosto do percurso e também tenho medo quando pousa. Não gosto de aviões. Uma hora inteira dentro de um negócio que voa e da onde a gente não pode sair. Uma hora inteira flutuando no ar de maneira inexplicável. Compro sempre os assentos no fundo do avião, mas longe da asa. Não gosto de gente do meu lado e pouca gente gosta de sentar no fundo. Só que o avião quase sempre lota e sempre tem alguém sentado do meu lado. Eu sinto muito medo e não gosto que me perguntem se eu estou bem, nem que se ofereçam pra pegar na minha mão. Uma vez um cara se ofereceu. Segurei a mão dele até o avião subir. Depois sei lá, não conseguia olhar pra ele por nada nesse mundo. Acho segurar a mão íntimo demais pra desconhecidos. Ele falava comigo e eu não respondia quase nada. Sei lá se era bonito, mas qual é o sentido de se começar um romance no avião? Eu ia descer e ele continuaria indo pra sei lá onde. De amores que se vão já me basta os que tenho em terra firme. Acho que disse isso pra ele "gente que vai embora já tenho bastante lá embaixo". Depois disso ele não me disse mais nada. Só segurou a minha mão na hora da aterrissagem. Eu disse que não precisava, mas ele disse que era um bom jeito de terminar a história. Acho que era mesmo. Os amores que eu tenho lá embaixo nem sempre seguram a minha mão quando eu tenho medo de cair. Nem perguntam se eu cheguei viva, aliás. Olha aí, desliguei o celular e nem um sms. Gosto de botar a culpa da falta de comunicação no sinal da operadora. A verdade é que essas operadoras de sinal ruim nos deram uma justificativa pra frustração. A gente sempre pode se enganar achando que vinha sim uma ligação um sms, mas eles não chegaram a ser completados. Bobagem. A verdade é que a pessoa em questão deve é estar muito ocupada fazendo outras coisas ou "cuidando da própria vida". Cuidar da própria vida é uma coisa que todos fazem e parece ser a grande e importante ocupação de todos os seres-humanos contemporâneos. "Não tenho tempo pra você porque tenho que cuidar da minha vida". Um dia eu tive uma crise de riso quando um cara me disse isso e ele me perguntou porquê. Aí eu respondi calmamente "Com essa frase eu pego a minha mochila e vou embora da sua casa pra nunca mais". Ele ficou me olhando perplexo dizendo que já tinha pedido a pizza. Eu respondi que se eu fizesse parte da vida dele, cuidar da própria vida contemplaria cuidar de mim também. Ele me olhou indo embora e perguntou "calma, você tá indo embora mesmo?" aí eu disse que sim, que assim ele ia ter tempo pra "cuidar da própria vida". Hoje a vida dele incluí uma noiva que, é claro, não sou eu porque ninguém gosta tanto assim de namorar pessoas que tem medo de avião, de cair, de angústias e, principalmente, medo de cuidar dessa tal de "'própria vida". 

Já estava comemorando o banco vazio quando o moço que roncava checa a passagem e percebe que comprou um assento do meu lado. "Acho que meu lugar é aqui". Não sei o que ele esperava que eu respondesse, mas eu disse "Deve ser". "29A o seu, não?", ele perguntou inquisidor. "Sim, 29A o meu e o seu deve ser 29B, certo?" "Sim, eu sento do seu lado, então". "Pois é", eu respondi. Ia responder o que? "Seja bem vindo ao seu assento?". Toda aquela conversa já não fazia nenhum sentido pra começo de conversa. Ele sentou, tirou um livro da bolsa e me indagou sobre a janela fechada. "Você não abre a janela?". Eu achei um pouco de intromissão demais, mas respondi que não, que detesto decolagens. Aí ele me perguntou se eu tinha muito medo de avião. Eu respondi que não exatamente, mas que não gosto da sensação. "E medo de morrer, você tem?". Queria olhar pra ele e dizer que eu tenho medo de muitas coisas e a morte é a mais simples delas. É muito pior o medo de estar viva, o medo de estar naquele avião sem nenhuma idéia do que eu estava indo fazer naquela cidade onde ninguém me esperava no aeroporto, é muito pior o medo da incerteza, das coisas que acabam, é muito muito pior a vida do que a morte, mas daí me ative a responder um simples "Da morte em si não tenho medo, mas acho que a angústia até morrer deve ser um negócio ruim. Principalmente se for em queda de avião". Ele concordou comigo. "Nunca tinha pensado por esse viés, mas faz sentido. Você desce ou faz conexão?". O cara queria saber nos cinco primeiros minutos de diálogo se eu desço ou faço conexão. Reprimi o impulso de dizer "e o que isso te interessa?" e respondi que sim, desço. "Você faz conexão?". "Faço". E aí soubemos que esse era mais um dos amores que nem chegariam a descer em terra firme. E gente que vai embora eu tenho bastante lá embaixo. O avião começou a taxear e ele olhava atentamente pra mim a procura de qualquer traço de medo que fosse. Eu permanecia resoluta atrás dos meus óculos escuros. Vai que ele também pergunta se eu não quero que ele segure minha mão? Não gosto dessas vulnerabilidades. Acho segurar a mão uma espécie de contrato entre duas pessoas que não deve ser estabelecido se você de fato não tiver interesse em continuar protegendo a outra pessoa das tragédias da vida. E as tragédias da vida são um pouco piores do que a decolagem e aterrissagem de um simples avião da frota de aviões mais nova  e moderna do Brasil (segundo dizia a aeromoça). A aeromoça explicava que existem quatro saídas de emergência, que os bancos flutuam em caso de queda ao mar e que, em caso de despressurização máscaras de ar cairão automaticamente sobre as suas cabeças. Todo tipo de coisa que não adianta nada se o avião resolver cair mesmo. Nunca ouvi história de gente que se salvou com o assento flutuante. Sempre penso essas bobagens enquanto as aeromoças fazem demonstração mas finjo estar interessada nas revista da companhia. As revistas da companhia agora atendem às necessidades da classe C emergente e tem entrevistas com personalidades tipo o Zeca pagodinho. O Zeca pagodinho é um desses caras que não parece ter muito medo das angústias da vida não. Sei lá né, a gente nunca sabe o que se passa dentro desse terreno misterioso que é o coração das pessoas. 

