Te conheci no meio daqueles outubros mornos, e não poderia ser de outra maneira. Naquele dias que não fazem nem frio e nem calor, sua camiseta vermelho-e-verde me chamou a atenção. Você, no meio de todas as pessoas. Tentei, do meu jeito sem sal-nem-açucar puxar um assunto qualquer que fosse e você me olhava com cara de quem nunca tinha visto alguém assim, tão cara-de-pau. Foi quando eu te disse "não se engana não, garoto, eu sou tímida. Olha a minha mão aqui, suando". Foi o primeiro sorriso que você me deu. Bonito seu sorriso. Não assim um puta-sorriso, mas bonito. Não abriu em mim aquela infinidade de jardins de outrora, mas dadas as circunstâncias, eu me encantaria com o primeiro que me fizesse desabrochar uma flor. E você fez. Não assim uma dúzia de rosas, nem uma trepadeira daquelas que tiram todo mundo que esteve ali do lugar e tomam o lugar só pra elas. Uma margarida, quem sabe. Quem sabe um girassol.
Era um dia de sol, mas fazia um friozinho. Clima ameno, eu disse. Você concordou. Te perguntei umas dez coisas, você de repente me disse tudo o que você gostava de fazer. Interesses normais de todo mundo. Todo mundo que tem interesses-interessantes. Ler, ver filmes, conhece gabriel garcía, desconhece julio cortazár (não é um erro grave) e sabe que garcia llosa ganhou o último prêmio nobel, embora desconheça a vasta obra do peruano (e eu também). Conhece tarantino, woody allen e gosta de Godard. Ok. Tudo ok pra um primeiro encontro sem muitas expectativas. De repente você me olha, depois de eu dizer as minhas coisas: Gosto de escrever, de estudar mais-ou-menos, não tenho nenhuma perspectiva de vida, mas não quero morrer aos trinta e ao contrário de você, acho julio cortazár o máximo; e diz "te achei o máximo, menina. Quero te ver mais trinta mil vezes"
"Quero te ver mais trinta mil vezes". Figura de linguagem. Hipérbole. E como eu precisava de algumas mil flores, eu acreditei em você. Respondendo "E eu quero te ver mais sessenta mil". Figura de linguagem. Hipérbole. Vício constante. Exagero em pessoa. Eu. Pronome pessoal do caso reto. Muito mais palavra do que sentimento. Você me olha e diz "espero que a gente se veja então". E eu respondo "Eu também espero". A grande cordialidade do fim dos encontros, pensei. Pensei em nunca mais te ver pelos próximos é, trinta mil anos. Mas você me mandou um e-mail, desses bonitos me contando mil detalhes da sua vida. E eu, a própria hipérbole, que adoro detalhes, achei assim, de uma doçura ímpar. Nessa hora já se formava meio jardim de margaridas. Você marcou no parque, um café. Eu fui. Você me contou mil histórias, e eu te contei as minhas.
Sonhava você casar, ter filhos e uma casa de portão verde com jardim. Eu também sonhava em casar, ter filhos e uma casa de portão amarelo. Mas nesse dia disse "amarelo, talvez verde quem-sabe" e você me sorriu. Você me contou dos seus sonhos, dos filmes que já assistiu, dos filmes que queria-assistir e eu sorri em todas as observações. Eu te contei meu mundo como se meu mundo fosse acabar no segundo seguinte. A hipérbole do tempo, achando que o tempo ia acabar no instante em que você levantasse daquela mesa e fosse me levar pro lugar onde esperaria comigo meu ônibus chegar. Afinal de contas, a gente não morava tão perto a ponto de você "me acompanhar até em casa". Tinha que ir sozinha, pensando em você no caminho e sorrindo cultivando margaridas, ou girassóis.
"Honey, você não pode largar as pessoas de lado como um brinquedo que não gosta mais". Eu te disse que tinham me dito isso uma vez. Você só me olhou. Te contei dessa minha mania de nunca me apegar, te contei dos meus jardins que morreram e de como eu esperava que nascessem girassóis. E de quantas ervas daninhas nasceram no lugar deles enquanto isso. Você só me olhava. Depois dizia "Ai, honey, eu me machuquei tanto ao longo desses anos todos que acho que amor é aquela coisa assim, impossível, mas ao mesmo tempo tão boa. Só que não quero mais brincar de amor."
E eu pensei "A gente está brincando de amor nesse exato momento. Amor não é uma coisa de querer"
E no meio do seu romantismo incurável, no meio da casa de portão verde, num outro dia desses sem sol nem chuva eu descobri sem querer que você era do tipo que cultivava em todo mundo uma margarida, e depois acabava por fazer essa margarida se tornar um jardim, mas nunca pensava em realmente cuidar dos jardins que fez crescer. Depois dizia "honey, eu espero te ver ainda umas trinta mil vezes" e esperava sorrisos de todas as bocas a quem proferia as mesmas palavras. Dizia não querer brincar de amor, mas brincava com o amor todos os dias. Na verdade eu soube no exato dia em que te disse oi, que a minha atração inevitável vinha muito mais por reconhecimento do que qualquer outra coisa. Eu me vi em você. No fundo dos teus olhos de timidez ensaiada, dentro da sua hipérbole eu soube. Eu soube que eu ia me machucar assim, umas trinta mil vezes, no meio dessa coisa de ser mais uma no meio de várias. Justo eu, filha única de pais zelosos, que nunca soube dividir um brinquedo, e que não sabe até hoje como se brinca de amor.
Te encontrei em outro café (no encontro de número três, não no de número trinta mil) e te disse "honey, a gente está tão perdido". Você me sorriu, acho que concordou por vício. Depois me contou dos seus planos de casas verdes com portões cor-de-rosa e três filhos. Me disse que não sabia brincar de amor, mas que queria tentar (e claro que não era comigo). Eu te disse "ninguém sabe, é o amor que vive brincando com a gente. Cabe a gente saber-jogar" Você concordou e me disse pela milésima vez "eu quero te encontrar mais umas trinta, quarenta, sessenta mil vezes. Você é o máximo, menina". Sorri. Te dei um abraço forte te dizendo "e eu quero te ver mais umas cento e setenta e cinco mil vezes" Você sorriu. Não tinha mais margarida, nem Girassol. Só umas flores de rua assim, coloridinhas, que dão um sorriso de canto de boca na gente. Umas flores assim, parecidas comigo. Marias-sem-vergonhas, quem sabe. Olhei nesses teus olhos verdes, rapaz, me enxerguei como em espelho. Eu quis te dizer "Honey, nem tenta. Você quer brincar de amor, mas só sabe brincar com o amor. Todos os dias". Fiquei quieta, sorri, pulei no teu pescoço dizendo "sessenta mil vezes". Você me sorriu dizendo "setenta e sete mil vezes". Fomos até o ponto, você me deixou no ônibus em que eu seguia como na vida: sem você. Você me mandou um beijo e eu sorri pensando "Ah honey, a gente se ama porque a gente ama todo mundo. E não ama ninguém"
Um comentário:
que tristemente bonito.
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