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18.4.13

canção de amor clichê para se cantar bêbado


Eu sabia que o diabo era a paixão. Diabo forte, demônio mesmo; encosto. A paixão devia ser exorcizada de todos nós antes que tomasse conta do corpo, fizesse o coração disparar, permitisse que a gente lembrasse da pessoa ao ouvir uma música ou ao ver alguém que anda de um jeito parecido com o dela. O diabo, se fosse um sentimento, seria a paixão. Paixão é ruína, é dor, é morte. Tudo vai bem antes dela, e se tudo der certo, tudo irá bem depois dela também. Amor é mais brando. Amor é calma, é tomar café da manhã junto, é ter certeza do estar. Paixão é urgência, é chato, é o coração pulando feito bateria de escola de samba, é um eterno olhar no celular pra ver se chegou notícia. A paixão é uma mensagem mal escrita que grita desesperada e cheia de erros de ortografia: "estou aqui!". A paixão é desajeitada, corrói, pede por cigarros, por mais chocolates, por uma dose de pinga antes dele chegar e você não saber o que dizer. A paixão é tonta, fica bêbada, tropeça nos próprios pés e descobre, sem ele ter dito, qual é o bolo preferido dele pra fazer numa ocasião descompassada. A paixão tem ciúmes, é muito amostrada, não traz paz e, se não descamba em amor, acaba na sua própria ruína. Eu sabia muito bem o que era a paixão. Tinha acabado de passar por ela e não queria mais. A paixão era o Diabo. E eu andava com uma cruz e sal grosso dentro da bolsa pro caso dela resolver atracar em mim de novo. "Paixão é coisa que mata", já dizia a minha vó, sábia e perspicaz, quando percebeu meu primeiro arroubo de paixão. Matar não matou, mas me deixou de cama por uns quatro dias enquanto ela me tratava a chá e bolo de fubá. "Essas coisas destrói com o coração da gente, fia". Ela tinha razão. Nunca soube se ela tinha sido apaixonada pelo meu vô ou se ela falava isso de alguma outra paixão que não pode viver pra que virasse amor. Em todo caso, seja lá como ela tinha aprendido isso, ela tinha razão: essas coisas destrói com o coração da gente.

Não vou em festas, não gosto de festas, evito festas, mas naquela eu fui. Fui enquanto repetia pra mim mesma durante todo o trajeto do táxi que não deveria ir. Torcia pra algum evento inesperado acontecer e eu poder enfim me convencer que eu não podia ir, era o universo que tinha dito que não. Pedia baixinho por acidentes, trânsito horroroso, chuva torrencial no meio do caminho, blitz, acabar a gasolina do táxi. Qualquer impropério servia. Não aconteceu. O taxista foi pelo caminho mais curto e não houve trânsito, blitz, acidentes e nem ao menos uma chuvinha dessas de fim de tarde. Tudo maravilhoso. Detesto ir em lugar que conheço pouca gente, eessa era uma daquelas festas em que eu não ia conhecer nem cinco pessoas. O porteiro atendeu simpático, acho que também um pouco cansado, porque imagino que deva ser um saco explicar pra todo mundo que "você entra naquela segunda porta lá, aí sobe o elevador, é o sexto andar, pode ir, ela tá esperando". Chega uma hora que você deve querer escrever num papel e mostrar pras pessoas ao invés de repetir pausadamente a mesma frase. Agradeci, entrei na segunda porta, abri o elevador, me olhei no espelho. Sempre me olho no espelho em elevadores, e raríssimas vezes me encontro sem essas olheiras profundas, sem a maquiagem um pouco borrada, sem o cabelo estranho. Também, não podiam esperar muita coisa de mim. Eu, fodida, conciliando mestrado e emprego, nada de tempo pra sair, um emprego de bosta desses que sugam a alma da gente e dão olheira. Tinha vindo direto, não dava pra esperar que eu estivesse deslumbrante. Além do mais, não gosto de festas, evito festas, nunca tem ninguém interessante e eu sempre acabo com aquele intelectual esquisitão meio bêbado que acaba te agarrando num canto depois de perguntar se é verdade mesmo que você viu "cenas de um casamento" inteiro. Vi sim, claro que vi, vi a versão estendida, dois dvds, quase cinco horas de filme. Sou mesmo genial, superculta, superlegal, e vi um filme enorme do Bergman inteiro. Se ainda fôssemos crianças, eu sempre replicaria esse povo que se acha melhor do que os outros porque viu tal filme com "grandes bosta". Era isso que eu falava toda vez que uma menina aparecia com a nova sandalhinha melissa antes das outras meninas. "Grandes bostas". Se vangloriar de ter visto um filme e lido alguns clássicos não é lá muito diferente de se achar legal porque comprou a nova sandália melissinha antes das outras meninas do colégio. Aliás, talvez a sandália melissinha tenha mais status-quo.