O avião começou a subir e eu fechei os olhos enquanto mascava meu chiclete. Uma vez a minha tia disse que se a gente mascar um chiclete melhora a sensação da decolagem. Não sei se melhora mesmo, ou se é uma espécie de superstição, mas eu sempre masco. Pelo menos distraí. O moço do meu lado botou a mão no meu ombro e disse "não foi decolando que a gente morreu". Sorri. "Acho que não", eu respondi. Ele sorriu de volta e voltou a ler o livro. Dez minutos depois a aeromoça nos avisa que os aparelhos eletrônicos podem ser ligados e eu pego meu iPod. Abro a janela e fico observando as nuvens. Quando eu era criança eu achava que quando a gente andava de avião era possível tirar a mão pra fora da janela e pegar na nuvem. A nuvem devia ser alguma coisa tipo algodão, ou um desses gases de experiência de programa infantil que passam pela nossa mão sem ficar. Aos dez anos eu descobri que a janela do avião não abre e que era impossível pegar na nuvem. Essa foi só uma das impossibilidades do mundo que eu descobri. A vida é cheia de impossibilidades. Gosto de viajar porque me sinto longe de qualquer lugar. Ao mesmo tempo que me angustia eu gosto de ser o ser que flutua no espaço. O ser com o celular no modo avião impossibilitado de receber qualquer mensagem, ligação, ou acessar o Facebook a procura de algum indício de desamor. Acho que morte é pior que angústia. Um avião caindo traz em si a certeza da morte. Viver não, viver traz consigo esse monte de portas e caminhos possíveis que a gente nunca sabe se são as certas ou as erradas. A vida traz desamor e desamor é pior que decolagem de avião. Certamente é. Eu olhava as nuvens e pensava que queria estar longe. Longe do lugar onde eu ia pousar e longe do lugar onde sai. Queria ser alguém sem nome e nem identidade a descer num lugar estranho e começar tudo de novo. Começar a vida longe da incerteza do amor que não sabe se é ou não é. Começar a vida com um celular onde ninguém pode mandar mensagem porque ninguém ainda sabe o número. Começar a vida sem nome e sem endereço fixo. Começar a vida com uma mala com o pé quebrado, algumas roupas, dois livros e algum dinheiro no bolso. Começar a vida num lugar sem trauma e nem angústia, sem amor não correspondido, sem coisa em aberto, sem isso de chorar de noite toda noite sem saber o que vai ser o amanhã porque num lugar onde nada se sabe o amanhã só pode ser o que não se tem idéia ainda e, nesse caso, a angústia de existir seria menor. Começar de novo "para evitar problemas posteriores". Eu olhava o céu e tudo aquilo parecia tão imenso pra minha vida sem graça. Seria o mundo essa imensa gama de possibilidades que todos falam e eu não acredito? Seria possível que o moço ao ler esse John Fante do meu lado fosse meu grande amor (mesmo eu odiando John Fante?). Não. Essa era a resposta certeira. A vida é de viés muito mais que é de sorte. A vida é um jogo imobiliário onde a gente só tira revés e paga o aluguel pra pessoas que deram certo. As pessoas que deram certo são poucas. As outras vivem tipo eu, indo de um lado pro outro e segurando o choro em aviões que vão rumo a coisas da onde não se espera tanta coisa assim. Eu devia parar de esperar coisas da vida. Gente me esperando no aeroporto, ligações antes de eu embarcar, preocupações com as minhas angústias, um simples "tá tudo bem com você" que vem quando as pessoas entram em dúvida se está tudo bem mesmo. Queria não esperar nada. Não esperar nada assim como eu não espero nada do moço do meu lado que já está na metade do livro do john fanfe. Colocar na cabeça que todas as pessoas da sua vida estão fazendo uma conexão enquanto você desce antes. Sabe-se lá o que acontece com as pessoas depois que elas te deixam. Sabe-se lá o que a vida reserva. Eu suspirei.

