"Não, não diga que eu lhe trato mal,
Eu tento tanto te fazer feliz,
Mas acontece qu'eu sou desastrada."
(Mallu Magalhães - Cena)
(Para se ouvir ao som de Mallu ou de qualquer música que fale de gente desastrada como eu)
Quando eu acordo meus lençóis estão sempre fora do lugar. Me mexo muito durante a noite e não raro levanto puxando a coberta com os pés, carregando-a pelo quarto e enchendo de poeira do chão o cobertor onde eu durmo. Desastrada. Essa sempre foi a palavra que me coube desde que me entendo por gente. As meninas da educação física, quando me escolhiam por último, justificavam dizendo que eu era desastrada demais pra conseguir jogar qualquer esporte que exigisse muita coordenação motora. Elas estavam certas. Foi assim que acertei uma vez a bola na cara do meu primo quando jogavamos futebol. Sou péssima com direções e confundo direita com esquerda até hoje. Eu só servia pra natação, o esporte solitário e silencioso a que me prestei depois de perceber que eu não servia pra nenhum outro que não aquele. A natação não me exigia muito talento. Era preciso respirar debaixo d'água, mexer os braços de maneira a me tirar do lugar, evitar fazer barulho enquanto batia as pernas porque, segundo a tia cláudia, quanto mais barulho mais devagar a gente nadava. Menos barulho era sinal de eficiência. Tia Cláudia não sabia, mas esse é um bom jeito de ensinar a vida, também. Quanto menos barulho a gente fizer, mais devagar a gente nada. O silêncio é ouro. Eu sempre fiz barulho demais.
Eu sempre falei na hora errada. Passava muita vergonha esquecendo que estava no meio da sala de aula e conversando sem parar. Eu era a chata que conversava sem parar porque tinha facilidade de entender certas coisas. Na aula de matemática eu conversava, na de inglês eu conversava, nas aulas de educação física eu fugia da bola. Depois de um tempo eu descobri que não aparecer era um bom jeito de sobreviver no desastre. Deixei de tentar mostrar qualquer serviço nos jogos de vôlei ou de basquete. No máximo dava um passe ou outro. Não adianta querer ser o que você não é. Eu nunca seria uma esportista, mesmo que todo mundo vivesse dizendo que eu era alta o suficiente pra ser atleta. Não posso ser atleta porque sou desastrada. Me odiariam na olimpíada, me mostrariam o dedo em todas as competições em que eu corresse atrasada e tropeçasse no meu próprio pé ao tentar pegar a bola. Um desastre. Era isso.
Quando se é um desastre se tenta outras coisas. Depois de um tempo desisti de conversar na sala (já que isso gerava fúria nas professoras) e comecei a escrever. Tudo aquilo que eu queria dizer e ninguém entendia eu escrevia. Meu caderno de matemática era cheio de textos nas últimas páginas. A tal da professora marize odiava essa minha mania e sempre me mandava parar de escrever e prestar atenção na aula. Nunca seguia o conselho. As fórmulas de baskhara, mal sabia a professora marize, são muito mais simples de lidar do que as angústias da vida. Sobre as equações eu sabia, dos logarítimos eu entendia, o meu raciocínio lógico sempre foi muito perto do perfeito. O problema do mundo, professora marize, é o que a ciência não explica. A ciência não explicava meu desastre, meu desajeito, minha timidez, e o fato de eu sempre me achar mais feia do que todas as meninas da minha sala. A ciência ainda não conseguiu explicar meu desastre, meus vinte quatro anos ainda deixando cair molho na camiseta, ainda tropeçando no próprio pé, ainda derrubando produto empilhado em pirâmide no supermercado, ainda não sabendo lidar tão bem assim com esse tal de sentimento.