Sexto andar, avisto a porta: apartamento 606. Quase penso que devia dar meia volta e ir embora, mas daí também não, né? Já tinham me anunciado, já tinha gastado vinte conto de táxi pra chegar até ali. Agora que estava ali, ia. Toquei a campainha e Fernanda me atendeu solicita. "Ai, você veio, que legal!". Era sempre assim, sempre surpreendente quando eu ia mesmo numa dessas festas, e mais surpreendente quando eu não chegava quase no fim, bêbada e segurando outros três desconhecidos que eu encontrei no bar pelo braço. Fernanda era sempre a Fernanda. Receptiva, meio burra, mas cheia de amigos intelectuais. Nos conhecemos na faculdade, eu sou fodida e ela é jornalista de moda numa dessas revistas legais. A Fernanda mora num apartamento grande, desses que tem duas portas e que o porteiro tem que explicar como que faz pra chegar no elevador. Eu não vivo tão pior que ela, só que eu não gosto de apartamentos legais e gasto todo o meu dinheiro em livros que ficam empilhados pelo apartamento todo e em viagens para lugares que ninguém faz muita questão de ir. Eu e a Fernanda somos muito amigas, embora eu deteste bastante as festas dela e os amigos dela, principalmente os que mexem com moda. É um povo pedante. E sempre tem um, ou vários intelectuais esquisitos que acabam se atracando comigo no canto da festa ou no quarto da Fernanda depois de eu vomitar cinco ou seis referências interessantes que eu tenho porque tenho. A Fernanda inveja um pouco minha vida, mas sempre fica falando que eu devia ter um namorado e, não raro, ela me apresenta uns caras amigos dela que "tem tudo a ver com você". Nunca tem, sempre uns caras péssimos, uns caras que usam chapéu ou suspensório e aí eu acabo ouvindo deles sobre uma peça "ma-ra-vi-lho-sa" que estreiou em um desses espaços culturais meio alternativos, ou senão sobre uma nova poetisa "en-can-ta-do-ra" que tem uma "literatura fortíssima" e que é sempre uma merda, essas poetas da nova geração são todas horrorosas, eles que não sabem. Mas daí não falo nada, até concordo, cito uns versos e a gente acaba se agarrando, indo pra minha casa e depois eu nunca mais ligo pro cara. Fernanda me dá bronca posterior dizendo que "ai, poxa, ele tinha gostado de você". Não tinha. Eu nunca gostaria da literatura fortíssima de poeta contemporânea nenhuma, e ele tinha gostado dessa menina, mas a vida é sobre fingir um pouco, também. 

