Prefácio.
Às vezes é tudo sobre o modo como o mundo te encara, ou a maneira que você encara o mundo. O mundo me encara de forma que, cospe na minha cara que sim, o sangue deles corre nas minhas veias. A gente pode fugir de muita coisa nessa vida, mas a hereditariedade é um carma. Você pode olhar para eles com nojo de seus pratos cheios de comida, suas barrigas pra fora da calça e suas injustiças, mas não há como negar que gotas do sangue deles correm em suas veias. Pedaços de genes, características dominantes, recessivas. Milhares de contas genéticas formando aquilo que sou. Eu tento fugir deles, mas eles estão dentro de mim. É estranho fazer parte de um sangue no qual você não se reconhece. Foi isso que eu descobri naquela tarde em que tudo ao meu redor parecia muito distante de mim. Um enorme sentimento de desperecimento frente à sua própria família. Tem sangue deles correndo nas minhas veias. Qualquer exame de DNA seria capaz de detectar nossos genes em comum, mas o que me tornou gente não foi a mesma matéria que os tornou gente. É tudo muito distante de mim, é um abismo. E talvez tudo isso tivesse doído um pouco mais fundo se não fosse recorrente.
Faz parte do clichê de quase toda pessoa que um dia acaba por ter a pretensão de se tornar artista esse desperecimento. Histórias tristes de como o mundo não deu de volta tudo aquilo que a pessoa esperava e como ela não e adequa à tudo aquilo, então resolve botar pra fora toda a sua incompreensão em forma de arte. Arte é o jeito que as pessoas encontraram para as suas loucuras fazerem sentido em algum lugar fora de suas próprias cabeças. Talvez muitos artistas não existissem se tivessem entrado em contado com freud, jung, ou lacan e curado suas angústias interiores. Não sei se acredito em psicanálise. Não sei se acredito em artistas. É claro que acredito em arte. Mas eu quero dizer artista com esse quê de dom. Pessoas que nasceram com a incumbência dada por deus, ou seja lá que entidade, de embelezarem o mundo. A arte como karma. Pra mim a arte só existe porque alguma coisa dentro da gente sempre precisa se mostrar. Pelo menos foi assim comigo. Se eu não conseguia me mostrar pro mundo, tinha que encontrar um jeito do mundo me ouvir.
Mas não se enganem. Eu não sou uma artista. Eu apenas escrevo. E escrevo porque preciso ter voz. Desde pequena. Nunca fui bonita e nunca me destaquei muito. Eu sei, isso é outro clichê. Mas é que qualquer ser humano que se preze quer ser aceito. Quer ser notado. E eu só era notada porque era mais alta que o resto das minhas coleguinhas. No mais, era tímida, desajeitada e nunca tive traquejo social. Mas a imaginação sempre foi ótima. Era um jeito de deixar a realidade mais bonita. Recriar a realidade do jeito que ela deveria ser. Criar mundos paralelos, outros universos. Uma civilização inteira vivendo dentro da minha cabeça. Guerras, holocausto, grandes amores. A vida é muito mais simples na literatura.
O que acontece é que criar mundos não faz de você uma escritora. Existem muitas histórias dentro da cabeça de um ser humano normal, prontas para serem escritas. A grande questão é como você vai colocar essas histórias pro mundo. Eu quero dizer, nem tudo que acontece na sua cabeça é atraente e mesmo que seja, nem sempre existe um jeito apropriado de se colocar isso em palavras. Todas as minhas tentativas me pareceram extremamente inapropriadas. Todas, sem nenhuma exceção. Um monte de merda tentando virar poesia, talvez vocês não entendam. Eu quero dizer, tudo é bem mais bonito antes de ser passado pro papel. Depois vira lixo. Talvez devesse existir um método. Uma quantidade certa de parágrafos, as vírgulas, o clímax perfeito. Um manual perfeito capaz de transformar qualquer pessoa em escritor, qualquer idéia boa num grande livro. Mas não existe. Além do que, todos esses anos me ensinaram que escrever é uma tarefa solitária. Escrever é uma tarefa solitária que se faz em lenços reutilizados de papel de festas em que as pessoas parecem se divertir. Escrever é meu túnel iluminado antes da morte, é o único jeito que eu encontrei de perceber que estou sozinha, e em contato com tudo que mora dentro da minha cabeça. E gosto. O silêncio que se faz fora de mim traz paz, mas as palavras de dentro são um turbilhão que sossega a alma. Parágrafos, vírgulas, sintaxe, sentimento. Escrever é o jeito que eu encontrei de me isolar do mundo e ter voz.
Mas a minha voz é rouca.
E foi aí que eu conheci o john fanfe. Não o John fanfe em si. O Jonh Fante morreu cego, faz um tempo já. Ele ainda ditou um último livro pra sua mulher e isso é uma bela história de amor. Mas o livro. Pergunte ao pó é um livro que conta a história desse cara que quer ser escritor, e o nome dele é arturo bandini. E ele precisa ter experiências intensas para que consiga escrever, porque ninguém escreve a partir do nada. Talvez Arturo Bandini fosse o próprio fante com um alter-ego. Sabem, a clássica história do jovem que quer se tornar escritor. A minha história. Pergunte ao pó é meu livro de cabeceira há pelo menos dois anos. Eu comecei quando eu tinha dezesseis anos, e hoje eu tenho dezoito. O arturo Bandini tinha vinte. O Arturo Bandini sabia que ele tinha que viver pra poder se tornar escritor. Eu fui viver pra escrever meu próprio livro. E essa é a história que vocês vão conhecer agora. Esse é apenas o prefácio. Eu escrevo o prefácio do meu próprio livro porque acho que ninguém mais o fará.
E porque o Bukowiski morreu antes de me conhecer.
Em todo caso essa história é sobre mim e não há ninguém melhor para falar de uma história sobre mim do que eu mesma.
Prazer, eu sou a Camila e nossa jornada está apenas começando.
A minha, como escritora. E a sua, como leitor.
Porque escrevi um prefácio antes mesmo de escrever um livro. Porque só sei ser assim, do avesso. De trás-pra-frente. Porque precisei conhecer Arturo Bandini pra me conhecer escritora. Porque precisei conhecer escritora pra me enxergar Camila.
A historia, caro leitor, descobriremos juntos.
Naquilo que vem depois do prefácio e chamam de livro, mas nem vocês e nem eu sabemos exatamente do que se trata. A vida é uma descoberta maravilhosa a cada capítulo que eu preferi renomear de literatura.
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