Certas coisas são adaptáveis. Sou menos tímida do que eu era a anos atrás, certamente. Sei continuar uma conversa se puxarem assunto comigo, sei ser simpática, lido com gente que odeio quase diariamente e não deixo transparecer. Fora isso, existem certas coisas que por mais que eu não queira, são minhas. O desastre é uma dessas coisas. Por mais que eu me policie eu acabo derrubando a comida pra fora do prato quando como, fico com molho no cantinho da boca, tropeço na rua e confundo direita com esquerda. Sou péssima com direções, embora agora crie estratagemas pra não me perder nessa cidade enorme que é São Paulo. Sei que pra descer em casa tenho que puxar a corda quando se passa da padaria Real, aquela eu fica perto da MTV. Sei que pra ir pra casa dele desço um pouco depois de uma banca de frutas, e no meio do caminho tenho certos pontos de referência como uma farmácia e uns postos de gasolina. No metrô vou bem porque tem placa, mas acho a linha amarela de uma confusão desnecessária. às vezes pergunto se estou indo mesmo pro lugar certo porque não confio em mim. Ele vai ao meu lado sempre me dizendo que não é possível que uma pessoa seja assim desastrada. Te digo: é possível sim. Tavez ele não entenda porque não foi zoado no colégio, não era o último ou o penúltimo a ser escolhido, nunca levou bolinha de papel nas costas e nem recebei apelido hostil de um bando de meninos babacas que nunca foram ensinados em casa sobre uma coisa simples chamada respeito. Quando uma mentira é repetida várias vezes ela vira verdade. Me repetiram inúmeras vezes que eu era um desastre, que eu era desajeitada, feia, esquisita, magra demais. Riam de mim quando eu corria. Essas coisas ficam. Quando eu tropeço na rua eu sempre acho que tem alguém me apontando e rindo. Quando eu derrubo o saleiro na mesa do restaurante eu sempre imagino a inquisição vindo e me dizendo que não é possível que alguém seja assim, tão desastrada. João Marcelo me aponta o dedo e ri. Por vezes, ele é de novo o meu João Marcelo, o menino da escola que não tinha aprendido em casa que nem todas as pessoas do mundo agem iguaizinhas, retinhas, sem tropeçar. Nem todas as pessoas são as meninas perfeitas e normais e limpam seus óculos com devoção. Nem todo mundo é normal, talvez essa seja a lição que a professora marize devesse ter dado ao invés da fórmula de baskhara. É isso que todo mundo devia ter aprendido, só que as pessoas, ao invés disso, decoraram que mais ou menos b, raiz quadrada de b ao quadrado menos quatro ac sobre dois a resolvem as equações matemáticas. Daí ficou essa gente toda achando que gente também tem fórmula. Vida e gente não tem fórmula. Somos ciências humanas, somos relativos, somos.
Nos últimos dias eu tenho me sentido um pouco a menina que era zoada pelo João Marcelo. Um misto disso com aquela cena da Julia Roberts em "Uma Linda Mulher" em que Richard Gere diz que ela é incrivel e ela diz que não, que é estranha, que é um desastre porque quando as pessoas vivem dizendo que a gente é um desastre a gente acredita. Sou um pouco aquela personagem. Certamente derrubaria os meus escargots, visto roupas inadequadas nas situações sociais, rio alto e não me submeto a qualquer coisa. Da última vez que vi o filme, chorei. Chorei mas achei que era uma página virada na minha vida. Não era. Tive de ouvir de novo que, coitada de mim que sou estranha. Coitada de mim que tropeço. Que porcaria ser eu, de óculos sujos, que vomitou a casa toda um dia, que estraguei um tapete que ainda não conseguiu ser limpo. Que porcaria. Não chorei porque não choro mais, porque a vida te deixa meio Julia Roberts em "Uma linda mulher", te deixa assim meio cheia de hematomas e achando graça ao invés de querer morrer. Chega uma hora em que você só suspira e aceita. Tem sido assim por tantos anos, há de se aceitar a condição. O que me irrita no mundo é essa falta de perceber que as pessoas não são iguais. A fórmula de baskhara que a professora marize ensinou não seria capaz de resolver um só dilema do coração. Pessoas diferentes fazem coisas diferentes e talvez essa seja a beleza do mundo. Não fosse minha inadequação eu nunca teria começado essa literatura que ele diz que gosta, e eu provavelmente teria feito engenharia e estaria agora compartilhando mensagens positivas no Facebook, como fazem mais da metade das meninas bem ajeitadas e nada desastradas que existem no mundo. Que existem aos montes no mundo. Todas iguais, de cabelos compridos, sorridentes e indo à praia nas férias. Mas eu sou o tipo de pessoa que nunca faria economia porque isso não preenche meu coração cheio de buracos. Eu sou esse tipo de idiota que quer mudar o mundo, escrever um livro, plantar uma árvore e que admira muito mais meu avô e as sua sabedoria sobre o mundo do que o Steve Jobs. Eu tenho as minhas angústias. Angústias que ele não entende e que eu nem faço questão que entenda porque são minhas. Eu não sou as outras meninas do mundo.
