21.4.11
Verborragia metafórica
"Como eu vou te explicar, é assim como, como se eu tivesse construindo uma casa, sabe? uma casa simples e de repente começasse a não querer mais uma casa simples, porque uma casa simples não supria mais as minhas necessidades e daí eu resolvo comprar um pouco mais de tijolos, e refazer o projeto e tudo isso vai criando uma casa maior e de repente eu não quero aquela casa mais, quero outra, e tudo isso vai aumentando e aumentando e de repente eu invento de construir um castelo e nesse castelo tem muitos quartos e salas, e janelas e jardins, imensos jardins onde eu começo a colocar flores e muitas árvores, inúmeras árvores onde eu espero que você me ensine a subir, você sabia que eu nunca soube subir em árvores? pois é, eu não sei, eu sempre tive medo, eu sempre tive muito medo de tudo, inclusive de você e não só de você, das pessoas e de tudo isso, sabe? se tudo isso de sentir e tudo mais, sentir é muito pior do que construir casas, ou castelos, e é mais ou menos isso que eu quero te explicar porque eu sentia uma coisa que cabia numa casa e de repente não coube e eu tive que aumentar e aumentar e de repente precisei de um castelo, um castelo inteiro pra colocar tudo isso que eu sentia em cômodos separados, em cada um eu colocava um sentimento diferente e às vezes era ódio e às vezes raiva e às vezes satisfação. Tinha até solidão, indiferença, mas tinha coisas bonitas também, tinha consideração e alegria, e euforia e tinha também um pouco de paixão porque tem que existir paixão pra que se valha a pena construir castelos e casas ou criar jardins com árvores e tinha essa esperança também uma certa esperança que você me ensinasse a subir nas árvores que eu plantei e na verdade eu não sei o que eu espero construindo esses castelo eu não sei se eu precisava construir um castelo porque eu construi tudo isso e na verdade eu nem sei, talvez eu ainda esteja construindo uma casa pequena e tudo mais e nem tenha árvores nem nada, só mato um monte de mato pra cortar e daí quem sabe plantar alguma coisa, é que às vezes eu me imagino morando na casa e acho tudo muito pequeno e ruim e tudo aquilo não me preenche, e às vezes penso num castelo e acho demais, é demais um castelo, é muito grande pra mim e eu não sei lidar com castelos, só com coisas pequenas, bem pequenas, pequenas como um quarto que não exigem muito trabalho, talvez menores que um quarto, você entende? eu quero coisas que ocupem uma gaveta, é isso, uma gaveta. Uma gaveta em que eu possa trancar a coisa lá dentro porque a gente pode ter total controle sobre as coisas que estão dentro de uma gaveta e mexer nelas como bem entender e até é assim com uma casa também, as coisas fogem um pouco do controle às vezes, mas dá pra dar um jeito, precisa de pouco tempo, mas imagina um castelo, a gente não tem controle sobre o castelo, podem estar acontecendo coisas que a gente não se dá conta e quando vê elas já aconteceram, já foram é assim tão irreversível se mudar pra um castelo que eu nem sei te dizer, porque com certeza você se perde porque tem vezes que você tá no jardim subindo em árvores feliz e nem se dá conta que coisas terríveis podem estar acontecendo nos quartos, ou na sala e podem entrar pessoas novas no seu castelo e quando você percebe já é tarde demais, pode ter sujeira enfiada debaixo dos tapetes e um monte de segredos entre os corredores, é muita ingenuidade achar que vai conseguir dar conta de um castelo. Mas também quando você se dá conta você j;a construiu e já se mudou lá pra dentro, mas eu nem sei se construi alguma coisa, nem sei se isso é uma gaveta ou se é uma casa, ou um castelo, é que me encanta a idéia das árvores, não dá pra colocar árvores dentro de uma gaveta e cabem poucas dentro de uma casa, dentro de um castelo cabem várias, mas também cabem outras coisas, cabem até masmorras coisas que matam que destroem e talvez seja melhor esquecer as àrvores e ficar mesmo com as gavetas, no máximo as casas pequenas, sem árvores, quem sabe um arbusto e no máximo um canteirinho de flores, é mais seguro assim não é, e sei que as casas não são tão bonitas quanto os castelos e tem as árvores eu sei, as árvores em que você me ensinaria a subir, mas se pode cair das árvores também por mais bonitas que elas sejam, pode se cair