Fernanda me oferece uma bebida, me bota pra sentar no sofá, aquele monte de gente. Deviam ter umas quinze ou vinte, e eu só conhecia o de sempre. O marcelo, que era gay e os amigos do marcelo, sempre um pouco chatos, mas engraçadinhos. Acontece que dessa vez tinha um elemento estranho na festa chata da Fernanda. Um cara, lá do outro lado da sala tinha uma rodinha de gente perto dele. Imaginei logo que devia ser algum papo chato sobre um novo escritor que eles tinham descoberto, ou sobre um novo conceito de moda, que é sempre um cara que diz que vai fazer moda sustentável e contrata uns bolivianos pra costurar os tecidos orgânicos pra ele no fundo de fábrica, mas as pessoas acham incrível. Não era. Cheguei perto e o tal menino falava sobre a pec das empregadas. Dizia meio alterado que é uma bobagem que se ache que elas não precisam de direitos. Daí ele tava explicando que pagava junto com os pais dele a aposentadoria da empregada dele. Eles contribuíam lá com uma quantia x pra que ela tivesse direito a se aposentar, até porque ela já vinha ficando velha e não ia ter condições de trabalhar tanto tempo mais. Ele parecia o único lampejo de vida inteligente na festa da Fernanda nos últimos sei lá, cinco anos. Suspirei fundo. Não queria ouvir mais nada porque das duas uma: ou aquele era o único lampejo de sobriedade dele e, minutos depois, ele começaria num papo sobre o quanto os artistas contemporâneos são maravilhosos, ou eu me encantaria por ele e minha vó já tinha alertado que "paixão é coisa que mata". O diabo era se apaixonar. Não dava, não podia, e eu nem acreditava nisso de destino. A vida é um negócio inevitável que quanto mais você tenta controlar, mais a lógica escapa pelas mãos. Através desse raciocínio, não fazia o mínimo sentido a sensação que eu tive quando ele cruzou seus olhos castanhos nos meus. Era uma terrível sensação de inevitabilidade: se eu conversasse com aquele cara, fatalmente eu me apaixonaria por ele. Apaixonaria de um jeito terrível, de ruína mesmo. Me apaixonaria sem volta e sem escape. E não podia: essas coisa destrói com o coração da gente. 

Resolvo que vou ficar sentada no sofá e que não vou puxar assunto, não vou oferecer bebida, não vou perguntar pra ele se ele já provou aquele salgadinho de queijo porque eu queria muito provar, mas vai que não é bom, a gente nunca sabe esses salgadinhos de festa, né? Não ia. Além do mais, ele era um desses caras bonitos, sabe? A barba grande, ruivo, a camisa xadrez, o tênis estilosinho. Ainda vinha com essas idéias meio intelectuais, meio de esquerda e então já tinham pelo menos umas sete meninas na fila inevitavelmente apaixonadas por ele, aquela altura do campeonato. Peguei uma cerveja, uns salgadinhos estranhos que acho que eram de tomate seco. Eu nem gosto de tomate seco, mas festa tem mania de tomate seco. Tomate seco e rúcula, péssima combinação. Peguei o salgadinho, a cerveja, sentei perto da sacada e resolvi que ia ficar lá pra sempre, até algum chato vir puxar conversa comigo e eu ter que concordar que, realmente, bela poetisa essa da nova coletânea de novos poetas, "poemas fortíssimos". Ele não viria conversar comigo, e eu estaria a salvo. Ou ele viria conversar comigo e falaria qualquer asneira e eu não me apaixonaria mais por ele. Ia ser somente uma impressão falsa e tola de uma pessoa que no alto de seus vinte e cinco anos, já deveria ter parado de acreditar em coisas vagas como "sexto sentido" "sentimento ruim" "inevitabilidade das coisas". Olhava São Paulo da sacada da Fernanda. De cima parece a cidade mais habitável do planeta, apesar da gente não ver estrela nenhuma. de cima não tem trânsito, não tem mendigo te pedindo dinheiro na rua, não tem gente alternativa fazendo protesto no vão do masp. De cima é calma, luz, e um ar gostoso de comecinho de noite - sempre um pouco frio. 

Penso que estar sozinha do meio de um monte de gente é uma das formas mais genuínas de solidão. Penso e suspiro, olhando São Paulo, mais de cinco anos que moro aqui, desde que vim cheia de esperança do interior fazer faculdade de jornalismo. A vida é mesmo inevitável e acho que eu nunca ia pensar que acabaria como jornalista de economia num dos jornais mais caretas do país. Eu esperava coisas mais emocionantes, ser correspondente internacional, cobrir o caderno de cultura, fazer crítica de cinema, crítica literária, roteiro gastronômico. Nada disso. Sexta feira à noite e eu tinha acabado de fechar uma matéria sobre a alta de juros. Tudo sempre em tom fatalista. Os leitores ainda acreditam em esquerda e a gente nunca pode deixar de lado o caráter fatalista das decisões de um governo de "esquerda". O jornal careta, eu e todo mundo sabe (ou devia saber) que nem existe isso de esquerda, mas a gente tem que fingir. Aos vinte cinco anos, fingir era o que eu sabia fazer de melhor. 

