Você me apareceu em um daqueles dias em que eu estava com preguiça de dizer "feliz ano novo". Antes da meia noite, ou depois da meia noite do dia trinta e um aquele foi o ano em que qualquer cumprimento me parecia irrelevante. E aí você me apareceu, calça jeans azul escuro, camiseta preta, camisa xadrez. Perdido, tímido, estranho, e com os tênis furados de quem já cansou de tanto andar - ou de tanto viver. Tanta gente esquisita e sem sentido no mundo, tanta gente que a gente não conhece, nunca-viu, a gente nunca sabe o que vai encontrar no minuto seguinte e, naquela dia, você era o meu minuto seguinte. Quis te desejar qualquer coisa bonita porque dentro dos teus olhos não tinha a minha vida toda estampada, nem retrospectiva, ou qualquer-coisa-assim pra querer te desejar, pra ter que te dizer "olha, você esteve comigo nos momentos mais difíceis, me ajudou e, foi tão-importante-pra-mim que eu só posso te desejar tudo de maravilhoso que existe na terra porque eu devo à você um milhão de coisas". Achei naquele ano uma carga tão chata dever coisas à alguém - a vida, principalmente. Era bom encontrar no começo do ano alguém com quem eu não dividi nenhuma carga dramática, e alguém pra quem toda a felicidade que eu desejasse não quisesse cobrir alguma tristeza, alguma dívida, gratidão que fosse. Eu podia te desejar um ano novo lindo, simplesmente porque você existe e eu acho que você deve merecer. E se não merecer também, só prova que o coração era mais aberto do que se imaginava.
Às vezes a gente cansa, cansa tanto dessas obrigações. Os recados que tem que chegar às pessoas amadas até a meia noite, as retrospectivas, as listas de coisas pra se fazer. Já fiz mil listas, planos, já pulei ondas, já tentei langeries de todas as cores possíveis e quer saber, o ano acaba que é o que tem de ser e pouco importa a cor da sua calcinha, quantas pessoas você abraçou ou se beijou uma pessoa ao tilintar da meia noite. Lembro de um ano novo com gosto de luz que culminou no ano mais desastroso de toda a minha curta existência, e nem é como se eu acreditasse em carma, mas aconteceu. Aconteceu também você, ilustre desconhecido que brilhou no meio dos outros ilustres desconhecidos naquela festa, naquele dia, e no meio da minha solidão. Qualquer coisa no seu existir tinha uma coisa-a-mais. Dizem que é nessa coisa-a-mais que nasce o amor e que é dessa coisa-a-mais que nascem os sonhos. Deve ser. A coisa-a-mais que não se explica, mas naquela noite morou ali, nos seus tênis rasgados. Tinha você, dois amigos, e você parecia mais preocupado em olhar qualquer coisa que seja, sempre pra fora. Out, out, out. O olho perdido nas estrelas, o copo de refrigerante na mão, um sonho qualquer, sei lá o que você sonhava. Eu, no meio daquela gente toda, eloqüente, brilhante, e transitante, em cima do meu salto alto, com meu batom vermelho e o sorriso fácil de quem confunde chegada de novo ano com entorpecência liberada. Meus copos de cerveja, você nem deve saber, costumam maquiar a minha timidez. Uma timidez louca, típica de quem parece querer o mundo mas espera de verdade uma pessoa, três conversas jogadas, e principalmente, o entendimento profundo sobre a alma de outro ser humano. Troca, encontro, reciprocidade.
Eu não queria nada a meia noite. Meia dúzia de abraços, um brinde, mentalizar "oxalá-que-o-ano-novo-seja-bom-oxalá". Histeria típica, uns gritos, fé, fé, fé. Toda a fé do mundo durando ali naquela contagem regressiva. Nenhum feliz ano novo especial, nem fazer planos, nem sonho nem nada. Do dia trinta e um pro dia primeiro. E fim. E te olhei. No canto, pra fora, sempre pra fora. Um cigarro apagado nas mãos, o copo de refrigerante meio vazio, os tênis furados, a solidão. Uma hora e você ainda não sabia o que procurava no céu. E eu não sabia o que procurava. Nunca soube. Mas você tinha jeito de quem tinha andado muito pra chegar até ali - teus tênis diziam. Tinha jeito de quem não acreditava em ano novo, em rito, em passagem. Mas tinha jeito de quem acreditava. Em quê eu não sei, mas acreditava. E então fui - do jeito desajeitado que sei entrar na vida das pessoas - ao seu encontro, despencando do salto, da compostura, da vida. De sorriso vermelho-borrado, de champanhe barato na taça. Fui até você na esperança de saber que fé era aquela, da onde vinha, pra quê? Eu só encostei do teu lado e fiquei olhando o céu. Você olhou pra mim, nem sorriu, nem fez nada. Só abaixou a cabeça e começou a procurar qualquer coisa que seja. E eu olhei pra você numa intenção louca de te encontrar, me encontrar, encontrar qualquer coisa e foi assim, sem pudor, sem rito, sem ensaio que eu quis te desejar feliz ano novo de coração aberto. Eu queria que você fosse feliz, não por gratidão, dívida ou pra te salvar da tristeza. Só queria te dar uma alegria qualquer. Alegria descompromissada, pura, daquelas que a gente dá e não espera nada em troca. E tropeçando nas palavras como estava bem acostumada a tropeçar, na vida, disse:
- Feliz ano novo.
