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25.1.11

Eu só queria dizer, obrigada.

Espio a sacada, a vida lá fora. O dia amanheceu com um gosto eterno de melancolia. Tinha sido um pouco assim ao dormir, mas existe sempre aquela esperança de que, ao acordar, tudo tenha ficado dentro de um mundo estranho feito de sonho. Mas eis que acordei de ressaca - de sentimento e de você - e não sinto vontade de comer porque estou enjoada - da vida. Um mundo tão imenso lá fora, e eu aqui, presa nesse quarto que é cheio de lembranças de você. Remexi as nossas cartas, e acho que cheguei a uma conclusão meio inevitável: eu sinto mais falta de mim do que de você. Não que eu não sinta falta de você, também. Seu perfume barato e enjoado, as roupas quase nunca combinando, a segurança em que eu sentia de andar do seu lado. Sinto falta disso sim, ultimamente tenho andando muito sozinha, tendo que tomar muita conta de mim. Você tinha sempre essa impressão de que um dia eu ia me jogar da janela, então exercia sobre mim um certo cuidado, que me fazia bem. É que você me conheceu destruindo, e destrutiva. Ciumenta, histérica, terrível. E sentiu que era a sua obrigação me livrar do meu maior mal: eu mesma.

Durante os anos que passamos juntos, houve calma. É claro que inevitavelmente às vezes eu perdia a paciência, e entrava em terríveis ataques de melancolia que você tentava curar me desviando do assunto. Desviar do assunto sempre culminava naquela ladainha bonita de "sua vida é tão maravilhosa, você tem tantos amigos" ou até um leve afago de evo que dizia "mas você é tão talentosa e inteligente". Eu achava meio absurdo o fato de você admirar uma pessoa tão descontrolada como eu. Talvez você admirasse justamente por eu ser o seu oposto. Você, sempre parado no mesmo exato lugar, poucos riscos, poucos amores, e eu sempre esperando da vida um "algo mais" que ela não podia dar, e me atropelando. Você costumava limpar com mertiolate meus atropelos, até que chegou um dia em que do seu lado eu finalmente encontrei a paz, o nirvana. Eu sinto muita falta de mim agora que estou sem você. É como se com você eu tivesse um ponto de equilíbrio. Mais ou menos como aquela criança que transmuta o comportamento porque não quer decepcionar os pais. Eu sempre tive muito medo de te decepcionar. Muito. Eu li tantos livros, vi tantos filmes, inventei tantas teorias, criei mil novas receitas. E estava leve, sabe? Leve. Fui sorrateiramente me livrando dessa urgência louca de querer aquilo que não existe, desistindo de aventuras de fim de semana e sonhando com uma casa, calma, futebol na tv aos domingos. Minha vida simples era boa. Você ouvia as minhas frustrações, cortava as asinhas da minha depressão ancestral e me fazia sorrir em meio a tardes comuns.

Depois que você se foi eu fui tomada por um eterno descontrole. Que existia, sempre existiu. Mas que você de certa forma curou. Hoje eu me vejo de novo esperando soluções imediatas, chorando de raiva a cada decepção. Às vezes comendo muito, às vezes tomando porres homéricos que me fazem esquecer até o meu nome. Figurinha decadente eu me tornei. Tão diferente daquela menina magra, sensata, leitora, interessada, viva. Ah, eu era tão viva na sua presença. De uma vivacidade que não precisava de nada, só existia. O sorriso fácil e solto, a calma, a espera, o futuro. Um futuro nem tão brilhante assim, simplista, amornado, mas com brigadeiro depois do almoço e café no fim da tarde. Longas conversas. Você me ouvindo reclamar e me achando extremamente critica, e me dando o antídoto de ver as coisas com mais calma, com mais amor, com mais tolerância. Você me ensinou a ser tão tolerante. Com as pessoas, com os livros, os filmes, as músicas. Até a minha família eu dei de amar de um jeito maior depois de ter te encontrado. Eu não bebia demais, não comia demais, não chorava demais. Nem rir, eu ria demais. Eu apenas era feliz. Tudo ali, na medida certa. E hoje eu sinto muita falta de mim.