"Tem alguém sentado aqui?". Saco, já tinha vindo um pentelho acabar com a minha solidão. A Fernanda, a Fernanda bem que podia chamar menos homem solteiro pra essas festas. Eu que não devia ter vindo. Devia estar em casa pedindo pizza e vendo filme na tv. Mas não, quis vir. Lá vai eu me atracar de novo com um intelectual de suspensório. Podia pelo menos esse não gostar de literatura contemporânea. Prefiro os que gostam de cinema nacional. Cinema nacional é quase sempre ruim, mas a gente sempre consegue conversar sobre o eduardo coutinho, se tiver alguma sorte. Daí é melhor do que falar sobre as novas caras de literatura contemporânea. Se bem que às vezes eles querem falar daquele tal de matheus, que faz uns filmes ruins e aí eu prefiro a literatura contemporânea. "Barba ensopada de sangue". A gente vive num país em que esse é o livro mais aclamado pela crítica. E pelos intelectuais da festa da Fernanda. Virei pro lado já psicologicamente preparada pra aturar uma conversa chata sobre intelectualidades diversas, quando olho pro lado e é ele. Ele, aquele dos olhos castanhos, que pagava aposentadoria pra empregada. Ele era mais bonito de perto. Saco. Eu acho que eu podia me apaixonar por ele, se eu não evitasse ao máximo.

"Não tem ninguém sentado aí, não". Ele sorriu. Tinha os dentes certinhos. Daqueles dentes de aparelho. De perto ele era uns dois centímetros mais baixo que eu, e tinha umas ruguinhas de expressão do lado dos olhos. Acho que é porque ele era muito branco. Velho ele não aparentava ser. No máximo uns trinta e dois, mas isso já não era velho quando se tem vinte e cinco. Engraçado isso, quando chega essa idade em que gente com mais-de-trinta não é mais velho. "Por que você tá sentada aí? Toda a festa tá acontecendo pra lá". Bem, ele ainda podia ser desses caras que gostam de festa e que não gostam de gente sozinha. Devia ser uma impressão tola, eu não ia me apaixonar por ele. "Não gosto de festas, não venho a festas e prefiro estar onde a festa não está acontecendo". Ele sorriu. Sorriu como quem sorri pra aquelas crianças que dizem bobagem. Sorriu como quem sorri pra uma criança que não sabe nada da vida e jura de pés juntos que as nuvens ainda são feitas de algodão. Sorriu com um jeito de quem faria um cafuné na minha cabeça e depois diria "vocês crianças tem cada idéia". Não disse isso, mas foi quase. "Então você ainda está naquela idade de odiar festas, convenções sociais, os papos das pessoas e prefere se isolar no seu mundo, esse, extremamente mais interessante?". Disse e levantou a sobrancelha. Os olhos eram bem castanhos mesmo e ele tinha um sorriso certinho de aparelho. O diabo mostrava seu tridente e eu sabia que qualquer resposta que eu desse a ele ia soar estúpida. Eu, perto dele, era estúpida. Visivelmente estava lidando com um daqueles caras terríveis que não só parecem, mas são mais inteligentes que você. Ele era. Dois passos pra frente e era o abismo. Eu podia me apaixonar por ele. "Não é exatamente isso, mas também pode ser. Os vinte e cinco anos trazem consigo alguma prepotência, talvez uma certa enjoança. Mas eu gosto de ficar sozinha". Ele sorriu baixinho. 

"Te entendo, também gosto". Sorri também, mas preferi parar de olhar pra ele, pros tais olhos castanhos. Melhor assim. Quem sabe ele enjoava do assunto, levantava, ia pra "onde a festa está acontecendo" e tudo bem. A vida é imprevisível e não acontecer nada entre nós era tão possível naquele momento quanto casarmos três anos depois e ter um filho. Tudo pode. Só que ele não parou.