Você me olhou, não entendeu, bebeu um gole do refrigerante, jogou o cigarro da sacada e ainda, olhando pra fora, respondeu.
- Feliz ano novo.
- Você acredita que desejar feliz ano novo traz mesmo um bom ano novo pra pessoa em questão?
- Na verdade não acredito, mas acho válida a tentativa.
- Você parece tão perdido, aqui, no meio dessa gente toda.
- Eu sou perdido no meio do mundo, eu acho.
- Todo mundo é, um pouco.
- Você parece razoavelmente integrada ao meio.
- É que voce não me viu tropeçando com esse meu salto alto, derrubando a champanhe e superando o pavor de abraçar desconhecidos.
- Você não tem lá muita cara de quem tem pavor.
- Tenho cara do que?
- De confiança exagerada.
- Por que?
- Porque veio aqui, se debruçou no parapeito, sem pudor nenhum e me desejou feliz ano novo. Eu sou um total desconhecido, isso só pode ser coragem.
- Mas é medo.
- Medo?
- Não tenho nenhum vínculo com você. É muito mais fácil lidar com o fracasso das relações que ainda não existem.
- Aceita um cigarro?
- Não fumo.
- Perfeitamente compreensível. Também não gosto de fumar.
- E fuma por que?
- Pra preencher as mãos.
- Do que?
- Do mundo, do nervosismo, da timidez. É como segurar na mão da confiança.
- Eu bebo pra isso.
- Não sei beber. Nunca soube.
- Perfeitamente compreensível, os refrigerantes são mais doces.
- É que de amargo já basta a vida.
- O que voce tanto olhava lá em cima?
- Nada, assim, exatamente. Tava pensando. Não gosto de ano novo, desse clima todo de festividade por um dia.
- Acho que é pra compensar o resto do ano.
- Toda a fé de trezentos e sessenta e cinco dias depositada em um dia só. Não era melhor dividir? Pequenos reveillons a cada semana.
- Fé em doses homeopáticas.
- Faz bem.
O barulho de fogos, o frio, as pessoas. Tudo tinha sumido do alcance enquanto você tinha comigo a conversa mais doce de toda a minha vida. A blusa xadrez em cima da camiseta preta, teus olhos verdes. Agora tinha como ver. Verdes, verdíssimos, cor-de-esperança. Os teus cigarros acesos um atrás do outro correndo na sua mão nervosa. Os olhos que olhavam pro céu - pra fora, out, sempre pra fora - e não pra mim. O jeito de falar baixo, quase enrolado, as frases certas na hora certa. O pensamento rápido, o refrigerante quente. Tudo aquilo junto, na noite de ano novo parecia ser as sete ondas que eu deveria pular. Te transpor em uma onda de cada vez, que é pra dar sorte.
- No que voce acredita?
- Não sei. Acho que era isso que eu estava tentando descobrir enquanto olhava pra cima. Você acredita em alguma coisa assim, específica?
- Não, nem em ano novo.
- Falta de fé, ou de esperança?
- Os dois.
- Menina, isso é cansaço.
- Você fala assim e eu me sinto uma velha.
- Não precisa ter passado por vários anos pra ser cansada. Às vezes um, na hora errada, basta.
- O meu foi o último.
- Eu também tô um pouco cansado. Mas foi de ano em ano.
- Anos ruins?
- Anos bons, anos ruins, que nem todo mundo. É que eu ainda acredito em alguma coisa. Não sei no que, mas acredito.
- Talvez ter te encontrado no ano novo seja um bom sinal.
- Acho que você taba me procurando. Tem toda a cara.
- De quem te procura?
- De quem procura qualquer coisa.
- De repente eu acerto.
- Menina, eu sou tímido.
- Meu nome é Fernanda.
- O meu é Fábio.
- O que te traz aqui, no ano novo, Fábio?
