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23.1.11

Estala, coração de vidro quebrado.

Quando você me conheceu, ow baby, tão perdida no meio da cidade cinza, eu não achei que você seria um caminho. Tanta gente vestindo suas camisetas coloridas sem estampas, tanta gente assim moreno-claro, arisco, com medo do mundo. Tanta gente com essa mesma tristeza no cantinho dos olhos, os tênis gastos pela vida, pelo tempo, pela cidade febril. Tanta gente no mundo, andando, indo, voltando. Sempre com pressa. Tanta gente interessante a gente deve passar pela rua todo dia, ensaiar um olhar, desistir de um contato três segundos depois. Quanta gente eu já deixei passar nessa vida, podia ter deixado passar você também. Tão integrado. Calça jeans, camiseta branca, tênis preto, mochila nas costas, cara de quem está atrasado para um trabalho que não gosta, ouvindo música que antes te deixava em catarse e hoje parece música ambiente. O automático temível, baby. O automático temível podia ter-nos sabotado o encontro. Meu olhar perdido, sempre, desavisado. Os passos tontos e tortos, sempre batendo os dedos nas esquinas (da rua e da vida). Podia não ter te visto, ou ter te visto e te esquecido. Não ter notado o botton do meu cantor preferido atrás da sua mochila velha e não ter cantarolado aquele verso com gosto de esperança, encontro e acaso que fez você sorrir. Hoje eu queria, baby. Queria ter deixado o desespero pra lá, essa minha vontade maluca de procurar identificação em tudo. Nos livros, nas placas de trânsito, nos carros parados na rua, nas atrizes decadentes de novela das seis. Queria não ter tido a esperança de me identificar em você assim, tão espelho-inverso. Mas eu, bicho desesperado a procura de amor (sempre ele, o amor), não pude evitar o encantamento, não pude evitar a palavra ensaiada, não pude evitar o sorriso de lado e quando vi já tinha te cantarolado os versos. Tão batidos os versos. Tão meu, o sentimento de despertencimento do mundo que é ao mesmo tempo universal. E tudo tão certo, o tempo exato. A mulher deixou o lugar vago, você me olhou e disse "senta, pode sentar" e eu retruquei ensaiadamente com um "obrigada, to mesmo cansada e pensar que 'once-upon-a-time-you-felt-so-fine', é doído" e foi ali que todo o descompasso começou. Você me sorriu, natural, solto, alegre. Me perguntou "Bob Dylan né?" e eu respondi "sim, Bob Dylan é deus, a humanidade só encena as histórias que ele criou." E tudo deu margem ao bonito e longo diálogo. Você sentou do meu lado, pediu um cigarro. Eu te disse:

- Não se pode fumar dentro dos veículos automotores mais. Nunca se pôde. Nem dentro dos bares, das casas de show. O mundo tá free tabaco.
- Era pra mais tarde. Gosto de, você sabe, andar ouvindo música e derramando fumaça pra fora. Você fuma?
- Não, tomo café. Eu gosto de, você sabe, tomar café ouvindo música e enfiando cafeína pra dentro.
- Vícios.
- Vícios, concordei.

O ônibus deu quatro ou cinco chacoalhadas, ficou um silêncio enorme que pairava. Eu olhando as minhas unhas, os esmaltes descascados, uma mistura entre um vermelho barato e um azul clarinho que não tinha saído direito da ultima esmaltação de unhas. "ando num descaso enorme da vida", pensei. Os esmaltes craquelados, a vida quebrando. As unhas se roendo. Tudo errado, meu deus. Tudo errado. Me perdi olhando o caminho. As àrvores e tal, as nuvens e tal. O cinza, sempre o cinza de são paulo as seis da tarde e quando alguma coisa na minha cabeça ultrapassava a poluição e chegava no azul, você me perguntou.

- Você desce aonde?
- Há mil léguas daqui, naquela padaria bonitinha de parede laranja, sabe? E você?
- Três mil léguas daqui, e três pontos depois.
- Não é muito perto.
- Não é muito longe.
- Tudo depende do referencial adotado.
- Você parece, assim, pessimista.
- Eu sou assim, tristonha.
- Você parece bem conservada pra uma alma velha e cansada.
- A maquiagem nasceu pra disfarçar os rostos vermelhos e inchados de lágrima e hematoma, rapaz.
- A música também. Pra disfarçar as almas vermelhas e inchadas de lágrima e hematoma.
- A arte, talvez.
- A arte sim, pra disfarçar a vida inchada de lágrima e hematoma.

