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9.1.11

O amor não existe.

Era domingo, era tedioso, modorrento - e doía. Não porque todos os domingos costumam doer de alguma maneira - todo fim de ciclo dói, pontudo - mas porque sentia uma dor que era mais que dor, e virou angústia. Virou angústia, numa terça, talvez numa quarta e ela nem sentiu porque já tinha se acostumado com tudo isso que as pessoas costumam não suportar: a angústia, o vazio, a solidão. Era entusiasta da solidão. Vez ou outra pegava a bolsa vermelha e entrava no carro e ia dirigindo pra lugar nenhum. Só ela, e a música. Nunca ansiava chegar a um lugar específico, porque sua vida era um eterno andar sem saber pra onde, nem porquê. Às vezes encontrava um campo com trigos no meio do caminho e achava por bem ficar ali pensando na vida. Às vezes parava o carro e ia andar na chuva sem guarda chuva e às vezes sentia uma vontade infantil de parar pra tomar sorvete, e parava. Deu-se essa mania estranha de fazer aquilo que bem entendesse, desde a mais tenra infância. Coisa que era ao mesmo tempo liberdade e solidão. Porque ser livre é ser um tanto sozinho, também.

Mas naquele domingo, em específico, ser sozinha deu angústia. Sentou-se no parapeito da sacada então, observando os carros e as poucas pessoas que iam e voltavam e avistava coisas como famílias aparentemente felizes e casais andando de mãos dadas passeando com um cachorro. A normalidade da vida cotidiana que cansa e encanta ao mesmo tempo. No rádio o pink floyd gritava "wish you were here" e ela não conseguia pensar em nenhum ser humano vivo que ela quisesse que dividisse a sacada com ela. Não naquele momento. Depois veio o Bob dylan gritando rouco e tresloucado que "ain't me your looking for" e não houveram dedos suficientes pra contar nas mãos quantas vezes tinha falado - ou pelo menos pensado em falar - aquilo para outra pessoa. Nunca era ela. Mesmo quando era, nunca era ela. Porque é muita fantasia pra uma pessoa só. É muita mania, muita histeria, muita necessidade de mudança. Não dá pra agüentar. "É que um dia eu estou sentada num café dizendo 'você-é-o-amor-da-minha-vida' e no outro eu digo 'não-existe-ninguém-mais-errado-pra-casar-que-esse-cara'", pensou. E é assim, não tinha jeito. Amor era coisa de gente crescida demais, convicta demais, que se doava demais. Não coisa pra uma menina que não sabe decidir nem que tênis vai colocar com a roupa que escolheu. "De repente ninguém sabe mesmo de amor", refletiu. E podia bem ser que seja. Mesmo aqueles que sabem, não sabem.

Mas olhava prós casais felizes de mãos dadas passeando no domingo e tinha angústia. Porque sabia que tinha passado, naqueles vinte e poucos anos de vida, muito mais domingos sozinha do que domingos segurando mãos. Também segurou poucas mãos na vida, e mesmo as que segurava tentava soltar rápido demais. Existia nela um terrível paradoxo entre sonho e personalidade destrutiva. Sonhava com uma casa, um jardim enorme com árvores que dão frutas, porque de repente acha importante que as crianças trepem em cima das árvores como macacos, mesmo que isso consista em cair e quebrar os joelhos. Ela nunca conseguiu subir nem no primeiro nível da árvore. Medo demais de cair do céu e despencar no chão. Realismo demais, pragmatismo demais. Desde os sete anos de idade nunca se permitiu sair do chão. Sonhar sim, mas nunca o risco demasiado. Ou amor, se preferir. Sonhava com essa casa com espaço, ar livre, o verde. Mas de repente pensava de novo e achava que os filhos iam acabar sendo mesmo crianças-de-apartamento, como ela. Dessas que passam o dia todo no computador, ou nos jogos de tabuleiro. Quem sabe um video-game. Nada lúdico, nada educacional e é por isso que sonhava também com um marido extremamente criativo que aceitasse ter uma chácara pra passar as férias com a crianças, e aceitasse de bom grado fazer as malas numa sexta feira depois do serviço, pegar o carro e sair com as crianças num tipo de passeio sem-rumo cantando músicas de viagem, ou beatles. Simples fantasias. Um marido zeloso, apaixonado, dois filhos - um menino e uma menina - uma casa confortável, um emprego flexível, ser-feliz.

Encontraria seu marido em um lugar inespecífico, puxaria assunto, teria um gosto parecido com ele para culturas em geral, e talvez eles gostassem do mesmo tipo de bizarrice, tipo perder uma noite inteirinha de sono pra comer pizza de marguerita em cima da cama conversando e bebendo coca no gargalo. As pessoas não sabem, mas elas são muito influenciáveis pelo fato de alguém no mundo compartilhar - ou ao menos entender - os gostos estranhos delas. No caso dela seus gostos estranhos incluíam música brega dos anos oitenta, desejos por comidas gordurosas em plena madrugada e dormir de meias, mesmo no calor. E tudo isso parecia um sonho impossível pra quem não conseguia gostar nem de um refrigerante por mais de três semanas seguidas. Pensava nesse tipo de coisa, no meio da angústia. Quando será que existiria alguém capaz de escrever na vida real uma história que tivesse ares de filme romântico alternativo? E respondia pra si mesma: nunca.

