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14.4.13

carta aos olhos de um pai

Pai,

Pai, você está no quarto do lado, já quase adormecendo (ouço seus roncos daqui), e eu não fui te dar beijo de boa noite nem desejar boa sorte na sua cirurgia porque não sei falar assim tão bem com você, nem te desejar essas coisas sentimentais que você nunca me ensinou. Você, pai, sempre forte, sempre seco, nunca me disse "eu te amo", exceto quando ficou doente de depressão e, por algum desequilíbrio químico, perdeu a vergonha de me abraçar em público e me perguntar da minha vida. Você, pai, está prestes a entrar naquela sala de cirurgia pela terceira ou quarta vez e eu já não sei o que esperar de você, dos médicos, dos seus olhos, da gente. Vou mandar pela mãe um "boa sorte", vou chegar descompassada quando você já estiver no quarto e te dar um abraço desajeitado como são todos os nossos abraços. A mãe, sempre ali, sempre intermediando as conversas que não sei ter contigo e que você não sabe ter comigo, embora tenhamos melhorado um pouco de uns tempos pra cá.

É muito difícil ser seus olhos, pai.

É muito difícil ter que te guiar pela cidade, te mostrar quando estão ou não estão vindo os carros, sobressaltar o coração a cada vez que eu distraio um pouquinho e não vejo que você já deu dois ou três passos sem mim. É muito difícil tudo isso, que eu prefiro não contar pra ninguém porque ninguém nunca viu o pai perdendo a visão e não entenderia. Meus problemas são meus. Nossos problemas são nossos. Me lembro do dia em que você acordou sem enxergar quase nada, e disse que uma folha escrita estava em branco. Fui chorar no banheiro, baixinho, e naquela hora, mesmo que eu não esteja certa sobre deus ou coisa assim, eu implorei com toda a fé que ainda existe (mesmo sendo pouca) pra que você não deixasse nunca de me enxergar. Deixou. Por vezes eu vejo que você não me vê sentada na sala, e procura com olhos meio mortos qualquer movimento que eu venha a fazer. Você me conhece por vulto e voz. São tantos altos e baixos. No fim do ano, quando você ficou quase bom eu achei que conseguiríamos respirar. Achei que finalmente seus jogos de loteria seriam de novo seus e que eu não precisaria mais ter a função chata de te acompanhar quando você sempre preferiu ir sozinho. Não que eu não goste. A rotina de dividir café com você acabou me deixando mais próxima, e qualquer proximidade na nossa relação estranha há de ser comemorada. Mas você é como eu, pai. Não gosta de depender de qualquer outra pessoa que não você mesmo.

Pai, eu fico esperando que logo você possa viver pela cidade sem mim e sem a mãe. Não porque não gostamos da sua companhia, mas sim porque eu sei que você prefere ser bicho solto na vida. Eu sou bicho solto na vida e entendo a sensação. Vez ou outra vou em lugares que lembro que você me deixava de carro e entristeço. Me entristece o mausoléu que virou nossa garagem. Você entrando vez ou outra nos carros pra que eles nunca deixem de funcionar, mas sabendo que não mais os dirigirá, que não mais xingará os maus motoristas da nossa cidade, que não mais me buscará três da manhã na casa de nenhuma amiga minha. Me entristece os jogos que você não pode mais fazer sozinho, o fato de você ter que assistir o futebol ao invés de jogar, o jeito sem focar com que você me olha. Temos que ir acostumando. Acostumando com seu jeito que agora enxerga o todo e esquece os detalhes. Com seu jeito de ver meio embaçado, com as coisas que pra você não existem. Não existem pra você os carros no escuro, os preços do mercado. Não existem diferenças claras entre pêssego e ameixa. Você segue pelo rumo, pelo pouco que vê. Eu te sigo preocupada, querendo que algum dia isso tudo passe e que você volte a enxergar pelo menos tudo aquilo que ama.

Eu queria muito que depois dessa cirurgia você voltasse a ver com mais clareza, que você não precisasse depender de mim e da mãe (que eu sei, às vezes parecemos cansadas e impacientes), pra ir fazer suas caminhadas de uma hora e quinze. Eu queria que você conseguisse preencher de novo seus jogos da loteria, que conseguisse ir todos os dias ao centro pra resolver suas urgências, que a gente sabe, nem são tão urgentes assim, mas que são as suas. Eu queria que se olhar focasse de novo, que você conseguisse perceber as diferenças das nuances do meu cabelo que vive mudando de cor. Eu queria que você fosse melhorando a ponto de conseguir perceber no seu futuro neto (se um dia você tiver um), os pequenos traços que ele com certeza vai herdar de você. Eu queria que você achasse minhas roupas estranhas, e que voltasse a escolher presentes que eu não gosto no meu aniversário. Eu queria nunca mais ter que digitar a senha do seu cartão de crédito. Eu queria que você conseguisse ler esse texto, porque eu sei, eu sei pai, que essas são coisas que eu não vou te dizer assim, pessoalmente. Você não me ensinou, eu não aprendi. É dessa carência de saber dizer que surgiu essa minha necessidade besta de escrever. Você só leria isso se eu pudesse deixar essa carta escondidinha embaixo do seu travesseiro e você lesse ela enquanto eu estivesse fora de casa, depois não comentasse nada comigo. E não ia precisar dizer. Seu silêncio diz. Seu silêncio diz que você me ama mesmo quando eu não sou a melhor filha do mundo e é nesse silêncio que eu queria que você soubesse que eu ficaria cega de um olho inteiro se fosse pra você voltar a ver mais ou menos bem dos dois que já não executam tão bem a função.

Ah, pai, enquanto você dorme no quarto do lado eu me desespero em silêncio pra que você não ouça. Pra que você não saiba. Porque eu sei que você sofre mais quando eu sofro também. Eu sei que pra você é mais fácil pensar que eu não ligo muito, que eu vivo nesse meu mundo a parte, nesse computador que eu não largo Então eu finjo. Finjo que é fácil, que eu tirei de letra, que isso nem me abala tanto assim. Por dentro eu sangro. Enquanto você dorme no quarto ao lado eu torço pra que depois dessa vez você venha melhorando sempre e que a nossa vida fique mais fácil. Nossos olhos tem nos dito tanto. Os seus olhos que veem pouco, os olhos cansados da mãe, os meus olhos tristes. No fundo desses olhos todos, pai, eu sei que tem amor. Pai, eu sei que apesar das vezes que eu canso, eu não me arrependo nem um pouco de ter ganhado a função (ainda que a contragosto), de ser seus olhos. Eu só queria não mais os ser porque eu quero que você enxergue o mundo do jeito que você sempre viu. Através de mim ele é incerto. Através de mim ele é outra coisa.

Pai, enquanto você dorme no quarto do lado eu vigio e rezo, até rezo, pra que tudo isso passe, pra que você enxergue, veja, transveja. Eu fico torcendo baixinho pra que um dia você possa ler tudo isso que eu queria te dizer e não sei. Fico torcendo baixinho pra que essas lágrimas que agora caem dos meus olhos curem os seus. Pai, eu espero que com os olhos da alma esteja bem claro que você e a mãe são meus amores-maiores. Ainda que você não possa ver assim, claro. Ainda que você não perceba meus olhares tristes, meus olhares preocupados, meus olhares de amor,  eu torço todos os dias por você, pai. Eu amo você todos os dias, pai. No claro ou no escuro. Pra sempre.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o texto, até eu fiquei comovido com essa história.