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13.5.13

somos tão jovens?


Eu tinha doze anos quando ouvi legião urbana pela primeira vez. Não foi exatamente por escolha minha. Com essa idade, meus pais colocavam os cds numa altura em que eu conseguisse pegar e eu acabava pegando os que me interessavam ou pela capa, ou pelo nome. "Legião Urbana" não é um nome lá muito atrativo pra uma pré-adolescente de doze anos, e a capa do "dois" (o único cd que meu pai comprou do legião), era bege e pouco atrativa. Eu, nessa idade, me dividia entre ouvir algum rock, as cantoras pops que faziam sucesso e Caetano Veloso. Sempre fui uma criança chata. Crianças chatas ouvem Caetano Veloso e se tornam adultos chatos. Eu sou uma jovem chata.

Mas o legião urbana eu ouvi por causa do Leonardo. Leonardo era um aluno novo que apareceu na minha sala logo no começo do ano. Ele tinha aquele jeito de não se importar com nada e passava a aula toda batucando na carteira, numa espécie de bateria imaginária. Atrapalhava a sala toda, os professores sempre reclamavam, mas o Leonardo não parecia ligar muito. Ele era baixinho, os cabelos meio compridos que sempre caíam em cima do rosto. Eu gostava do Leonardo. Daí, numa dessas conversas de sala descobri que ele gostava de Legião Urbana. Lembrei que meu pai tinha comprado o "dois" não fazia muito tempo e roubei o cd pra mim. Ouvi todas as músicas e achei que, assim, um dia teria assunto com o Leonardo. O que eu não esperava era essa identificação com as músicas do Legião. Ouvir Legião Urbana era como ouvir um amigo que conheça histórias. Renato Russo me entendia. E era muito difícil até pra eu me entender naquela época. O começo da adolescência é uma época chata e eu era uma adolescente chata. Passava muito mais tempo lendo e ouvindo música do que me importando com o que as outras meninas se importavam. Acho que nessa idade já tinha guria na minha sala que já tinha beijado na boca e eu, o máximo que sabia sobre o amor era aquilo que eu sentia sobre o Leonardo, de longe, enquanto ouvia meu primeiro CD do legião urbana. 

O tempo passou, eu pedi pro meu pai outros cds do legião, que ele me deu com certo gosto porque também tinha sido uma banda da juventude dele. Gostava cada vez mais das músicas, e cada vez menos do Leonardo. O Leonardo era meio chato, baixinho demais pra mim e, depois de um tempo, os batuques constantes de caneta em cima da carteira me deixavam irritada. Mas o Renato era genial. Me lembro que uma vez tive um desentendimento sério com umas meninas da minha sala. Cheguei em casa e prestei atenção pela primeira vez na letra de "Andrea Doria". Eta como se o Renato tivesse escrito pra mim. Era essa a sensação que eu tinha com o legião: as músicas tinham sido escritas pra mim. E se essa sensação é importante hoje que tenho vinte e quatro anos, aos doze ela era ainda mais importante. Ser uma pessoa em crescimento nesse mundo louco não é fácil. Se entender é coisa complicada. Achar alguém que diga por você é um dos grandes triunfos da adolescência. O Renato dizia por mim. 

Renato dizia por mim não só nas letras, mas naquele jeito dele. Dei de ver várias entrevistas dele, ler várias coisas e percebi que a gente pensava parecido. Eu não era a única a me sentir daquele jeito. Alguém já tinha sentido antes. Renato era meu amigo. Renato, aos treze anos, era tão meu amigo que eu ficava imaginando que quando eu morresse, eu ia encontrar o Renato no céu e íamos tocar violão. Um pouco mais tarde, alguém me disse que o Renato não ia pro céu porque era gay. Os gays não vão pro céu. Fiquei pensando por um tempo. Não fazia o mínimo sentido. Deus não ia ser tão tonto assim de deixar um cara tão legal quanto o Renato queimar no inferno só porque ele gostava de namorar homens. Ele tinha me ajudado durante uma época duríssima da minha vida, eu pensava. É impossível que não tenha ajudado outras pessoas. Deus deve levar isso em consideração. Uma vez, ouvindo "pais e filhos" fiquei penando que o Renato, por ser gay, nunca tinha sido pai. Imaginei se ele queria ter filhos. Depois descobri que ele teve um menino, que tinha mais ou menos a minha idade. Fiquei um pouco contente. Renato parecia ser do tipo que ia gostar de ter filhos. Devia ser legal ser filho do Renato, eu pensava. 