Pudesse eu escolher, se fosse uma questão de escolha, eu não seria assim. Não porque não goste, mas porque seria mais simples. Seria mais simples ser mais uma das meninas simples que todo mundo prefere. Seria mais simples querer um curso que dê dinheiro, não se preocupar muito e ouvir essas bandinhas chatas que falam sobre positividade. Se eu pudesse escolher eu não teria tido depressão na adolescência, manteria sempre a postura, teria me vestido com roupas da planet girls e preferiria ler capricho ao invés de carlos drummond. Se desse pra mudar eu não tropeçaria mais, não encanaria com bobagem, não deixaria ele nervoso, não derrubaria um farelo sequer de comida na cama ou na roupa e apareceria sorrindo em todas as fotos. Eu sempre fico me perguntando se ele acha que eu faço de pirraça, que eu escolhi ser assim bagunçada porque eu acho bonito. Se eu pudesse escolher, eu diria pra ele, eu seria qualquer uma dessas meninas que enchem o Facebook dele ou o Facebook de qualquer um rindo com "kkk", indo pra festas, sendo felizes e tendo as opiniões que todo mundo tem sobre todos os assuntos. Não foi divertido pra mim, nem ao menos legal ser a menina zoada no colégio. Não há orgulho em ser estranha. Há dor. A dor de ter sempre que ouvir de um ou outro que eu deveria ter agido de outro modo porque olha que bagunça que você deixou. Sempre sinto vontade de dizer que o caralho da bagunça que eu deixei em qualquer lugar não é nem metade da bagunça que eu tive que lidar dentro de mim por ter nascido assim e ter sido criada com esses pais estranhos que não me ensinaram a querer carreira e dinheiro, mas me ensinaram que o legal da vida é adquirir conhecimento, mudar a vida dos outros, se orgulhar de ser como é, e o pior de tudo, eles me ensinaram esse conceito muito vago, que ninguém entende que é essa vontade ridícula de tentar ser feliz. Eles só não me ensinaram que pra ser feliz a gente tem que passar por tanta coisa que sabe-se lá se compensa. Compensa?
Tenho chegado a conclusão que não sei se compensa. Queria dizer muitas coisas pra ele e pra todos outros que vieram antes dele. Dizer que eu entendo que as minhas manias sejam chatas, dizer que eu sei que deve ser um saco lidar com as minhas angústias, meu desajeito, meu desastre. Dizer que eu sei que seria mais fácil lidar com essas meninas sem drama e sem literatura, e até sem muitas vontades. Essas outras gurias com quem eu sempre convivi e que sempre me olhavam estranho porque eu sou muito cheia de desastre e muito cheia de opinião. Sempre fui a menina que as outras meninas apontavam e riam porque, coitada, tão estranha. Eu sou a menina que as meninas com quem ele convive não chamariam pro time nem passariam o recredio junto. Eu sou a menina que as meninas com quem ele tá acostumado cochichavam sobre e não chamavam pras festinhas. Eu queria ser uma dessas meninas que não são assunto no grupo de amigos dele porque se portou de maneira estranha. Acontece que eu sou estranha desde sempre. Tem coisa que eu consigo mudar e tem coisa que sou eu. Lidar com o que eu sou é difícil pra mim também. Se pudesse mudar mudava. Também canso de ser essa espécie de tamagochi que todo mundo acha engraçadinho mas não quer levar pra casa. Queria dizer pra ele que ele também tem um monte de manias irritantes e que não é todo mundo que implica se colocarem a mochila que veio da rua em cima da cama, não é todo mundo que precisa lavar a mão quando adentra os recintos, não é todo mundo que quer tudo limpo o tempo todo e nem todo mundo que não consegue escrever se tiver alguém perto. Ele também é cheio de idiossincrasias que eu aprendi a aceitar porque acho que todas as outras coisas compensam. Ele me compensa quando fala dos seus fimes preferidos, do paulo coelho, dos sabores estranhos de pizza (ninguém gosta de pizza de aliche).Compensa quando me explica com animação porque escolheu uma palavra e não a outra, e compensa quando me diz que só quer ser um desses caras de vida simples que tem uma rede na varanda (que eu chamo de sacada). E tudo bem ter uma rede na varanda, mas tudo bem também ele não ter gostado de pisar no chão sem chinelo até os dezesseis anos. Tudo bem porque eu aprendi desde cedo, escrevendo, que o que difere as pessoas das fórmulas matemáticas são o fato delas não serem iguais. É o que foge da curva que me encanta. O que me encanta nele é o que o resto do mundo não tem. O que o resto do mundo tem tanto faz. O que o resto do mundo tem não faz literatura nem arte. Tudo que existe de belo foi feito por essa gente desastrada que não era do jeito que todo mundo era e a quem, provavelmente, vários Joãos Marcelos apontaram os dedos e riram. O que existe de belo foi feito por meninas que não seriam chamadas pelas outras meninas nem pro time de vôlei e nem pro recreio. Tudo que existe de belo em mim vem do que eu tenho de louco. Vem do que ele não entende. Vem do que os amigos dele acham péssimo. Vem do que as outras meninas com quem ele convive não tem.