Acho que suspirei meio alto porque quando dei por mim o moço do meu lado tinha largado o John Fante e me olhava com aqueles olhos inquisidores de novo. Eu percebia, mas não queria olhar pra ele. Só que aí ele me cutucou. "Moça, você parece um pouco angustiada, é o medo do avião?". Eu não ia responder nada. Eu prometi pra mim mesma que ia parar com isso de desabafar com desconhecidos no avião porque já tinham sido vários, inclusive uma vez que eu perguntei pro cara do meu lado se ele se sentia triste com certa freqüência e tudo que ele fez foi pegar o iPad e começar a jogar Fruit Ninja, então eu tive um pouco de certeza que ele era triste a maior parte do tempo. Só que eu respondi. "O problema é a vida que acontece depois que o avião desce". Ele me sorriu. "Esse problema não tem jeito, moça". Sorri de volta "Acho que não", respondi. Aí voltei a olhar a janela do avião e de repente me senti inquieta. A mesma inquietude que veio no dia que eu perguntei pro cara se ele se sentia triste. Ele não parecia estar lá muito interessado no John Fante e, além do mais, faltavam só mas vinte minutos de viagem. Nada de mal podia nos acontecer. Travei o diálogo:

- Cara, você acha que é perfeitamente normal a gente se sentir angustiado o tempo todo e nunca saber que raios vai ser da vida a partir do momento em que a gente bota o pé pra fora do avião? Eu quero dizer. A vida lá embaixo ela acontece de um jeito tão louco e eu não sei o que eu quero, você acha que é normal a gente não saber o que quer e sentir medo e um medo muito maior do que o do avião cair enquanto a gente decola?

Ele me olhava estaticamente e largou o livro do John Fante no chão. Quase achei que ele ia sacar um iPad e abrir um jogo qualquer, mas ele parecia ser mesmo uma dessas pessoas que vivem em seu próprio mundo e esse tipo de pessoa sempre tem opinião sobre as subjetividades da vida, aí ele me respondeu. 

- Eu acho que você sente medo da única coisa segura que é justamente estar nesse avião vendo tudo lá embaixo como uma maquete dessas que a gente fazia na escola, sem participação nenhuma. Medo mesmo é saber que você faz parte de tudo que tem lá embaixo, que tem uma vida, um emprego, um namorado, e toda uma vida pra construir. Aqui é nada, aqui é um mundo paralelo onde os celulares não funcionam e o pior que pode acontecer com a gente é morrer, mas morrer é um clic. Viver é uma vida toda. O medo da vida é muito mais racional do que o medo do avião, no fim das contas. 

Agora erra eu quem olhava pra ele estaticamente. Se eu tivesse um livro, eu também tacaria no chão. 

- Você sabe o que quer da vida? Quero dizer, existe algo do qual você tem certeza?

Ele me sorriu.

- Todas as pessoas que tem certezas sobre a vida são idiotas completas. Exceto quando a gente ama. Quando a gente ama é bom guardar em si uma certa dose de certeza. Amar antevendo o fracasso também é coisa de idiotas completos. No mais eu acho que é normal que você seja cheia de dúvidas, e eu e todas aquelas pessoas que a gente não enxerga daqui mas que tem vidas, universos, casas, carros e sofás pra comprar em doze vezes pra poder assistir tv de fim de semana com a esposa e os filhos. Os caras das certezas são menos angustiados, mas viver sem angústia é viver sem medo e viver sem medo é nocivo. Se a gente tem medo é porque quer fazer alguma coisa. A gente só sente medo do desconhecido. Se você se angustia é porque ainda quer alguma coisa que não descobriu. A vida acaba quando a gente não quer mais nada que ainda não descobriu. Essas pessoas cheias de certeza estão fodidas, sabe? meio mortas. Os babacas que acham que o amor está fadado ao fracasso também. Achar que nada dura é ter certeza que um dia se para de descobrir o desconhecido na outra pessoa. A gente é cheio de desconhecidos a descobrir. O amor dura porque é feito de mistério. A vida também, sabe? E se não der medo é porque acabou o mistério. E se acabar o mistério acabou tudo. É perfeitamente normal a gente se sentir angustiado, se é isso que você queria saber.