- Meus amigos. Com uma raciocínio simples "Você precisa sair de casa, Fábio. É ano novo". E me arrastaram.
- Não queria vir?
- Não me sinto bem em festas. Só faço fumar. Não socializo, não dá pra conversar direito, esse monte de gente gente e gente. E haja cigarro pra ocupar a mão.
- Você detesta tanto as pessoas?
- Não, eu gosto muito de pessoas. Meu problema é com o convívio social obrigatório.
- Eu estou te fazendo socializar por obrigação?
- Por incrível que pareça, não.
- Devo levar isso como um elogio?
- Vai ver.
- Você é sempre assim, tímido?
- Um pouco mais do que isso, na verdade.
- Mais?
- Sim, é que você fala bastante. Dá uma certa segurança.
- Achei que fossem os cigarros.
- Também.
- Você não quer ir ali pro gramado não?
- Posso ir.
- Vem cá, você nunca vai me olhar nos olhos não?
- Não agora.
Eu fui andando na frente e você ia do meu lado. Os passos curtos encarando os próprios pés. Uma mão segurando o cigarro, a outra no bolso. Você não sabia pra onde estava indo, mas ia. E eu ia te levando. Sem saber exatamente pra onde. Mas tinha flor, tinha gramado, e tinha umas estrelas. O total silêncio de duas pessoas que de uma hora pra outra resolveram trilhar o mesmo caminho. Os pés lado a lado. O destino era o mesmo, o fim não se sabe.
- Você não vai falar nada, o caminho inteiro?
- Quem conduz a conversa aqui é você.
- O que voce faz da vida?
- Estudo.
- O que?
- Ciências contábeis.
- E gosta de matemática?
- Odeio.
- E gosta do que?
- Filmes, livros, boa música e café.
- Mas disso não tem faculdade né?
- Suponho que não.
- Eu faço cinema.
- Já quis fazer cinema.
- É legal, mas não tanto. Obrigação criativa, sabe? Criação como trabalho. Não sei.
- Parece combinar com você.
- Por que?
- Não sei, voce parece que vive atrás de criar histórias.
- Pode ser aqui?
Apontei um banco embaixo de uma árvore.
- Pode.
- Quais são as chances de você superar a barreira intransponível do convívio social amigável até amanhecer?
- Com você as perspectivas são favoráveis.
- Bom saber.
- É esse teu jeito.
- Que jeito?
- De entrar na vida da gente sem pedir licença.
- Podia ter ido embora.
- Não, voce é agradável.
- Obrigada. É bonito aqui né?
- Bastante. E tem menos gente.
- Você vai mesmo continuar a três metros de distância de mim?
- Olha, menins, eu já estou mais perto de você do que eu ousei chegar de qualquer outra criatura.
- Quantas namoradas?
- Três.
- Amou quantas delas?
- Todas.
- Amor se constrói ou acontece?
- Se constrói.
- Então não amou nenhuma. Quantas demonstrações públicas de amor?
- Nenhuma.
- E a vontade incontrolável de querer guardar a pessoa dentro de uma caixinha para protegê-la de todo mal?
- Do que voce tá falando?
- De amor.
- Isso não é amor, é possessão.
- Esses teus tênis gastos não te ensinaram nada nada sobre a vida, Fabito.
Você permaneceu num silêncio ancestral que podia se ouvir de outra cidade. E eu cheguei mais perto.
- Se a proximidade estiver desconfortável, me diz.
- Como se tivesse alguma coisa que você tem vontade de fazer, e não faz.
- Você me conhece muito pouco.
- E voce quer me conhecer inteiro.
- Minha nova resolução de ano novo.
- Você é sempre assim, eloqüente?
- Só quando me interessam os encontros.
- E quantas vezes isso aconteceu?
- Várias. Mas poucas valeram o investimento.
- Quantas vezes você amou?
- Uma.
- E como foi?
- Aconteceu.
- Como?
- Amor não se explica, que coisa, acontece. E um dia você sente no peito a vontade inconsolável de não querer mais nada, além da outra pessoa.
- Você é louca.
- Amor é loucura, voce que nunca experimentou.
- Define amor.
- Amor não se define, se sente.
- E como é?
- É uma vontade louca de querer ouvir sempre a mesma música, sem enjoar. É um falar o nome da outra pessoa e sorrir, é imaginar um futuro sem medo é enxergar no fundo dos olhos da pessoa a sua vida inteira.
- Simples assim?
- O amor é. Mas sentir é sempre complicado.
Pela primeira vez você olhou nos meus olhos enquanto eu falava.
- Teus olhos são castanhos.
- são. normais, chatos, comuns.
- É que alguma coisa tem que ser assim em você.