É até um pouco complicado explicar - e tentar entender - a dimensão das letras da legião urbana durante a minha adolescência. Dos doze aos dezesseis foi a banda que eu mais ouvi. Eu sabia todas as letras. Todas as partes da minha vida tinham sido guiadas por alguma coisa que o Renato tinha escrito. Conheci todos os CDs, até aquele que ele cantou em italiano e é meio chato. Parte do que eu pensava foi formado pelo Legião. Não sei dizer se eu seria tão chata assim se tivesse ouvido só Britney Spears. Foi ouvindo o Legião, por mais clichê que fosse, que eu consegui ter alguma dimensão do quão errado as coisas podiam ser. Viver não era nada fácil. Nadinha. Eu sempre achei isso, mas não tinha quem falasse por mim. Daí o Renato falava, e eu ficava mais tranqüila. Ouvir legião era como ter um irmão mais velho que me explicava as coisas do mundo. Por alguns anos, o Renato foi o meu irmão mais velho. Tinha música pra confusão, pra felicidade, pra fossa, e pra indignação. Eu ia percebendo cada vez uma coisa diferente nas letras. Eu cresci com o Renato. O Renato me ajudou a crescer. 

Essa semana fui ver o filme sobre ele, o "somos tão jovens". O filme é horrível, o Renato é super caricato, tem cenas desnecessárias e é muito mais um filme de comédia do que algo sério sobre esse homem que também não é um mito. É só um homem como qualquer outro. Mas eu descobri coisas interessantes. Renato também estudou no Marista e ganhava medalhas de bom comportamento. Renato também foi um adolescente chato, egocêntrico, dono do próprio nariz. Ele, assim como eu, enfiava o dedo na cara das pessoas e cobrava indignação. O Renato acreditava em alguma coisa e ficava triste porque o mundo tem uma mania bem chata de não ser exatamente como a gente imagina. Eu fui uma adolescente muito parecida com o Renato. Exceto pelo fato de que eu bebia bem menos e não me drogava nada. O filme do Renato é chato. O Renato, convenhamos, também não era nada fácil de se lidar. O legião urbana está longe de ser a melhor coisa do mundo, e eu ouço muito pouco desde que passei dos vinte. Mas existe alguma coisa sobre essa banda que me formou.

Na ultima cena, o Renato canta. E é o Renato mesmo, não é o ator. Canta "será". E nessa cena, parecia que eu tinha doze anos de novo e queria conquistar o Leonardo. O Renato que cantava era aquele mesmo que foi meu amigo. Existe algo sobre o legião que ajudou a formar o que eu sou. Foi segurando naqueles versos que eu passei por essa fase negra que é a adolescência. O filme do Renato é horrível. O legião não tem as melhores letras do mundo. Hoje, eu prefiro Radiohead. Quem segura na mão da minha vida agora é o Thom Yorke. E outros caras. O Renato eu ouço de vez em quando e lembro que existem certas coisas em mim que não mudaram, porque certas coisas permanecem. Foi isso que eu percebi enquanto umas tímidas lágrimas caiam do meu rosto ao ver o Renato cantar. Já não acredito que tenha tanto tempo, que dirá "todo o tempo do mundo". Acredito menos - muito menos - no Renato e em mim. Acho que é porque eu cresci, o Renato morreu já faz quinze anos e o mundo, o mundo piorou muito. O filme do Renato é horrível, mas eu sei que ele sabe quase sem querer que eu vejo o mesmo que você. Aquele ao cantar "será" dançando do jeitinho que eu danço quando ninguém está vendo ainda é meu amigo. Não sei vamos conseguir vencer (e é muito provável que não), mas eu sei que continuo tentando. Eu sei. 

5 comentários:

Anônimo disse...

Você chorou vendo a última cena e eu chorei lendo o ultimo parágrafo...

Larissa. disse...

e sorri lendo seu comentário (:

Larissa. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Você se tornou minha escritora favorita em apenas 20 minutos. Só essa semana já li quase todos seus textos e não há um que não me emociona... Obrigada Larissa!!

Larissa. disse...

que coisa mais linda de se ler! me emocionei lendo seu comentário. Ler coisas assim é o que me dá vontade de continuar escrevendo pra que, quem sabe, eu me torne um dia a escritora preferida de alguns alguéns. Só de ler isso já vale tudo. Obrigada você, de verdade!