Eu sorri. Ele pegou o livro do chão e voltou a ler. Eu voltei a ouvir música pensando que a vida era mais ou menos aquela nuvem que eu achava que podia pegar mas não podia. Não dá pra pegar a vida com a mão. Ela é um pouco aquele gás das experiências dos programas infantis. Ela passa pela nossa mão e se dissipa. A aeromoça avisa para apertarmos os cintos. O avião vai pousar. A cidade vai ficando cada vez mais próxima. Agora já é possível enxergar o emaranhado de carros, casas e prédios que constitui a vida das pessoas que não sei quem são. O aviso diz: "senhores passageiros, preparar para aterrissagem". Estou preparada. O moço do meu lado me olha e diz "esse é um dos medos mais simples". Eu sorrio e concordo. Pousamos no concreto quente do aeroporto. Pego minha mochila, me despeço do moço que ainda lê John Fante. "A vida nem sempre tem conexões, né?". Ele me sorri. "Às vezes a gente se encontra numa escala. E eu espero que você ainda sinta medo". Sorrio de volta. Ando pelo corredor do avião, agradeço a aeromoça simpática que me deseja boas vindas. Entro no ônibus que me leva até o saguão do aeroporto. Não ligo o celular. Não existem mensagens ou ligações perdidas. Devo ter perdido todos os meus amores em alguma escala ou em alguma conexão em que não fui informada. Queria que alguém tivesse vindo me buscar, mas ninguém veio. Provavelmente me diriám que "tinham que cuidar da própria vida". Só que eu não tenho mais o desprendimento de pegar a minha mochila e dizer que se eu fizesse mesmo parte da vida deles, cuidar da vida contemplaria cuidar de mim também. Não espero que ninguém cuide de mim. Espero, mas não admito. Prefiro não pensar. Espero minha mala chegar na esteira e tenho dificuldade de carregar tudo. Saio pra fora da sala de desembarque e vejo reencontros. Filhos felizes abraçam as mães. Namorados apaixonados buscam as namoradas. Casais casados há anos não se olham direito e não seguram mais as mãos. Casais que se conheceram pela internet levam no olhar a surpresa e o encantamento de se ver pela primeira vez. Ninguém me espera. Penso em mandar uma mensagem avisando que cheguei, mas desisto. Chego no limítrofe e me convenço que o que quer ser nosso acaba nos procurando. Um dia ele, ou qualquer outro, apareceria de surpresa em uma dessas minhas idas e vindas e aí quem sabe estivéssemos os dois dispostos a ir descobrindo os desconhecidos em nós, como disse o moço que lia John Fante no avião. Sei que o caminho pra pegar o ônibus pro centro é o mesmo de sempre. Sinto um certo enfado de sempre sair das salas de desembarque segurando as malas sozinhas. Sinto um certo enfado de passar a vida tomando conta das minhas próprias bagagens. Minha vida cabe numa mala de pés quebrados que eu sempre carrego sozinha "para evitar problemas posteriores". Eu também estou cuidando da minha própria vida, como qualquer ser-humano contemporâneo adulto faria. Mas eu cuidaria da vida de outro também. Às vezes eu queria ser a pessoa esperada ansiosamente do lado de fora da sala de embarque. Não sou. Fico querendo perguntar mil coisas pra pessoas a minha volta pra ver se elas tem uma resposta, mas sei que elas também não tem. A gente não pode pegar a vida com a mão. Não quero pegar o ônibus. Eu não sei mais onde é minha casa. Não quero chegar na cidade e encarar o silêncio do meu telefone celular que não toca nem vibra. Os silêncios. São tão angustiantes os silêncios, esses silêncios todos. Os silêncios que sempre são quebrados por mim e eu nem sou do tipo que gosta de quebrar silêncios. O nome disso é angústia. Canso de estar sozinha segurando desajeitada essa mala, essa mochila e essa vida indo encontrar alguém que eu nem sei se queria ser encontrado. Desisto. Fico parada no meio do saguão do aeroporto. Subo as escadas, vejo os aviões que sobem. Eu não quero mais correr pra encontrar ninguém. Não quero mais correr o risco de ser abandonada a minha própria sorte segurando uma mala que carrega toda a minha vida, sem saber pra onde ir. Eu quero ser aquela que parte. 

15.3.13

perdoa o drama, e não desiste de mim


"Não, não diga que eu lhe trato mal,
Eu tento tanto te fazer feliz,
Mas acontece qu'eu sou desastrada."
(Mallu Magalhães - Cena) 

(Para se ouvir ao som de Mallu ou de qualquer música que fale de gente desastrada como eu)

Quando eu acordo meus lençóis estão sempre fora do lugar. Me mexo muito durante a noite e não raro levanto puxando a coberta com os pés, carregando-a pelo quarto e enchendo de poeira do chão o cobertor onde eu durmo. Desastrada. Essa sempre foi a palavra que me coube desde que me entendo por gente. As meninas da educação física, quando me escolhiam por último, justificavam dizendo que eu era desastrada demais pra conseguir jogar qualquer esporte que exigisse muita coordenação motora. Elas estavam certas. Foi assim que acertei uma vez a bola na cara do meu primo quando jogavamos futebol. Sou péssima com direções e confundo direita com esquerda até hoje.  Eu só servia pra natação, o esporte solitário e silencioso a que me prestei depois de perceber que eu não servia pra nenhum outro que não aquele. A natação não me exigia muito talento. Era preciso respirar debaixo d'água, mexer os braços de maneira a me tirar do lugar, evitar fazer barulho enquanto batia as pernas porque, segundo a tia cláudia, quanto mais barulho mais devagar a gente nadava. Menos barulho era sinal de eficiência. Tia Cláudia não sabia, mas esse é um bom jeito de ensinar a vida, também. Quanto menos barulho a gente fizer, mais devagar a gente nada. O silêncio é ouro. Eu sempre fiz barulho demais.

Eu sempre falei na hora errada. Passava muita vergonha esquecendo que estava no meio da sala de aula e conversando sem parar. Eu era a chata que conversava sem parar porque tinha facilidade de entender certas coisas. Na aula de matemática eu conversava, na de inglês eu conversava, nas aulas de educação física eu fugia da bola. Depois de um tempo eu descobri que não aparecer era um bom jeito de sobreviver no desastre. Deixei de tentar mostrar qualquer serviço nos jogos de vôlei ou de basquete. No máximo dava um passe ou outro. Não adianta querer ser o que você não é. Eu nunca seria uma esportista, mesmo que todo mundo vivesse dizendo que eu era alta o suficiente pra ser atleta. Não posso ser atleta porque sou desastrada. Me odiariam na olimpíada, me mostrariam o dedo em todas as competições em que eu corresse atrasada e tropeçasse no meu próprio pé ao tentar pegar a bola. Um desastre. Era isso.