Te achei bonito, poético, triste. Bonito e sincero demais pra usar aquela camiseta branca com calça jeans e tênis. Perfeito demais pra ser deixado pra trás como um doce daqueles que a gente vê e acha bonito, quer levar, mas parecem extremamente caros. Eu vejo muitos desses na padaria bonitinha laranjinha do ponto em que desço. Lindas tortas de chocolate, bombons de morango. Lindos, poéticos, doces. Mas caros demais para serem levados pra casa em troca de um pouco de prazer. Devia ter te achado caro demais. Devia sim, mas continuei. Porque sou bicho passional, sangüíneo, e dobro frente a qualquer animal oposto que pareça ser caça. Caça suculenta e saciadora do apetite voraz. O apetite voraz da alma, o amor. E retruquei.

- É um bom jeito de pensar, você faz arte?
- Não, ciência da computação.
- Muito número?
- Muita impessoalidade. Pouquíssimo hematoma doído. Distância da vida, a tela fria dos computadores. E você, faz arte?
- Agência de publicidade.
- Mercadológico?
- Pseudo arte vendida barata demais pra ser catartica, entende?
- Mas passa na televisão.
- Tentativa frustrada de vender felicidade vendendo buraco que não encaixa o tempo todo, sabe? Quebra-cabeça faltando peça, é isso que a propaganda vende.
- E continua nisso por quê?
- Arte abre um buraco tão enorme na alma da gente que inflama. A publicidade é meu contato com a realidade. Cruel, mas realidade.
- É comò se voce vendesse caixinhas de sonhos que nunca vão virar sonhos de verdade?
- É como se eu vendesse caixinhas vazias com rótulos a preencher. As pessoas vêem um carro e fazem dele uma caixinha escrito "felicidade", "sucesso", "amor". A caixa é vazia na verdade, mas elas colocam essas etiquetinhas e acreditam nisso até abrirem a caixa e verem que lá dentro não tem nada.
- Você tem um jeito estranho de falar sobre as coisas. Metáfora, poesia. Escreve?
- O tempo todo, mesmo quando não estou escrevendo.
- Redatora?
- Escrevo os textos bonitos das propagandas de banco e não acredito em felicidade.
- Cruel, perigosa. Batom vermelho, cabelo liso. Não quero me meter com você.
- Mas vai. Já está metido e não sabe.

Você me sorriu. Com gosto. Todos os dentes. E na minha experiência de caça eu sabia: a presa estava volúvel. Dois passos, o ataque cruel, o bote certeiro, a morte. A morte do orgulho e da resistência para que se chegue a carne. A carne vermelha, que pulsa, que vibra. Coração. Paixão. Amor vem depois, ou não vem nunca mais. Você me olhou, sorriu, respondeu.

- Vai ver estou.
- Desculpa, às vezes eu solto essas respostas prontas e tudo mais, oferecidíssima, estranho. Te assustei?
- Desde o primeiro momento. Ou você não sabe que você é daquelas que assustam mesmo quando caladas?
- Não tenho essa exata noção não - menti. De sorriso solto, menti verdadeiramente.
- Olha, voce desce no próximo né?
- Desço. Encaro a padaria, não compro os doces que quero, volto pra casa, trabalho e me identifico com um personagem de novela aqui e ali.
- As perigosas.
- As mais inofensivas.
- As que parecem mais inofensivas.

O ônibus deu mais duas chacoalhadas, eu já gostava de você, do seu papo, do seu jeito estranho. Gostava mais ainda da sua vulnerabilidade frente à situação. Me respondia galante, flertava de volta, tinha medo daquilo e admitia. Teu olho não tremia, encarava dentro enquanto você fingia uma timidez com seus pés inquietos. Um menino bonito na palma da minha mão, Uma menina frágil em fantasia de forte na palma da sua e você sem saber o que fazer. É por não saberem como me pegar na mão que resolvo pegar primeiro. Qualquer movimento mais brusco pode - e vai - quebrar meu coração feito de cristal fino de taça de chapangne francesa. Coração fraco de casquinha de ovo é o que eu tenho. Não encosta não, que quebra, moço. Deixa que eu encosto no seu, pego devagarinho, guardo numa caixinha e depois jogo fora. Jogo fora antes que sua mão saia de dentro do seu peito rumo a tocar o meu coração de casquinha de ovo com as pontinhas dos dedos que seja. Sou fraca, sensível, toda doída e quebro. Só encosto. Não deixo encostarem em mim, e nunca-em-hipótese-alguma tocarem por dentro.

- Eu desço aqui, eu acho que isso significa adeus, certo?
- Eu desço com você, continuo à pé depois. Não é muito perto, mas.
- Não é muito longe.
- Talvez voce devessse comprar um desses doces bonitos na padaria, mudança de rotina, sabe?
- Talvez eu devesse me ater aquilo que eu conheço.
- Eu te pago um.
- Acho que é prudente aceitar a gentileza, mas você escolhe.
- Bomba de chocolate. Chocolate amargo por cima, doce por dentro. Lindíssima.
- Faz parte do seu repertório galantear as moçoilas supondo personalidades através de doces?
- Não fazia, até agora. Acertei?
- Isso é o tipo de coisa que se descobre, não se fala. Senão vem o desencanto.
- Você costuma ser ensaiada demais, menina.