"Já percebeu que São Paulo aqui de cima parece uma cidade extremamente habitável?"

"A cidade mais habitável do mundo, talvez, estive pensando antes de você chegar"

"Daqui de cima não tem trânsito, nem mendigo pedindo dinheiro, nem taxista louco que anda na contramão. Nem tanto barulho. O chato é que não tem estrela. Lá no interior, onde a minha vó mora, dá pra ver as estrelas. Mas eu nasci aqui. Pra mim, ver estrela é um luxo de férias. Quando será que foi que a gente achou aceitável ver estrela no céu como luxo de férias?"

Pra essa gente de São Paulo, todas as outras cidades são interior. Lá da onde eu venho a gente fala "cidadezinha" "outra cidade", mas interior mesmo é lugar que tem vaca, boi. Ele era paulistano. Paulistano que doía o sotaque. O jeitinho, todo paulistano. Devia morar em moema. Esses paulistanos assim sempre moram em moema. Quem vem de fora não sabe pra onde ir e vai morar em perdizes onde tudo é caro e as padarias cobram cinco reais por um pão de queijo. Mas é perto do metrô. Eu já morei em perdizes, agora morava perto da paulista porque era perto do trabalho. Morar perto do trabalho é uma exigência pros paulistanos sem carro e eu era uma interiorana sem carro. Da onde eu venho dá pra ver estrela. Queria eu sentir saudades das estrelas de lá.

"Não sei quando foi. Da onde eu venho dá pra ver estrela. Acho que devo ser do interior, também"

Ele sorriu com os dentes certinhos e chegou com a cadeira mais perto. Quando ele sorri, aparecem umas ruguinhas do lado do olho, mas não acho que ele seja velho. Deve ter no máximo uns trinta e dois anos. Também não convém perguntar.

"Deve ser bom não ter estrela como luxo de férias, acredito eu. Mas deve ser chato não ter mercado vinte e quatro horas. A gente paga o preço das coisas, você não acha?"

"O preço da cidade onde tudo acontece é não ter estrela"

"É um preço meio caro, se você for ver. Mas o preço de tudo é um pouco caro. A gente paga o preço das escolhas que faz, as coisas tem conseqüências. Tudo tem"

Agora eu já olhava pros olhos castanhos dele e ficava bastante receosa. Ele dizia as coisas com uma certeza estranha. Uma certeza de quem sabia do que estava falando. Os olhos castanhos eram mais castanhos que os meus, quase pretos. E no meio da barba ruiva dava pra ver uns pelos loiros, perdidos. Podia ouvir o diabo chegando e a minha vó dizendo que paixão é coisa que mata. Talvez eu só estivesse acreditando num desses sentimentos vagos que a gente acredita de vez em quando. Talvez eu devesse ter evitado mesmo aqueles olhos castanhos.

"Por exemplo, você ter sentado aqui ao invés de continuar na festa tem o preço de você não estar aproveitando a festa e acabar ficando com os salgadinhos ruins e a cerveja quente"

"Mas tem a vantagem de ter te conhecido. A vantagem de não aguentar gente chata. A vantagem de olhar esse céu sem estrela"

Sorri, mas eu não tinha os dentes certinhos. Certamente ele não me achava genial, ou coisa assim. Eu era mais uma. Ele deve conhecer várias meninas interessantes todos os dias. Tem esse jeitinho dele de paulistano, de quem sabe puxar conversa. As frases, todas as frases bem colocadas. As ruguinhas do lado do olho quando ele ri achando graça de verdade. O diabo. O diabo era ruivo. 

Na sacada da Fernanda faz frio, e eu sempre insisto em ir às festas de vestido. Ele colocou a mão na minha coxa numa tentativa esperta de aproximação. Devia estar acostumado. Deve ser uma cilada sem fim.