Alguns números no celular, algumas pessoas pra quem poderia ligar quem-sabe dividir uma cerveja no bar. Afinal é domingo, seis da tarde e talvez seja isso que se espere das pessoas que não tem um namorado, uma família ou mesmo um cachorro pra levar junto na padaria pra comprar seis pães e um litro de leite gelado. Uma ligação, um encontro, uma conversa que vale a vida, o começo de um grande amor quem sabe. Mas não. Já conhecia aquelas pessoas, sabia que irritava nelas qualquer coisa que seja. O dente canino pontudo demais, a mania de sair pra fumar no meio da conversa, o gosto por filmes de ficção científica, a mania de escolher o toque mais irritante pro celular, não querer ter filhos, dirigir devagar demais, não gostar de bandas de brit-pop, ser sério, ou simplesmente ser um doce mas não suscitar nela qualquer tipo de sentimento que chegasse próximo do amor verdadeiro (e ele tinha beatle preferido, que terrível). Então debruçou no parapeito da janela, quase acendeu um cigarro, quase foi pegar uma cerveja na geladeira, quase calculou quanto tempo um corpo jogado do décimo quinto andar demoraria pra chegar ao chão, quase ligou pra três pessoas, quase mandou ume mensagem bonita, quase inventou um novo amor, mas no fim só mudou de música porque o amor parecia bonito demais enquanto um dos irmãos do oásis cantava "and-all-I-know-is-that-I'm-in-love-with-someone-who-loves-me-too" e então gritou "o amor não existe!" bem alto, no meio da melancolia, da angústia, e achando que algum casal separaria as mãos depois de ter bradado o que pra ela seria a grande verdade universal ainda não revelada pela humanidade. O amor não existe. Só existe na literatura, e no cinema e o dia dos namorados foi inventado para as pessoas se sentirem um lixo por causa de uma coisa que todos sabem que não existe. O amor não existe. Não existe nas segundas feiras a tarde, nem nas quintas feiras frias com vinho e macarrão, nem nos sábados felizes e muito menos nos domingos modorrentos.

"Pra que doer por causa de uma coisa que nem existe?" se perguntou. E tentou dançar, e tentou cantarolar "happiness-is-a-warm-gun" e quase concordou "é sim, john, é claro que é". E se sentiu feliz por um instante. E tentou fumar um cigarro, e tentou beber a cerveja de geladeira, e tentou ligar para duas pessoas, e tentou mandar uma mensagem bonita, e tentou inventar um amor. E falhou. E de repente olhou de novo pra fora, tão out, e viu que um homem sorria segurando uma mulher pela mão como quem mostra pro mundo "é minha". e ela sorria de ser dele. E duas crianças mais pra frente, pulavam, e se sentiam amadas. Daí pensou que o amor existe sim. Estranho, errado, manco, bonito, sublime, do jeito que for. E pensou que quem sabe, o amor acontece, num desses domingos modorrentos, de angústia que dói, de solidão encroada de anos e meses, e dias. No meio da rua, aparece alguém que tem o mesmo gosto estranho por pizza as três da manhã, um canino que não incomoda e uma tremenda capacidade de fazer nascer amor.

Dividiriam então uma trajetória juntos, quereriam uma árvore por acharem os dois ser indispensável para uma criança trepar nas árvores até ganhar tantos hematomas quanto puder. Passariam a lua de mel de mochila nas costas, desbravando a américa do sul ou a europa e casariam de tênis - por ser mais confortável. Antes disso teriam dividido várias pizzas as três da manhã onde conversavam até secar a saliva e descobririam numa dessas conversas que odeiam o filme preferido um do outro, e não ligariam. Assistiram novos filmes, identificariam um ao outro em personagens de literatura, escreveriam bilhetes com citações que lembrarem o outro, gravariam DVDs com filmes que não gostaram tanto, mas sabiam que o outro amaria. Dividiriam pedaços de vida, de história e do último pedaço de doce que sobrou na geladeira. Doariam um pro outro às vezes, o último copo de leite. Ele lembraria de comprar pra ela seu bombom preferido quando fosse à padaria comprar pão. Enxergariam traços um do outro em seus filhos. A cor dos olhos, a ondulação do cabelo ou o jeito despretensioso como ela olha às vezes, igualzinho à mãe. Brigariam, refletiriam sobre o fato do amor ainda existir. E ela ia querer fugir mil vezes tentando gritar que "o amor não existe". Pois se sabe criança imatura, que não sabe brincar de amor, mas que espera um dia dizer que não sabe amar, e ouvir de volta "está tudo bem, eu te ensino". E quem sabe seria feliz. Com os pés fora do chão. Casando de tênis, as quatro da tarde, no meio do mato dizendo sim para o homem no qual enxergou no fundo dos olhos um futuro lindo e descobriu que o amor existe sim, e dá pra pegar na mão, num dia de chuva cantarolando que "you-and-I-will-gonna-live-forever" e sorrindo. Num domingo cinzento, às cinco da tarde, enquanto alguém na sacada observa e já não tem coragem de gritar que o amor não existe.

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