Você me deu o doce, que eu fui comendo na rua, tal criança lombriguenta, me melando com creme no nariz que você limpava a cada instante, como pai que cuida de filha espoleta. Mas esquece o édipo, freud, era só, sabe, encantamento. Tal coisa bonita que encanta e você de tão querendo que seja, toca como se fosse sua. Te lambuzei de creme uma vez, na ponta no nariz. Típica e previsível como devia de ser, e chegamos na porta do meu prédio, onde eu não tinha idéia que começaria uma história bonita, de príncipes e princesas, de guerras e cruzadas, de amor e desencanto, na porta que tinha gosto apenas de desalento. Te faço a pergunta crucial, charmosa e espero pela resposta afirmativa como quem espera o nome sendo chamado na lista do vestibular. Conquista. Armadilha da caça. A rede posta. Só te falta cair

- Você quer subir, conversar, tomar um café?
- Não sei se devo.
- Eu não sei se devo ter te convidado também, mas convidei.
- Você só faz o que você quer, menina.
- Sou atiradinha?
- Não, é autêntica. De um jeito, ai, de um jeito terrível.
- Então sobe?
- Subo sim.

Subimos nos olhando fixo no cubículo do elevador. Entrei na minha casa, os sofás cor de vinho, as paredes bege. Tudo tão sem graça, tudo sem ter a minha cara. Te ofereci uma cerveja, você disse que preferia refrigerante. Eu te perguntei se era medo e você só me disse que a embriaguez toda vinha de mim. Te dei o copo, sentei do teu lado. Você me contou coisas sobre a sua vida, seus números, sua falta de perspectiva. Eu te mostrei histórias e rabiscos dos sonhos que inventei para que comprassem. Você me olhava fundo, encantado, e eu tinha medo dos seus olhos sinceros. Eu te contava tanta coisa, tanta coisa, tanta coisa. Tanta conversa, tanto despejo de história de energia que quando eu dei por mim estávamos feito bichos no chão da sala, em habitat natural e eu chorava encostada no teu peito, tomando refrigerante no gargalo, te abrindo todas as portas do meu coração. Te dizendo "ow, baby, se você soubesse o quanto a vida me dói" e você dizia que a sua vida doía também, tanto, que às vezes não dava conta de dar o último respiro e acendia um cigarrro. Depois pensava baixinho "a falta de fôlego vem do pulmão, e não da alma" e baforava fumaça pra fora se livrando de toda a impureza do mundo, da vida, do caos. Você empestiava a minha sala de fumaça, eu molhava sua camiseta branca de lágrimas e soluços e você me olhou baixinho e disse:

- Você é tão linda, menina. E tão menina, menina.

E meu coração de casca de ovo estava prestes a abrir uma rachadura, e foi quando eu te agarrei por impulso e te beijei no ato, no chão da minha sala, com as lágrimas caindo, com gosto de sal. E tinha tanta vida naquele beijo, tanta carga de emoção que eu não ligava pro meu coração de tacinha de cristal prestes a quebrar, e alguma coisa dentro de mim esqueceu que você tinha aparecido na minha vida naquele dia, tanto fazem as datas, você já sabia mais de mim naquelas sete horas do que todas as pessoas que conviviam comigo há sete anos, então eu era mais sua do que de qualquer outra pessoa no mundo. E nos beijamos mais inúmeras vezes, e no meio dos beijos soltávamos mais segredos e no intervalos disso tudo você me olhava lá no fundo dos olhos como se estivesse enxergando por dentro, e não houve nada mais do que beijos, só os beijos e os segredos, tantos segredos perdidos naquela sala de quitinete no meio do centro. É que não precisava de encontro de corpo, corpo-dentro-de-corpo, porque tinha um encontro de alma tão mais profundo que dormimos entrelaçados como bichos, você de calça jeans e camiseta branca, eu com meu vestido listrado. Sem sexo. Mas com um toque profundo de alma que transcende o encontro do corpo.