Quando se é um desastre se tenta outras coisas. Depois de um tempo desisti de conversar na sala (já que isso gerava fúria nas professoras) e comecei a escrever. Tudo aquilo que eu queria dizer e ninguém entendia eu escrevia. Meu caderno de matemática era cheio de textos nas últimas páginas. A tal da professora marize odiava essa minha mania e sempre me mandava parar de escrever e prestar atenção na aula. Nunca seguia o conselho. As fórmulas de baskhara, mal sabia a professora marize, são muito mais simples de lidar do que as angústias da vida. Sobre as equações eu sabia, dos logarítimos eu entendia, o meu raciocínio lógico sempre foi muito perto do perfeito. O problema do mundo, professora marize, é o que a ciência não explica. A ciência não explicava meu desastre, meu desajeito, minha timidez, e o fato de eu sempre me achar mais feia do que todas as meninas da minha sala. A ciência ainda não conseguiu explicar meu desastre, meus vinte quatro anos ainda deixando cair molho na camiseta, ainda tropeçando no próprio pé, ainda derrubando produto empilhado em pirâmide no supermercado, ainda não sabendo lidar tão bem assim com esse tal de sentimento.

Certas coisas são adaptáveis. Sou menos tímida do que eu era a anos atrás, certamente. Sei continuar uma conversa se puxarem assunto comigo, sei ser simpática, lido com gente que odeio quase diariamente e não deixo transparecer. Fora isso, existem certas coisas que por mais que eu não queira, são minhas. O desastre é uma dessas coisas. Por mais que eu me policie eu acabo derrubando a comida pra fora do prato quando como, fico com molho no cantinho da boca, tropeço na rua e confundo direita com esquerda. Sou péssima com direções, embora agora crie estratagemas pra não me perder nessa cidade enorme que é São Paulo. Sei que pra descer em casa tenho que puxar a corda quando se passa da padaria Real, aquela eu fica perto da MTV. Sei que pra ir pra casa dele desço um pouco depois de uma banca de frutas, e no meio do caminho tenho certos pontos de referência como uma farmácia e uns postos de gasolina. No metrô vou bem porque tem placa, mas acho a linha amarela de uma confusão desnecessária. às vezes pergunto se estou indo mesmo pro lugar certo porque não confio em mim. Ele vai ao meu lado sempre me dizendo que não é possível que uma pessoa seja assim desastrada. Te digo: é possível sim. Tavez ele não entenda porque não foi zoado no colégio, não era o último ou o penúltimo a ser escolhido, nunca levou bolinha de papel nas costas e nem recebei apelido hostil de um bando de meninos babacas que nunca foram ensinados em casa sobre uma coisa simples chamada respeito. Quando uma mentira é repetida várias vezes ela vira verdade. Me repetiram inúmeras vezes que eu era um desastre, que eu era desajeitada, feia, esquisita, magra demais. Riam de mim quando eu corria. Essas coisas ficam. Quando eu tropeço na rua eu sempre acho que tem alguém me apontando e rindo. Quando eu derrubo o saleiro na mesa do restaurante eu sempre imagino a inquisição vindo e me dizendo que não é possível que alguém seja assim, tão desastrada. João Marcelo me aponta o dedo e ri. Por vezes, ele é de novo o meu João Marcelo, o menino da escola que não tinha aprendido em casa que nem todas as pessoas do mundo agem iguaizinhas, retinhas, sem tropeçar. Nem todas as pessoas são as meninas perfeitas e normais e limpam seus óculos com devoção. Nem todo mundo é normal, talvez essa seja a lição que a professora marize devesse ter dado ao invés da fórmula de baskhara. É isso que todo mundo devia ter aprendido, só que as pessoas, ao invés disso, decoraram que mais ou menos b, raiz quadrada de b ao quadrado menos quatro ac sobre dois a resolvem as equações matemáticas. Daí ficou essa gente toda achando que gente também tem fórmula. Vida e gente não tem fórmula. Somos ciências humanas, somos relativos, somos.

Nos últimos dias eu tenho me sentido um pouco a menina que era zoada pelo João Marcelo. Um misto disso com aquela cena da Julia Roberts em "Uma Linda Mulher" em que Richard Gere diz que ela é incrivel e ela diz que não, que é estranha, que é um desastre porque quando as pessoas vivem dizendo que a gente é um desastre a gente acredita. Sou um pouco aquela personagem. Certamente derrubaria os meus escargots, visto roupas inadequadas nas situações sociais, rio alto e não me submeto a qualquer coisa. Da última vez que vi o filme, chorei. Chorei mas achei que era uma página virada na minha vida. Não era. Tive de ouvir de novo que, coitada de mim que sou estranha. Coitada de mim que tropeço. Que porcaria ser eu, de óculos sujos, que vomitou a casa toda um dia, que estraguei um tapete que ainda não conseguiu ser limpo. Que porcaria. Não chorei porque não choro mais, porque a vida te deixa meio Julia Roberts em "Uma linda mulher", te deixa assim meio cheia de hematomas e achando graça ao invés de querer morrer. Chega uma hora em que você só suspira e aceita. Tem sido assim por tantos anos, há de se aceitar a condição. O que me irrita no mundo é essa falta de perceber que as pessoas não são iguais. A fórmula de baskhara que a professora marize ensinou não seria capaz de resolver um só dilema do coração. Pessoas diferentes fazem coisas diferentes e talvez essa seja a beleza do mundo. Não fosse minha inadequação eu nunca teria começado essa literatura que ele diz que gosta, e eu provavelmente teria feito engenharia e estaria agora compartilhando mensagens positivas no Facebook, como fazem mais da metade das meninas bem ajeitadas e nada desastradas que existem no mundo. Que existem aos montes no mundo. Todas iguais, de cabelos compridos, sorridentes e indo à praia nas férias. Mas eu sou o tipo de pessoa que nunca faria economia porque isso não preenche meu coração cheio de buracos. Eu sou esse tipo de idiota que quer mudar o mundo, escrever um livro, plantar uma árvore e que admira muito mais meu avô e as sua sabedoria sobre o mundo do que o Steve Jobs. Eu tenho as minhas angústias. Angústias que ele não entende e que eu nem faço questão que entenda porque são minhas. Eu não sou as outras meninas do mundo.

