os últimos dois anos me envelheceram quinze anos.
você me olhava e sorria.
o seu sorriso me irrita porque você tem os dentes certinhos. dente de quem usou aparelho na infância. eu nunca usei aparelho na infância, não tenho os dentes certinhos e detesto sorrir em foto. sempre saio feia. você evita as fotos sempre que pode. mania besta, já pensei. hoje entendo. também não gosto muito de fotos. pelo menos comigo você tira. depois guarda. tenho uma pasta no computador com o seu nome. gosto das nossas fotos, mas o seu sorriso me irrita. me irrita porque você tem os dentes certinhos de quem usou aparelho na infância. eu não usei aparelho na infância e raras vezes sorrio. você diz que não tem porque, que o meu sorriso é bonito. na pasta das nossas fotos tem fotos minhas sorrindo. tem uma, em especial que gosto muito em que eu estou sorrindo pra você. você tirou quando disse que gostava muito do jeito que eu te olhava. a gente nunca sabe o jeito que olha pra uma pessoa, só tem uma noçãozinha. aí você tirou a foto. eu te olho de um jeito bonito. deve ser parecido com o jeito que você me olha. eu só gosto do meu sorriso quando ele sorri pra você. eu não tenho os dentes certinhos.
você me olhava e sorria e quando você sorri se formam rugas do lado dos seus olhos.
acho que você está ficando velho, mas pode ser só uma impressão.
acho que todos nós ficamos velhos dia a dia. os últimos dois anos me envelheceram quinze anos.
quando eu digo isso você sorri e diz que é bobagem. eu não fiquei velha coisa alguma, eu amadureci. acho engraçado quando você diz que eu amadureci porque você não me conhecia antes pra saber se eu era mais ou menos infantil. em todo caso, você tem razão. não sei se o amadurecimento envelhece a gente, mas acho que envelheci. me sinto cansada. você me diz o tempo todo que a vida cansa a gente. você tem seis anos a mais do que eu, e nem parece. quando a gente anda na rua ninguém pergunta. da primeira vez que você conheceu meus pais eles se assustaram porque você já tinha casa, carro, um gato e planos de investimento. ninguém percebe que você é velho, ninguém nota as rugas que já se formam quando você sorri. só eu sei das suas rugas. eu gosto delas porque elas aparecem quando você sorri pra mim.
você não é velho. eu sempre te digo isso e aí você desanda a contar episódios que não participei. as diretas já. o fato de você ter nascido num brasil ainda não democrático. toda uma história que existe e eu não vivi. você lembra de quando os ramones ainda não haviam acabado. nessa época, se muito, eu sabia uma letra inteira do sandy e jr. talvez nem isso. você ri e diz que eu sou uma criança. você também é, só que nem parece.
estamos sentados na sua cama e não assistimos tv porque isso nos distraí.
eu gosto muito mais de tv do que você, muito mais de livros do que você, e você entende mais de cinema do que eu. vemos muitos filmes e às vezes você assiste filmes na tv enquanto deitada no seu colo eu leio livros. eu não ligo quando você para a minha leitura pra contar uma cena, e você não liga quando eu paro suas cenas pra te ler um pedaço do livro. às vezes você desiste do filme e me ouve contar histórias. às vezes eu desisto do livro e vejo o filme com você. somos um casal besta como qualquer outro casal besta que pode acabar um dia porque não concordamos mais com a marca de leite que devemos comprar. eu sei que um dia você não vai mais achar meu café genial e eu não vou mais achar que o seu beijo é o melhor beijo de todos. você sempre me disse isso: que nada é eterno. eu concordei com você que eu não acredito em certezas. "uma escolha nunca é definitiva, ela está sempre sendo feita; razão pela qual o casamento é imoral". gostava dessa frase da simone de beauvoir antes de te conhecer, e quando te conheci me encontrei comigo mesma. achamos o casamento imoral mas cogitamos morar juntos. a vida é feita de ironias.
estamos sentados na sua cama e conversamos sobre a vida, desse jeito que fazemos sempre.
anos de diferença nos separam, mas eu sei que eu já sou você, só que mais nova. eu sei que de algum jeito já sou tudo isso que você pensa, já sou a moradora de um apartamento pequeno, mas bem decorado. já sou sozinha com meus gatos e não tenho sonhos de casar. eu olho no fundo dos seus olhos castanhos e enxergo os meus. quando eu te conheci e eu enxerguei coisas em mim que eu sempre soube que existiam, mas eu nunca tinha percebido. é como se você soubesse coisas sobre mim que eu já sabia, mas não tinha exteriorizado.
o nietzsche diz que o amor é uma espécie de egoísmo. eu amo tudo que você faz em mim, mas não te amo.