"Você parece estar com frio"

"Tenho essa mania besta de vir de vestido em todas as festas e esquecer que faz frio em São Paulo de noite"

"Gosto de mulheres de vestido"

"Não uso vestido porque os homens gostam, uso porque não gosto de sair de calça de noite. Frescura minha"

"Não sei porquê, mas desconfiei que você ia me dar uma resposta dessas. Divide a conta do motel também?"

"E a do restaurante"

"Mais um exemplar dessas horrorosas mulheres feministas que acham que tem o direito de ser donas da própria vida"

Eu fiz um olhar de indignação, mas eu sabia que ele não era machista. Era piada, uma dessas piadas bem feitas. Ele me sorriu com as ruguinhas do lado do olho. Eu gostava das ruguinhas. Colocou a mão na minha coxa mais uma vez e passou a mão no meu cabelo.

"Você sabe que eu fui canalha só pra provocar, né? Gosto desses exemplares horrorosos que acham que tem o direito de ser donas da própria vida. Tem que ter coragem pra ser mulher e ser assim, não sei se eu teria"

Eu sabia. Sorri.

"Desconfiei que tinha sido piada, e é bom que tenha sido. Caso contrário levantaria e iria embora"

"Não esperaria outra postura. Gosto de você"

Ele era rápido. Provavelmente nem tinha gostado tanto assim de mim. Eu gostava dele. Dos olhos castanhos, da ruga do lado do olho, do jeito de sorrir com os dentes certinhos. Gostava da barba que tinha fios ruivos e do jeito dele de pegar no meu cabelo. O diabo. Aquilo era o diabo.

"Também gosto de você"

Sorrimos.

"Tenho una proposta estranha pra você e você tem todo direito de não aceitar ou de sugerir outra coisa, mas é que eu acho que você é o tipo de pessoa que aceitaria esse tipo de coisa, e não entenda tipo aqui como "tipinho", mas, enfim. Essa festa tá chata, essas pessoas são insuportáveis, a comida já acabou. Eu gostei de você, você gostou de mim. Eu moro sozinho e acho que você também, mas escolher a casa de um dos dois é deixar um território conhecido pra uma das partes. E se a gente fosse agora pro motel, pagasse uma pernoite e fizesse o que a gente tivesse vontade? Eu quero dizer, ao chegar lá a gente conversa, ou a gente faz sexo, ou a gente faz sexo e depois conversa, ou a gente faz sexo e não conversa nada, ou a gente só conversa. Eu gostei de você, eu tô com meu carro. Eu deixo você pagar metade"

Pronto. Não pode aparecer um cara legal que ele vem com proposta estranhona. Motel. Agora o cara quer me levar pro motel e diz que a gente pode ficar a noite inteira conversando. Nada faz sentido. Se bem que, ele podia ter me mandado pra casa dele e na casa dele sim ele podia fazer o que bem entendesse comigo. No motel dá pra gritar, né? Esmurrar a porta. Além do mais, a Fernanda só chama gente que ela conhece pra casa dela porque morre de medo de assalto. Ela não ia chamar um louco que estupra meninas no motel e rouba as carteiras delas. Não ia ter como. Ele parece ser o último lampejo de vida inteligente, eu sou uma mulher livre. Sou? Não sou? Livre? Será? Ir parar no motel com um cara desconhecido só porque ele tem essas rugas bonitinhas do lado dos olhos e por causa desse sentimento besta de que eu ia me apaixonar por ele? Diabo, já está acontecendo. Eu tô cogitando ir. Ninguém em sã consciência faz uma coisa dessas. Imagina a manchete? Jornalista de economia do jornal careta de São Paulo é encontrada morta em motel. Minha mãe ia ficar louca. Coitada. Acha que a filha tá trabalhando sério em São Paulo e ela tá indo pro motel com desconhecidos. Dane-se, vou. O número da polícia tá na discagem de emergência. Morro de medo de estupro. Eu não ia morrer.