Pudesse eu escolher, se fosse uma questão de escolha, eu não seria assim. Não porque não goste, mas porque seria mais simples. Seria mais simples ser mais uma das meninas simples que todo mundo prefere. Seria mais simples querer um curso que dê dinheiro, não se preocupar muito e ouvir essas bandinhas chatas que falam sobre positividade. Se eu pudesse escolher eu não teria tido depressão na adolescência, manteria sempre a postura, teria me vestido com roupas da planet girls e preferiria ler capricho ao invés de carlos drummond. Se desse pra mudar eu não tropeçaria mais, não encanaria com bobagem, não deixaria ele nervoso, não derrubaria um farelo sequer de comida na cama ou na roupa e apareceria sorrindo em todas as fotos. Eu sempre fico me perguntando se ele acha que eu faço de pirraça, que eu escolhi ser assim bagunçada porque eu acho bonito. Se eu pudesse escolher, eu diria pra ele, eu seria qualquer uma dessas meninas que enchem o Facebook dele ou o Facebook de qualquer um rindo com "kkk", indo pra festas, sendo felizes e tendo as opiniões que todo mundo tem sobre todos os assuntos. Não foi divertido pra mim, nem ao menos legal ser a menina zoada no colégio. Não há orgulho em ser estranha. Há dor. A dor de ter sempre que ouvir de um ou outro que eu deveria ter agido de outro modo porque olha que bagunça que você deixou. Sempre sinto vontade de dizer que o caralho da bagunça que eu deixei em qualquer lugar não é nem metade da bagunça que eu tive que lidar dentro de mim por ter nascido assim e ter sido criada com esses pais estranhos que não me ensinaram a querer carreira e dinheiro, mas me ensinaram que o legal da vida é adquirir conhecimento, mudar a vida dos outros, se orgulhar de ser como é, e o pior de tudo, eles me ensinaram esse conceito muito vago, que ninguém entende que é essa vontade ridícula de tentar ser feliz. Eles só não me ensinaram que pra ser feliz a gente tem que passar por tanta coisa que sabe-se lá se compensa. Compensa?

Tenho chegado a conclusão que não sei se compensa. Queria dizer muitas coisas pra ele e pra todos outros que vieram antes dele. Dizer que eu entendo que as minhas manias sejam chatas, dizer que eu sei que deve ser um saco lidar com as minhas angústias, meu desajeito, meu desastre. Dizer que eu sei que seria mais fácil lidar com essas meninas sem drama e sem literatura, e até sem muitas vontades. Essas outras gurias com quem eu sempre convivi e que sempre me olhavam estranho porque eu sou muito cheia de desastre e muito cheia de opinião. Sempre fui a menina que as outras meninas apontavam e riam porque, coitada, tão estranha. Eu sou a menina que as meninas com quem ele convive não chamariam pro time nem passariam o recredio junto. Eu sou a menina que as meninas com quem ele tá acostumado cochichavam sobre e não chamavam pras festinhas. Eu queria ser uma dessas meninas que não são assunto no grupo de amigos dele porque se portou de maneira estranha. Acontece que eu sou estranha desde sempre. Tem coisa que eu consigo mudar e tem coisa que sou eu. Lidar com o que eu sou é difícil pra mim também. Se pudesse mudar mudava. Também canso de ser essa espécie de tamagochi que todo mundo acha engraçadinho mas não quer levar pra casa. Queria dizer pra ele que ele também tem um monte de manias irritantes e que não é todo mundo que implica se colocarem a mochila que veio da rua em cima da cama, não é todo mundo que precisa lavar a mão quando adentra os recintos, não é todo mundo que quer tudo limpo o tempo todo e nem todo mundo que não consegue escrever se tiver alguém perto. Ele também é cheio de idiossincrasias que eu aprendi a aceitar porque acho que todas as outras coisas compensam. Ele me compensa quando fala dos seus fimes preferidos, do paulo coelho, dos sabores estranhos de pizza (ninguém gosta de pizza de aliche).Compensa quando me explica com animação porque escolheu uma palavra e não a outra, e compensa quando me diz que só quer ser um desses caras de vida simples que tem uma rede na varanda (que eu chamo de sacada). E tudo bem ter uma rede na varanda, mas tudo bem também ele não ter gostado de pisar no chão sem chinelo até os dezesseis anos. Tudo bem porque eu aprendi desde cedo, escrevendo, que o que difere as pessoas das fórmulas matemáticas são o fato delas não serem iguais. É o que foge da curva que me encanta. O que me encanta nele é o que o resto do mundo não tem. O que o resto do mundo tem tanto faz. O que o resto do mundo tem não faz literatura nem arte. Tudo que existe de belo foi feito por essa gente desastrada que não era do jeito que todo mundo era e a quem, provavelmente, vários Joãos Marcelos apontaram os dedos e riram. O que existe de belo foi feito por meninas que não seriam chamadas pelas outras meninas nem pro time de vôlei e nem pro recreio. Tudo que existe de belo em mim vem do que eu tenho de louco. Vem do que ele não entende. Vem do que os amigos dele acham péssimo. Vem do que as outras meninas com quem ele convive não tem.