eu acho que te amo desde a primeira vez que eu te vi. lembro com exatidão de certas coisas sobre você. a roupa que usava, as músicas que tocaram no seu carro. posso narrar feito história de filme tudo isso que aconteceu com a gente. eu fingi que não te amei porque te amar não estava nos meus planos. você foi uma curva da vida, um acidente, uma pedra no meio do caminho. no meio do caminho havia você. no meu do teu caminho havia eu, pedra. foi você que me perguntou sobre paixão quando nos vimos pela segunda vez. eu não sabia o que te responder. você dizia que as coisas ou eram, ou não eram. eu te respondi que então era. era paixão. você me disse que vinha sentindo a mesma coisa, só que não podia ser naquela hora. era estranho. as coisas não tem hora certa pra acontecer, mas acontecem. eu era uma pedra no meio do seu caminho. no nosso caminho havia seu outro relacionamento. "eu gosto dela também, você entende?". entendo. entendo mesmo, sinto a mesma coisa.
você é tão pragmático que até seus dentes são certinhos. te imagino pensando que se os dentes eram tortos, é porque precisavam de aparelhos. aí usou o aparelho. eu pensei nas várias variáveis e acabei não usando. deixei pra depois. deixo tudo pra depois. até você eu deixei.
pragmático, segundo o dicionário, é "aquele que contém considerações de ordem prática". foi assim que você me quis e teve, foi assim que você decidiu em conversa rápida que me amava e não amava a outra, e aí eu concordei com você que eu te amava e ficamos juntos. você não me deixou relativizar e foi melhor assim.
hoje estamos deitados na sua cama e você encosta no meu ombro dizendo o quanto o seu trabalho é idiota, mas que não tem problema porque ele te dá dinheiro. eu sorrio dizendo que nunca pensei que além de gostar de um trabalho ele pudesse ganhar dinheiro. você me diz que a vida tem lá seus jeitos estranhos.
você me olha e sorri e eu acho que envelheci quinze anos nos últimos dois anos.
eu já tenho a sua idade e você não sabe.
você morde o meu pescoço enquanto eu falo e eu percebo que somos um casal besta como qualquer outro casal besta que divide a cama numa quarta feira à noite depois de um dia cansativo de trabalho. podemos acabar semana que vem, quando eu começar a achar essa sua mania de morder meu pescoço enquanto eu falo bem irritante. talvez ainda duremos dois ou dez anos e casemos, mesmo acreditando que o casamento é imoral.
confesso que já pensei que se eu tivesse que refazer a escolha, a escolha sempre seria você, mas acho isso um pensamento besta. acho que somos meio bestas quando estamos apaixonados, você me disse isso uma vez que me ligou no meio da tarde pra ouvir minha voz. você diz que eu tenho uma voz diferente quando falo com você, mas eu não sei que voz é essa. às vezes suas mensagens não fazem sentido algum, como aquela que pergunta se dostoiévski é um clássico porque tinham te perguntado se você gosta de clássicos. te respondi que era. você me replicou que não queria ser um desses caras que gostam de clássicos, mas certas coisas são inevitáveis.
nós dois somos tão diferentes do resto do mundo, mas fazemos compras juntos e cantamos em uníssono as músicas que amamos nos shows das nossas bandas preferidas. nós dois viramos um clichê enorme todas as vezes que não queremos ser clichês.
você tem um jeito de me olhar que só acontece quando você me olha e eu te olho e sorrio de um jeito que só faço com você. eu só gosto de sorrir quando te sorrio e isso já faz de nós mais um casal besta no meio de um emaranhado de outros casais bestas, embora você nunca diga que quer ficar comigo pra sempre porque considera isso sem sentido. eu também considero então a gente não diz isso, mas diz
toda vez que diz que "você é a única pessoa com quem eu gostaria de estar agora".
você me olha e sorri e eu acho de um jeito besta que você é uma versão estranha de mim vivendo em outro corpo.
quando discordamos e eu gosto, penso de um jeito besta que você me complementa.
"eu gosto muito de conversar com você", foi nosso primeiro "eu te amo" não dito, depois de nove horas ininterruptas de conversa.
Eu odeio clichês, mas soube que eu te amaria da primeira vez que percebi que seus olhos formam rugas quando você sorri. Seu jeito de não acreditar na vida combina com o meu e me faz suspirar doído. Amor dói. Amor dói e eu odeio seus dentes certinhos.
Me olho no espelho do seu banheiro e te vejo me olhando de volta.
Sei que envelheci quinze anos nos últimos dois anos, mas você me olha e sorri com seus dentes certinhos e eu quase acho, besta, que eu envelheci tanto foi pra te encontrar.
Mas nós podemos acabar depois de amanhã, quando você detestar o fato de eu cantar sempre a mesma música. E então eu aproveito enquanto você ainda me sorri de um jeito diferente do que sorri pro resto do mundo. Você me olha e sorri. Por hoje, estamos a salvo.
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