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20.4.13

Canção pra quando você voltar


"E quando a noite passa por mim
Eu rego o seu jardim
Você já vai voltar"
(Canção pra quando você voltar - Leoni) 


Seu avatar permanece na coluna esquerda mesmo em sua ausência. Jeito estranho que você tem de ser lembrado sem saber. Não precisava ter foto pra que eu me lembre que faz uns dias que você não aparece. Uns dias que você não me conta da sua vida e que eu não sumo. Eu reapareço, você some. Balé desencontrado das nossas pernas compridas. A vida tem poucos denominadores comuns. Longe de mim você tem seus afazeres, toda uma vida, uma casa, um quarto com uma janela que dá pra uma escola onde eu ainda lembro que as crianças usam calças vermelhas. Um dia presta atenção que o uniforme é feio. Todos os uniformes de colégio são um pouco feios, imagino que o seu também era, embora pouco saiba sobre você-criança que nasceu dois anos depois de mim, depois que nem existia mais muro de berlim e divisão das Alemanhas. Quando você nasceu o Pedro Bial já tinha voltado pro brasil e você tinha três anos na copa de 94, razão pela qual não deve ter imitado meio besta o galvão gritar "tafarel" (só se tiver memória falsa). Eu já tinha cinco anos e já sabia ler gibis da turma da Mônica, porque aprendi a ler muito cedo, porque aprendi várias coisas cedo demais e outras tarde demais. Você trabalha, e eu não. É por isso que às vezes penso se você tem muito o que fazer, quantos trabalhos pra entregar até segunda feira, quantas noites em claro, quantas olheiras, a quantas aulas você chegou atrasado? Quantos cigarros você teve que acender pra aplacar a tensão? Alguns vários, imagino, e às vezes ao ver fumantes lembro que você voltou a fumar e acho uma mania besta porque se você se visse fumando de longe ia perceber que não combina tanto assim com você, por mais que você tenha um ar descolado (que todos tentam ter, diga-se de passagem), ao acender e tragar essas milhares de substâncias tóxicas. 

Os cigarros, assim como as garrafas de bebida as quais recorro semanalmente pouco podem fazer para melhorar a vida, que é, te digo, completamente inevitável e imprevisível. Não acho que você tenha paciência pros meus arroubos filosóficos. Não agora. Sei, que você tem muito a fazer, sempre muitos trabalhos e talvez nem tenha tempo de ler esse texto e todos os outros que vieram antes desse, mas é que eu sei - e você deve saber também - que os textos são feitos de intenção e pouco importa o tempo em que vão ser lidos, desde que eles sejam lidos. Em distância, essas palavras são sempre o que posso fazer por você. Talvez, e digo talvez como quem encara uma possibilidade (porque podia ser que sim, e podia ser também que não), se não houvesse distância entre nós eu soubesse mais dos seus trabalhos, dos seus textos, visse as suas olheiras e olhasse com ar de enfado todas as vezes que você acendesse um cigarro. Talvez também você não tivesse tempo pra sair, ou pra visitar a minha casa. Eu, que te faria um bolo, que sei fazer café coado, que ficaria te contando bobagens pra ver se te distraio e te ouviria, sempre atenta, contar das suas aulas intermináveis, dos seus projetos que terão de ser refeitos, dos seus trabalhos de prazos curtos. Ia até gostar da função de ouvir desabafos oferecendo bolo e café, talvez uma janta (e saiba que eu sei cozinhar, embora você nunca tenha provado da minha comida), talvez até contasse feliz os minutos antes de ouvir o interfone tocar já antevendo que era você a visita a aparecer cansado e com olheiras de quem não dorme direito faz dias, porque a vida nos açoita com o chicote das obrigações. 