Senti falta de mim ao dormir chorando, senti falta de mim ao me ver inventado amores, soluções simplistas, querendo fugir. Eu tinha me esquecido dessa pessoa que eu era antes de te encontrar e te perder. Esquecido da minha histeria, do meu descontrole, do meu choro infantil. Esquecido dos meus altos e baixos, da minha doação de mentira, dos meus porres. Esquecido da minha rebeldia sem causa, da minha procura sem encontro. Tanta procura sem encontro desde que você se foi, tanta perda. Essa perda de mim, do meu eixo. Fico esperando coisas que eu não quero ser, não foco, não me sinto capaz. Tenho entrado em malditos jogos de sedução, me machucado em carne viva, sangrando. Tenho jogado sal na minha própria ferida e desistindo de mim a cada dia achando que estou conseguindo soluções. Não estou nada bem, nada bem mesmo e o problema é muito menos não ter você do que eu imaginava. O problema é comigo, sou eu, é a minha destruição, é o meu problema, é o meu sintoma. Você foi por alguns anos a cura, o antídoto, o contrário que me fazia enxergar as coisas mais leves. E agora que você se foi, tudo pesado, negro, terrível. Decadente. Entrei em uma decadência sem fim, e eu que vivia reclamando de não te reconhecer mais talvez também não fosse reconhecida por você. Regredi. Empalhei. Tenho doído, tenho saído carregada dos lugares, tenho me olhado no espelho e me visto infeliz. Estou três anos lá atrás, antes de você, comigo que sempre fui a minha pior inimiga. Tem sido triste, minha vida tem estado uma bagunça sem fim, e por vezes me vejo insuportável. Insuportável pra mim, prós outros, o grande peso in e out. O mesmo peso que eu tinha quando te conheci e que você mesmo sem saber o que fazer com ele, disseminou, tornou leve, me transformou em criatura bonita.

Sabe, eu não espero que você volte. Não agora, não pra mim. Não te espero na minha vida, no meu sofá, nem nada. Nem amor, essa palavra, estou querendo distância de amor. Você parece mais centrado que eu, no momento e eu cansei de tentar achar que eu era a sua salvação, quando na verdade você foi a minha. Hoje eu enxergo isso, no meio dessa loucura toda que anda essa minha vida pesada, terrível, negra, sem perspectivas. Eu enxergo que não sou karma, não sou destino, não sou a irremediável bagunça que um dia me fizeram acreditar que eu era. Não sou, não preciso, não quero sair quebrando corações como se quebram copos, me machucando, abrindo feridas, tendo longos ataques de histeria, ciúme, as acusações colocadas sobre a mesa, exigindo tudo em troca de dar nada, absolutamente nada. Eu já tive cura, eu já fui tão melhor, tão mais viva, centrada, bonita, feliz, sorridente. Nas quartas feiras de noite, nos sábados à tarde, nas madrugadas em casa. Tão mais leve. E foi no meio de um desses ataques terríveis, que assustam e apavoram e sobra caco de vidro cortante pra tudo quanto é lado, pegando em tudo quanto é gente, que eu descobri que você foi como aquela pessoa que te ensina a andar de bicicleta. Primeiro ela vai te segurando, você cai, ela continua te segurando, você cai mais umas vezes. Até que ela resolve te soltar. Daí você cai, rala o joelho, ela te dá a mão e depois te solta de vez. Você cambaleia uma duas vezes, acha que vai morrer, acha que vai se machucar muito, mas consegue ir. Depois pega o jeito, não precisa de mais ninguém segurando. Vai sozinha, livre, leve. Eu te amei muito, mas hoje, acho que amo mais tudo aquilo que você deixou em mim, tudo aquilo que você me ensinou ser. Hoje acho que amo tanto-quanto aquela menina que nasceu do teu lado, que pode e consegue ser boa. Que se doa pelo outro, que se faz infeliz pra ver o outro sorrir. Me deu vontade de resgatar tudo isso. Mas você já me ensinou como faz, já me mostrou que eu posso. Agora eu sei, garoto. Eu tenho que ir sozinha. E vou.