Você acordou, me preparou um café. Me beijou na testa, me deu uma flor roubada do hall do prédio. Me abraçou por trás, me beijou o rosto, e sussurou no meu ouvido baixinho "você é uma bomba recheada de mel, de tão-tão doce por dentro". Ali eu senti você tocar meu coração de casquinha de ovo com a ponta dos dedos. Foi quando você sentou na minha frente, sério e disse:

- Olha menina, lá fora dessas paredes beges tem uma vida, e sabe, a vida é louca e no meio dessa loucura toda eu te encontrei, e você é assim, doce e eu fiquei assim, volúvel, bichinho frágil na tua mão, menina. Tudo tão lindo, tão filme, e eu queria tanto não ter que te dizer "it-ain't-me-baby-it-ain't-me-you're-looking-for" que eu resolvi esquecer de tudo, mas lá embaixo, três pontos depois tem uma outra mulher esperando por mim. Nem tão doce, nem tão incrível, que não costuma aceitar rosas roubadas, que nunca choraria molhando a minha camiseta branca. Que nunca me confessou segredos desses seus, que eu nem sei se a vida dela dói. Mas ela existe. E talvez esteja me esperando pro café. E na mão direita dela, tem uma aliança marcada pra passar pra mão esquerda daqui há exatos dois meses. E eu podia te prometer, e eu devia te prometer que eu vou ficar aqui com você pra sempre. Mas eu sou fraco, menina. Sou fraco. Eu não quero te machucar, eu só espero que você não sofra tanto quanto eu caso eu resolva não voltar nunca-mais.

E foi chorando molhando a sua camiseta branca que eu retruquei.

- Eu soube desde o ínicio que procurar felicidade não era o seu forte.
- Soube?
- Soube. Teus números, tua falta de hematomas, tua praticidade. Tua poesia perdida, sua tristeza. Você me doeu tanto no meio dessa sua infelicidade que eu quase me achei feliz. Porque eu ao menos estou procurando, sabe? mesmo que não exista eu ralo o joelho todo dia a procura de ser feliz. Tem estoques de corretivos e batons vermelhos naquele armário ali pra maquiar a minha cara de dor a cada vez que uma topada como você aparece na minha vida. Tem salto alto, tem vestido curto, tem frase ensaiada. Mas no fundo, no fundo eu só espero que alguém toque meu coração frágil com a ponta dos dedos, e foi a ponta dos seus dedos que eu senti chegar. Depois de tanto tempo, tanta luta, tanto hematoma. Não tem maquiagem pra você, nem corretivo não. Você que salte na minha dor, porque você precisa mergulhar. Você que viva, saindo daquela porta deixando um coração de cristal de taça barata quebrado pra nunca mais voltar. Você que volte pra sua aliança, pra sua praticidade, pro seu compromisso mas volte sabendo que felicidade, meu amor, felicidade a gente não encontra sempre não. A gente vive maquiado o tempo todo, mas de cara limpa tem um ou dois caras que saem todo dia. Felizes mesmo. Felizes como eu e você quando dormimos no chão dessa sala bege, se ferrando pra vida lá fora. Agora se você prefere não enxergar, eu não ligo. Vai doer, mas eu vou sarar, vou curar o hematoma da cara, da alma e do coração. Mas fica sabendo que uma vez que a gente quebra uma taça com vinho dentro, e por vinho entenda, amor, porque isso que você sentiu aqui hoje é a-mor, pode até se salvar um pedaço da taça. Mas esse vinho que derramou, esse vinho com caco de vidro não dá pra beber nunca mais.

Foi quando você começou a molhar meu vestido listado. E eu vi nos seus olhos vermelhos o menino frágil com quem eu tinha me metido. E eu te disse "vai, vai que meu coração de vidro quebrado ainda tem jeito" e você me sorriu dizendo "mas o meu só bate embaixo de paredes beges". E saiu pela minha porta, depois do beijo mais cheio de amor já estudado pela humanidade, me dizendo "menina, você é doce, menina, você é amor, eu volto pra você. Eu juro que volto". E eu acreditando em você, mas morrendo de medo da vida fora das paredes beges, do tapete empoeirado, do sofá vinho. Morrendo de medo da sua vida longe do meu vestido listrado. Porque a vida lá fora, meu amor, é pra gente grande e você era tão menino na minha mão que sabe-se lá se você tem dessas forças que precisam os homens. Te mandei um beijo da janela, te gritei alto "vai, mas volta pra mim, volta" e senti pela primeira vez meu coração de vidro quebrado partir de tal maneira que soube que só a ponta desses teus dedos leves que o tocou seria capaz de consertar.

2 comentários:

Observador disse...

dizem que existe uma parte da sociedade que valoriza ou prefere as letras a imagem , são os leitores compulsivos, conheço um que le bula de remédio quando não tem nad pra ler,já voce parece ser uma escitora compulsiva . prometo que lerei seu texto ainda hoje .
http://qualquernotaserve.blogs.sapo.pt/

Jéssica Carmo disse...

"...ah quanta beleza nesta tristeza! Quantos sonhos derramados, quantos cacos de vidro pra serem varridos, debaixo de que tapete? Quanta felicidade pra ser buscada!" Impossível não mergulhar nos seus escritos.