Eu fico ensaiando no meu balé torto mil jeitos de dizer tudo isso pra ele. Nunca pude ser bailarina porque tropeçava demais. E era muito alta. As bailarinas são baixas, graciosas e disciplinadas; ou seja, as bailarinas são tudo o que eu não sou. Eu nunca poderia ser uma bailarina, então resolvi que queria ser escritora. Foi por um desses textos meus que a gente se encontrou. Se eu não tivesse sido desastrada, desajeitada e louca eu nunca teria escrito esses textos que fizeram ele me encontrar. Tudo isso faz parte de mim de um jeito que eu odeio, mas aceito porque é o que me mantém viva. Eu queria ser menina-bailarina, mas só soube ser menina-escritora, menina-professora, menina que recusou o convite de ser modelo porque queria ser intelectual. Todas as outras teriam aceitado ser modelo. Eu escolhi o caminho mais difícil. Eu escolhi o caminho em que eu tropeço. No fim, por mais que doa, eu prefiro ser menina-escritora do que menina-bailarina. Prefiro querer um apartamento com varanda pra escrever meus textos. Prefiro querer continuar nesse caminho louco que hora ou outra me rende mensagens dizendo "esse seu texto disse tudo o que eu queria dizer e não conseguia". Meu ofício é esse de estranhar o mundo e ser estranhada por ele. Eu queria ser mais normal, só que eu não posso. Não posso porque não sei. Tem coisa em mim que não muda. Daí eu queria dizer pra ele que ou ele aceita que se eu não fosse assim, louca-tropeçante eu não escreveria, ou ele procura alguém mais simples. Não existe pecado em querer alguém mais simples. Se eu fosse ele eu também preferiria. Preferiria alguém que não confunde direita-esquerda, não aparece  na vida dele no meio de uma crise depressiva, não tropeça, não suja a roupa, não derruba um bife em cima da bolsa na padaria mais chic de São Paulo. Preferiria alguém com mais pudores, que não ri tão alto, que não confunde a porta de descer do ônibus,que sabe fazer escolhas, que não suja a casa de ninguém, que gosta de praia e muita gente, que sai sorrindo nas fotos, que mantém a postura e que não tem medo de não ser feliz. Alguém que queira, como todo mundo, um emprego das oito as seis, hora extra e dinheiro pra ter uma casa boa, filhos e pagar escola particular pros filhos. Alguém que não queira subjetividades. Pelo menos não tantas subjetividades.

E eu preferiria não voltar nesse eterno retorno que é sempre acabar gostando dele que não é como eu. Ele que se organiza e segue cronograma. Ele que estuda na biblioteca e faz listas de afazeres pra empregada. Ele que pisa no chão de chinelo e demora pra tomar banho. Ele que não deixa nada pelo cronograma enquanto eu rasgo um cronograma por qualquer cerveja no bar. Ele transtorno obsessivo e paranóia enquanto eu sou paranóia e histeria. Não tem como isso funcionar, senhores psicólogos, senhores lacans e freuds, não tem como isso ser uma simbologia interessante e todo o inconsciente coletivo sabe disso, senhor Jung. Eu queria alguém mais simples pra mim também. Só que acontece que eu não gosto das coisas assim, simples. Eu gosto é da curva pra fora, das coisas que não se explicam com fórmulas, dos erros, das exceções. Daí eu só queria dizer pra ele, usando os versos dessa cantora que eu detesto, mas que me cabe tão bem, que eu juro que tento fazer ele feliz, mas acontece que eu sou (e, infelizmente, vou continuar sendo) desatrada.

12.3.13

poema exagerado para uma paranóia.

ele não está em casa.
eu sei que não está
(ninguém usa o celular na própria cama
quando possui um notebook).
deve estar numa casa que não é dele
numa cama que não é dele
com uma garota que não sou eu
e não tropeça
não suja
não discute
sorri e é boa
não o sufoca durante a noite
não desarruma a cama dele.

ele me evita e me manda dormir.
não se preocupa com o meu mal estar
não me pergunta se eu estou mesmo bem
provavelmente sorri com outra garota
e diz a ela que não foi nada
só uma dessas mensagens sem importância,
enquanto eu choro por ele.
enquanto eu me desespero
rasgo as páginas dos livros
choro debaixo do cobertor
maldigo tudo que fiz e disse
me acho estúpida.

antes ele queria me sorver a presença
hoje me evita
me lê e ignora
suspira de cansaço
me manda embora de sua casa
me destrata
não me beija, não me quer
não me convida pra um café
não escreve uma mensagem na minha mão

esse é o ciclo da vida.
e nesse ciclo
os amores sempre rodam
fora de compasso
como num disco riscado
que sempre empaca
na pior música.

o amor é esse disco que comprei
mas não tenho vitrola
pra tocar.

meu amor é seu disco preferido de um ano atrás
hoje esquecido na estante
pegando poeira
todo riscado
irritante
inútil.

9.3.13

da vida e da janela


Olho pela janela que não é minha. É a janela do homem que amo (amo, amava, amaria, amarei?). Não sei muito bem em que tempo conjugar o verbo, nem que substantivo usar para definir o sentimento. Talvez as crianças que estudam na escola que vejo dessa janela saibam sobre os substantivos e as conjunções verbais que desaprendi com a vida. A vida desensina. A vida desensina de verbo, de substantivo, e de sentimento. A vida é. 