"Tudo bem, eu vou confiar em você. Vamos"

Ele sorriu e dessa vez as rugas apareciam mais. Acho que ele parecia feliz de fato. Demos tchau pra Fernanda, que me olhou com aquela cara de "espero que dessa vez dê certo". Eu não sabia dizer. Entramos no carro dele e ele comentou que eu parecia assustada. "Acho que nunca fiz isso antes". "Se te tranqüiliza, eu também não". Sorrimos. A rádio do carro tocava Smiths. Eu gosto de Smiths, ele também. Nós dois gostamos muito do Thom Yorke, e ele não gosta muito de literatura, menos ainda da contemporânea. "Li umas coisas, mas não sou louco de livros, não". "Você tem cara de quem lê bastante". "Leio". Ele gostava de filosofia, mas encasquetava com o Nietzsche. Eu preferia o Sartre, embora soubesse que o Nietzsche é muito mais interessante. Os gostos, às vezes, não fazem muito sentido. Ele não vomitava referências, mas tinha um jeito lúcido de falar sobre qualquer coisa. Riu do meu jornal careta. "Lá eles acreditam em esquerda, né? Mas são de direita". Era engraçada a voz que ele fazia quando estava sendo irônico. Era um tom de voz. Uma coisa dele. "Eles não acreditam em nada, quem acredita são os leitores". Ele sorria e as rugas apareciam. "Se eu te contar que eu vim ver o Nirvana aqui, isso mostra que tem uma lacuna enorme de tempo entre nós?" "Depende com quantos anos". "Doze". "Ninguém vai ao show do nirvana aos doze anos". Ele me olhava com uns olhos de desprezo. "Você tem uns conceitos muito formados, sabe? eu vim, meus pais me trouxeram". Agora era eu quem sorria. O diabo,ele era o diabo. "Tenho trinta e um anos, e você?" Vinte e cinco, a lacuna temporal entre nós podia ser enorme, mas ambos estávamos vivos quando caiu o muro de berlim". "Exceto pelo fato de que eu já jogava bola e você mal sabia formar na cabeça o conceito que alemanha era um país". 

Eu não devia ter continuado a olhar para aqueles olhos castanhos pela razão que agora ficava muito clara. Dois passos pra frente e era o abismo. Ou o motel. Os motéis são sempre iguais com aqueles quartos com ou sem piscina, com aquelas duchas estranhas, seus monte de botões. A rádio do motel tocava uma músicas legais. Depois percebi que era porque a gente tinha colocado na mesma do carro. Ele abriu o frigobar e me ofereceu cerveja. Bebemos. Eu parecia conhecer ele há anos. Tantos anos que até os silêncios não traziam mais constrangimento. Anos, talvez uma outra vida se eu acreditasse nisso. Mas não acreditava. A vida é inevitável. E imprevisível. Tudo que eu sabia é que eu estava numa cama branca de motel com um semi desconhecido. E depois de comentar sobre todas as estranhezas de um quarto de motel "é muito botão, eu fico confuso", nos beijamos.

"Talvez se a gente fizer sexo logo e uma vez isso diminua a tensão sexual da conversa"

Deve ter sido a coisa mais idiota que eu já disse, mas ele sorriu com as rugas bem aparentes e isso era sinal de que ele tinha achado engraçado. Sexo é sempre sexo, mas esse tinha alguma coisa de especial. Parecia que, de algum modo, ele já sabia o que fazer. E eu sabia também. Então sabíamos. Sabíamos e fizemos. Não sei precisar com certeza quanto tempo depois, estávamos os dois debaixo dos lençóis do motel conversando. Ele parecia arranjar muitos assuntos e eu tinha a estranha sensação de que a cada vez que ele falava alguma coisa em mim renascia. É como se ele me conhecesse partes a mais do que eu já conhecia. É como se quando ele falasse eu pudesse entrar em contato com aquilo que eu sempre fui. É como se ele conhecesse partes de mim que eu ainda não tinha visto. Era como se reencontrar. Com o quê, exatamente, eu não sabia. Acho que ele não sabia também, mas continuava falando. "Gosto de você", ele dizia e sorria com as rugas do lado do olho aparecendo. Será que quando eu tiver trinta anos também vou ter alguma ruga? Será que quando eu tiver trinta anos ele ainda vai estar presente na minha vida de algum jeito? Eram algumas das várias questões que eu não sabia responder. Algumas ele respondia. Outras era eu. Às vezes ficávamos os dois pensando em questões que nunca vão ter resposta. 