Eu também teria meus problemas pra contar, porque os trabalhos são chatos mesmo quando são bons e os professores de mestrado são desinteressantes mesmo quando são maravilhosos, porque a vida é chata na maioria das vezes. Passaríamos muito mais tempo no metrô e nos livrando de obrigações corriqueiras do que sendo felizes, mas há de se saber, depois de certo tempo vivido, que ser feliz é coisa que se faz nos intervalos e, às vezes, quando estamos distraídos. "Sentir é estar distraído", já dizia o Alberto Caeiro, o heterônimo campestre de Fernando Pessoa, que não sei se você gosta ou prefere o Álvaro de Campos, ou quem sabe o Ricardo Reis. Ainda há coisas que eu não sei sobre você, porque na verdade ainda guardamos a mania de nos encontrar corridos ou em lugares cheios de gente. Não que eu precise saber tudo, você também não sabe tanta coisa assim, mas às vezes fico pensando pequenas coisinhas sobre você. Essas pequenas coisinhas que às vezes pensava enquanto te via dormir porque seu ronco não me deixava adormecer. Onde será que estaremos daqui dois, cinco ou dez anos? Será que seremos escritores de sucesso, ou será que teremos vida besta de todo mundo, essa vida de acordar às sete da manhã e chegar em casa perto da hora do jornal nacional? Estaríamos juntos? Nos falando com regularidade? Nos odiaremos? Casaria eu com um homem que nunca nem havia aparecido na história e que cursa economia e que pouco lê? Estaria você com alguém otimista, sorridente, sem arroubos de desalento com a vida e que acredita em Deus e te pediria pra casar na igreja, ou pelo menos em presença de um padre? Invento histórias. Essa é a minha ocupação. Invento histórias pra mim e pra você, invento histórias bonitas e trágicas, invento você me fazendo feliz e me fazendo sofrer. Invento porque essa é a minha ocupação.

E penso, o que será que você está a fazer quando some, e aí te imagino cansado, olhando com a mão segurando o queixo pro computador, limpando os óculos de quando em vez, saindo pra cozinha de vez em quando pra tomar água e comentando qualquer coisa com seu colega de casa que me odeia tanto quanto as pessoas de bem odeiam o marco feliciano. Leio as colunas do pondé e me pergunto se você gostou. Às vezes rio porque sei que sim. Guardo trechos de livros que leio pra comentar com você mais tarde. Guardo as minhas novidades pra te dizer mais tarde. Sei que logo também não vou ter tempo porque tenho um mestrado pra entrar, concursos pra fazer, uma vida inteira pra resolver. Aprendi a ler na copa de 94, mas sou lerda com o mundo. O mundo não me representa, você se dá bem melhor do que eu com ele. Ao menos você trabalha, e eu não. Trabalha e acende cigarros cuja fumaça não me incomoda porque estamos longe demais. Quilômetros e quilômetros, é como se houvesse um muro de berlim e cada um de nós estivesse numa parte da Alemanha. Um dia, eu sei, logo, parece, o muro cai. Não que isso seja parte determinante da história toda. É só um muro, afinal de contas. Estamos os dois dividindo a mesma Alemanha. Próximos, de alguma forma sempre estivemos assim meio perto. O resto todo é isso, é você que faz falta quando some porque de certas pessoas a gente tarda a esquecer. Saiba que fico aqui, de longe torcendo para que seus afazeres sejam cumpridos e que seu cansaço não te esgote demasiado. Fico escrevendo um livro que já odeio e que acho que continuo só porque você disse que um dia queria ler e mostrar pra todo mundo. Gosto de você, você sabe, é tudo que tenho a dizer por hora. E se você me pergunta "gosta como?" eu te replico com "gosto, ué" e fico assim achando chato às vezes não poder te chamar pra um café e depois te levar na livraria pra você me contar dos livros que gosta e eu ficar quietinha porque gosto de ouvir você falar. Fico achando chato não poder rir quando você olha no espelho e fica triste porque está ficando careca e vai ficar careca e daí quem sabe deixe de ser tão atraente para as mulheres - uma de suas grandes preocupações. Acho chato, e só.

Seu avatar permanece na coluna esquerda e eu sei que um dia você volta querendo que eu leia qualquer coisa pra saber se "ficou bom mesmo", e eu sempre acabo dizendo que ficou sim, exceto quando resolvo desgostar dos seus poemas e você diz, convencido e trouxa, que é ciúme e a verdade é que de repente percebo que parei de querer te guardar numa caixa ou num vasilhame ou seja lá onde eu queria te guardar pra que você não se fosse porque percebi que, assim como eu, você é um bicho chato e solto que só fica quando quer e vai embora quando a gente quer-que-fique. Então que seja, espero que seu dente do siso tenha parado de doer. Sei que dói porque te li, sei que você sabe de várias coisas sobre mim porque me lê e então deixo esse texto meio ruim aqui pra quando você voltar, que eu sei que você volta, que eu sei que a gente se sente as ausências mas não admite nada porque a gente é chato e solto, porque a gente gosta de inventar histórias, e que mesmo com olheiras fundas e afazeres a gente se torce e se admira, em meio a essa vida imprevisível e esse balé desencontrado das nossas pernas compridas. 

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