Eu fico ensaiando no meu balé torto mil jeitos de dizer tudo isso pra ele. Nunca pude ser bailarina porque tropeçava demais. E era muito alta. As bailarinas são baixas, graciosas e disciplinadas; ou seja, as bailarinas são tudo o que eu não sou. Eu nunca poderia ser uma bailarina, então resolvi que queria ser escritora. Foi por um desses textos meus que a gente se encontrou. Se eu não tivesse sido desastrada, desajeitada e louca eu nunca teria escrito esses textos que fizeram ele me encontrar. Tudo isso faz parte de mim de um jeito que eu odeio, mas aceito porque é o que me mantém viva. Eu queria ser menina-bailarina, mas só soube ser menina-escritora, menina-professora, menina que recusou o convite de ser modelo porque queria ser intelectual. Todas as outras teriam aceitado ser modelo. Eu escolhi o caminho mais difícil. Eu escolhi o caminho em que eu tropeço. No fim, por mais que doa, eu prefiro ser menina-escritora do que menina-bailarina. Prefiro querer um apartamento com varanda pra escrever meus textos. Prefiro querer continuar nesse caminho louco que hora ou outra me rende mensagens dizendo "esse seu texto disse tudo o que eu queria dizer e não conseguia". Meu ofício é esse de estranhar o mundo e ser estranhada por ele. Eu queria ser mais normal, só que eu não posso. Não posso porque não sei. Tem coisa em mim que não muda. Daí eu queria dizer pra ele que ou ele aceita que se eu não fosse assim, louca-tropeçante eu não escreveria, ou ele procura alguém mais simples. Não existe pecado em querer alguém mais simples. Se eu fosse ele eu também preferiria. Preferiria alguém que não confunde direita-esquerda, não aparece na vida dele no meio de uma crise depressiva, não tropeça, não suja a roupa, não derruba um bife em cima da bolsa na padaria mais chic de São Paulo. Preferiria alguém com mais pudores, que não ri tão alto, que não confunde a porta de descer do ônibus,que sabe fazer escolhas, que não suja a casa de ninguém, que gosta de praia e muita gente, que sai sorrindo nas fotos, que mantém a postura e que não tem medo de não ser feliz. Alguém que queira, como todo mundo, um emprego das oito as seis, hora extra e dinheiro pra ter uma casa boa, filhos e pagar escola particular pros filhos. Alguém que não queira subjetividades. Pelo menos não tantas subjetividades.
E eu preferiria não voltar nesse eterno retorno que é sempre acabar gostando dele que não é como eu. Ele que se organiza e segue cronograma. Ele que estuda na biblioteca e faz listas de afazeres pra empregada. Ele que pisa no chão de chinelo e demora pra tomar banho. Ele que não deixa nada pelo cronograma enquanto eu rasgo um cronograma por qualquer cerveja no bar. Ele transtorno obsessivo e paranóia enquanto eu sou paranóia e histeria. Não tem como isso funcionar, senhores psicólogos, senhores lacans e freuds, não tem como isso ser uma simbologia interessante e todo o inconsciente coletivo sabe disso, senhor Jung. Eu queria alguém mais simples pra mim também. Só que acontece que eu não gosto das coisas assim, simples. Eu gosto é da curva pra fora, das coisas que não se explicam com fórmulas, dos erros, das exceções. Daí eu só queria dizer pra ele, usando os versos dessa cantora que eu detesto, mas que me cabe tão bem, que eu juro que tento fazer ele feliz, mas acontece que eu sou (e, infelizmente, vou continuar sendo) desatrada.
2 comentários:
Acho que o seu eu-lírico era eu, porque parece msm que você me descreveu!
que alívio saber que não sou a única louca-desastrada do mundo! e que bonito que um texto tão pessoal sirva pra outro alguém! ((:
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