Da janela que não é minha (mas é a janela do homem que amo) (amava, amaria, amarei, amo?) (não sei em que tempo conjugar o verbo nem que substantivo usar para nomear o sentimento), vejo um estacionamento, uma árvore que dá pinhas (dessas que minha mãe costumava colher para usar no natal como decoração), uma rua que vai dar não sei onde, várias árvores das quais não sei o nome (talvez meu vô saberia), dois prédios brancos onde deve morar gente pra quem a vida já desensinou diversas coisas; e, finalmente, a escola onde nesse momento brincam um grupo de crianças que, provavelmente, pouco pensam sobre os mistérios que penso enquanto olho por essa janela que é a janela do homem que amo (amo, amava, amaria, amarei?).

A escola é simples, não possui pintura, é de um cinza de concreto que reflete a aspereza da cidade, e tem umas janelas pequenas e coloridas, que se agrupam em grupos de seis. Seis janelas laranjas, seis azuis, seis vermelhas e seis amarelas ou beges (depende da precisão do observador). Tem também um canteirinho dessas flores que dão em todo lugar (apelidam de maria-sem-vergonha) (maria-sem-vergonha é também o nome que se dá àquelas mulheres que se dão fácil) (foi a mulher que deu nome à flor ou a flor que deu nome à mulher?), e uma quadra onde nesse momento os meninos jogam futebol enquanto as meninas permanecem imóveis sentadas numa escadinha próxima à quadra conversando. 

Essa é aquela idade em que meninos e meninas não se misturam ainda. Essa é aquela idade em que eles começam a entender os mistérios do amor. Talvez uma menina chamada Ana esteja perdidamente apaixonada por um menino chamado Márcio, que nesse momento faz um gol e ela sonha que ele dedique pra ela. Talvez Márcio pense mesmo em dedicar esse gol para Fernanda, a menina que Ana mais detesta. Talvez algumas meninas comentem sobre como acham os meninos odiosos e, alguns meninos, por sua vez, ainda confessem ter nojo desses seres que gritam e falam de novela. "Bobagem de menina", eles dizem. "Besteira de meninos", elas comentam enquanto observam eles jogarem futebol. As crianças de camiseta branca e calça vermelha que vejo da janela do homem que (não sei) se amo pouco sabem sobre os mistérios do amor. A vida ainda não lhes desensinou nada de importante. 

Do lado de dentro de tudo isso, do lado que a janela esconde, estou eu. Eu que olho para essas crianças que conversam, que jogam futebol, que vestem calças vermelhas e camiseta branca, que podem ou não estar começando a entender os mistérios do amor, que podem ou não se chamarem Ana e estar encantada por um menino chamado Márcio. Que não devem ter as angústias que tenho. Que não perguntam qual é o tempo verbal do sentimento e qual o melhor substantivo para defini-lo. Chamarei o que sinto pelo homem que amo (amava, amarei, amaria, amo?) de amor ou deve se chamar outra coisa? O que sinto quando olho para ele segurando o rosto com o braço esquerdo, compenetrado em seu trabalho? O que sinto quando ele insinua que tenho mania condenável de tropeçar na rua (e no jeito de sentir)? O que sinto enquanto da cama dele o vejo sorrir por uma coisa qualquer que não sou eu? Quantas vezes anda discutiremos Rubem Braga e ele reclamará que a minha presença nessa cama e nessa janela que dá pra esse estacionamento, essa árvore que dá pinhas, várias árvores que não sei o nome (mas meu vô talvez saberia), dois prédios brancos onde deve morar gente pra qual a vida já desensinou diversas coisas e, finalmente, a escola onde momentos atrás brincavam um grupo de crianças que provavelmente pouco pensam sobre os mistérios que penso, o desconcentra? Quantas vezes mais eu ainda o verei animado com uma palavra ou outra que vem das suas traduções intermináveis? - essa a única paixão que deve ser maior do que a paixão que ele tem pelas mulheres. Quantas vezes mais ainda existirei eu nessa janela que não é minha (mas é a janela do homem amo)? 

Para certas perguntas da vida, não existe uma resposta definitiva, nem tampouco imediata. Certas questões da vida são a gente que cria. Começa na escola, talvez. Numa escola parecida com essa que observo da janela. Talvez comece na primeira vez em que Ana se questiona se Márcio gosta mesmo dela ou prefere Fernanda. Não há o que saber, as coisas são. As crianças sempre sabem que as coisas são. Elas não duvidam do que é. O amor existe e é amor. A mãe existe e estará sempre ali. A gente só chora quando precisa de alguma coisa. As crianças não conhecem as grandes angústias do mundo. As crianças que correm na quadra em frente ao prédio do homem que não-sei ainda não desaprenderam a vida. Eu olho a janela a procura de respostas que não virão e me inundo de dúvidas que não tem porquê. As coisas são e isso é tudo. Não importa o substantivo, o tempo verbal, ou quantas vezes ainda olharei esse homem me fitar com um olhar que às vezes traz em si uma dose de desprezo. A grande questão do mundo é que não é preciso saber. As crianças que brincam naquela quadra sabem muito sobre isso. As crianças tem mais propriedade sobre os mistérios da vida. A vida desensina. A vida desensina de verbo, de substantivo e de sentimento. A vida é.