- Você tá me dizendo que eu sou excêntrica?
- Não exatamente. Mas não é normal, nem chata, e muito menos comum.
Eu te sorri.
- voce descobriu o que procurava olhando pro céu? parou de olhar.
- Tem alguma coisa pra descobrir nos teus olhos, também.
- E o que é?
- Eu ainda não descobri, por isso não parei de olhar.
- Quando voce descobrir, você me conta.
- Qual o sentido desse encontro todo hei?
- Não tem que ter sentido, fábio, meu deus. Os encontros acontecem porque tem que acontecer. O destino da gente é se encontrar.
- E depois se perder.
- Quantas vezes você já se perdeu?
- Todas. Quantas vezes você já se encontrou?
- Nenhuma.
- Deve ser por isso que voce vive procurando.
E me sorriu.
- Se esse fosse teu filme, terminava como?
- Eu levantava, e ia embora.
- Assim? E o encontro?
- Aconteceu. O reencontro é mistério.
- E é assim que vai ser?
- Isso é vida, não filme, rapaz.
- Teu olho é castanho claro. Deve esverdear no sol.
- Esverdeia. O teu azula?
- Não. É verde. Convictamente verde.
- Combina com você. De uma cor só. Cor de esperança.
- E isso termina como, então?
- Não sei, amanhece, eu te puxo pelo braço e a gente vai rumo a uma aventura fantástica.
- Mesmo?
- Não. A gente continua conversando, até cansar. E se não cansar não para. E se der sono a gente dorme, e uma hora a gente vai pra casa. E se você quiser meu telefone eu te dou. E se você quiser me ligar quando eu acordar você liga. E se quiser me ligar numa terça feira cinzenta as três e quarenta da tarde pra me chamar pra um café você pode. Você pode ouvir uma música e lembrar de mim, e me ligar. E você pode me ligar e me chamar pro cinema. E você pode me esquecer por um mês, ou dois, ou por um ano. E depois pode ligar pra mim com a desculpa que passou por aqui, e se lembrou. Eu posso estar com o mesmo telefone, ou não. Ou posso ter encontrado um amor. Ou a gente pode sair amanhã. Ou você pode me chamar pra dormir na sua casa. E a gente pode transar, quem sabe. Ou a gente pode adormecer ouvindo música. E você pode me fazer um café, ou não. Ou a gente pode ter medo de se tocar e dormimos em camas separadas e depois acordar segurando as mãos. Ou você pode me beijar agora e me dizer que eu sou o possível amor da sua vida. Ou eu posso te beijar agora e te dizer o mesmo. Ou a gente pode sair daqui e não se encontrar nunca mais.
- A vida pra você é um filme com vários finais.
- A vida pra mim é real, e é cheia de possibilidades. Mais que o filme. Porque é real.
Nós nos sorrimos.
- Pra quem não me olhava você está me olhando demais.
- Eu não sei o que fazer. Não tem mais cigarro, não tem mais nada, eu estou bicho-solto na sua mão.
- Primeiro troca o cigarro pela minha mão. Se der certo, vai ser como segurar na mão da confiança.
E você me deu a mão.
- Se sente seguro?
- Como se eu nunca tivesse sido de outra maneira.
- Agora eu te levo.
- Pra onde?
- O destino é mistério.
E te segurei na mão, de tênis furado, tropeçando no salto, no desajeito, no sentimento. É que no meio da minha busca por nada eu te encontrei. E era ano novo, e tinha uma fé em alguma coisa. E eu seguro na sua mão e tenho fé em você, em mim, no mundo. Olho no teu olho e vejo, tem cor de esperança. Um silêncio tão lindo, tão doce. Os passos sincronizados, a estrada rumo a lugar nenhum. Você de repente começou a me contar as suas histórias, e eu te contei as minhas. E você me deu um pedaço da tua vida, que eu misturei com a minha. E a gente não sabia bem pra ponde estava indo, mas ia. E se deu o silêncio exato, o beijo certo, mágico. Debaixo de uma árvore, no amanhecer de um dia primeiro de um ano qualquer. O perfeito encontro, mais que beijo, mais que junção de corpo, saliva, língua. Era coração, pulsante, vibrante, eterno. Eu te desejei feliz ano novo e ganhei de presente uma vida. Te dei de presente um encontro. Te ensinei que o amor acontece, e troquei teu cigarro pela minha mão. Você se tornou a minha bebida. Num novo ano, nasceu um novo encontro. O reencontro é mistério.
2 comentários:
Passi por aqui, por meio de outro blog... e quase n consegui parar de ler... Feliz dias, anos... Foi um prazer!
foi a coisa mais bonita que eu já li
Postar um comentário