"Você acredita em destino?"

"Não. Acho que é uma justificativa que as pessoas arrumaram pra não ter que ter a responsabilidade pelas suas escolhas"

"Fico pensando que é um jeito de juntar os acontecimentos de modo que eles façam algum sentido"

"Isso também, é mais fácil jogar pro universo a responsabilidade"

"Isso aqui é o que, se não é destino?"

"Minha escolha, sua escolha e a vida acontecendo. A vida é imprevisível. Não dá pra saber o que vem desse encontro"

"Gosto de conversar com você"

"Também gosto. Por enquanto, essa é uma das certezas desse encontro"

"Mas amanhã a gente pode odiar conversar um com o outro"

"Sempre pode"

Ele me olhava com aqueles olhos castanhos e passava a mão no meu cabelo. Eu podia ouvir a minha vó dizendo que "paixão é coisa que mata". Eu sabia que tinha alguma coisa de diferente nele. Alguma coisa que tinha nascido e eu não sabia o que fazer. Era como se eu conhecesse ele de anos atrás. Era como se eu soubesse que teria que ser ele. Mas eu não acredito em destino. Nem ele. Então não podia ser nada. Eu só sabia que se eu fosse pedir alguém, nessas listas bestas que a gente faz de "homem ideal", talvez nem eu soubesse que queria era um homem tipo ele. Eu nunca pediria rugas do lado dos olhos que aparecem quando ele sorri. Também não pediria fios loiros na barba ruiva. Talvez escolhesse alguém mais alto. Meu primeiro encontro ideal não aconteceria no motel. Se eu tivesse idealizado, ele nem teria olhos castanhos. Talvez gostasse mais de literatura. Talvez me abordasse com uma conversa qualquer sobre o livro que eu estava lendo. Mas era isso, afinal. Com ele eu era eu. Ele veio trazendo coisas que eu nem sabia que eu queria. Tinha de ser daquele jeito. Dois passos pra frente e eu caio no abismo. Eu sabia que a paixão era o demônio, era encosto. Eu via ele dormir encostado no meu ombro e sabia que eu não devia ter continuado a olhar naqueles olhos castanhos que eu preferia que fossem azuis. 

A paixão é desajeitada, e eu não vou saber o que dizer pra ele quando ele me deixar em casa. Nem como começar uma nova conversa. Nem ser engraçada e dizer que eu quero ir no cinema e pagar nossos ingressos. A paixão vem como coisa estranha que faz a gente querer chocolate e cigarro, que faz a gente andar de um lado pro outro esperando que exista palavra e horário certo pra se mandar uma mensagem que sempre vai chegar em hora inoportuna e com erros de ortografia. Vou olhar da sacada de casa e lembrar dele me falando de São Paulo sem estrelas. Capaz de eu baixar um disco do nirvana e rir pensando como raios uma criança de doze anos vai num show de rock desses gritando "rape me rape me". Ele já chutava bola quando caiu o muro de berlim e eu nem conseguia formar a idéia de que a Alemanha é um país. Ele nasceu em São Paulo sem estrelas e eu nasci no interior vendo estrela todo dia antes de voltar pra casa. Mesmo assim nos encontramos. Podia não ter acontecido. Tem muitas coisas que eu não sei sobre ele, mas enquanto ele dorme encaixado perfeitamente no meu ombro eu sinto que conheço ele há séculos. Soube desde o primeiro olhar, mas eu não acredito em paixão a primeira vista. Fico querendo encontrar sentido nele e em mim, torcer pra ser feito do destino e ele ser uma daquelas coisas que tem-que-ser porque o que tem-que-ser sempre vinga, só que já não sou esperançosa assim. Só sei que a paixão é o diabo e que o diabo está se apossando do meu corpo. Mas a vida é imprevisível e amanhã a gente pode odiar conversar um com o outro. Sempre pode. Nós odiamos isso na vida, a imprevisibilidade. Eu só tinha uma certeza: essas coisas destrói com o coração da gente. 

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