e se machucar e não há como se machucar em uma gaveta, no máximo prender o dedo, mas não se quebra uma perna ou morre, é, talvez você tenha razão uma gaveta, uma gaveta bonita e bem arrumada que a gente pode trancar quando quiser, é isso, uma gaveta veja estou cuidando de uma gaveta, é isso eu estou cuidando de uma gaveta construí uma gaveta e é só isso, uma simples gaveta só que o que eu quero te explicar é isso e é também te dizer, é que na verdade eu queria te dizer que tem essa gaveta e tal mas ela tá dentro do castelo, sabe? um dia talvez eu queira sair da gaveta e olhar o castelo eu acho que é isso, eu queria te dizer que eu tenho medo das casas, e das casas grandes, e dos castelos e das árvores eu tenho muito medo das árvores então o que quer que eu construa eu queria te pedir, não me deixa não me deixa morrer, tá tudo bem se eu cair, se eu me machucar, eu já me machuquei tantas vezes mesmo, mas me deixa longe dessas coisas que matam escondidas debaixo dos tapetes dos castelos, em cima das torres, nos galhos das árvores, me livra disso. Me livra de morrer porque eu sei que sobre essas coisas que matam a gente não tem controle porque elas crescem. Elas crescem até no fundo falso das gavetas, é que até as gavetas tem um fundo falso e quando a gente se deu conta já morreu então não me deixa morrer, nem nessa gaveta, nem uma casa e nem num castelo enorme subindo nas árvores que eu plantei. Mas se for o caso de construir jardins, constrói comigo, planta as flores, rega as árvores, sobe nelas comigo e cuida do jardim, cuida de mim e não deixa morrer.
19.4.11
E depois de sabe-se lá quando tempo.
Eu posso dizer, sorrindo: eu não te amo mais. Eu não te amo mais. EU-NÃO-TE-A-MO-MA-IS. Nada, não amo. Não você. Não mais. Não te quero, não te espero e não quero que você morra. Eu só não te amo mais. Não te amo mais. Não te amo mais. Não te amo mais. E Repito como uma canção, um mantra, uma música preferida. Eu não te amo mais. Não.te.amo.mais. E sorrio. O não te amar foi o momento mais feliz da minha vida. Mais feliz ainda do que o te amar. O te amar doia. O não te amar alivia.
Eu não te amo mais.
Amém.
update: eu estava mentindo.
update: eu estava mentindo.
18.4.11
Cócega e buraco negro.
Às vezes penso em criar histórias bonitas, imensas metáforas que expliquem qualquer coisa que não sinto, qualquer coisa dessas que não vivi, mas não. Chego a uma conclusão lógica: não tendo ninguém em minha vida só sei falar sobre mim. De mim em relação à mim mesma. Como foi desde o princípio, agora e sempre. Assim, meio profético, meio religião, meio cristão e meio culpado. Eu parafraseei por tempos a minha emoção, tentei me contar de variadas formas, inclusive inventando outros personagem. Quis, como qualquer outro ser humano quer, me entender, me observar de longe como se eu fosse na realidade outra. A outra que ama um outro que também não existe e vendo tudo isso de uma certa distância quem sabe entender o que se passou. Mas passou, hoje não quero mais. Também espero muito pouco me entender. Já sei de mim. Sei dos meus vícios, das minhas crises, da minha mania preguiçosa de postergar ações pra àquele amanhã que é muito mais metafórico do que real, aquele amanhã que tem gosto de nunca, de eternidade que não se cumprirá. Sei que sou assim enquanto a vida exige foco e sei que subjetivo tudo aquilo que as pessoas buscam matematizar.
Hoje subjetivo. Também já somei muito. Já fiz de amor contas matemáticas incríveis, onde a compatibilidade somada com a afinidade e a altura certa caminhariam para a perfeição assim, de imediato. Hoje sei que sentimento é muito mais uma indefinição do existir do que um querer consciente. Sentir é um jeito de tapar os buracos que a existência enfia na gente, de forma até meio cruel. Cheia de buracos então, a pessoa busca tapá-los com um outro ser, também cheio de buracos e tudo que se espera é que se tampem os vazios mutuamente e que formem então, os dois juntos, algum tipo de ser completo capaz de suportar o enorme buraco negro que vamos alimentando - e aumentando - a partir do momento em que nascemos. A grande verdade é que por mais que você formule o ser ideal, você nunca sabe quando e como serão realizados os preenchimentos de alma, e às vezes eles acontecem muito desavisados, descompassados e tão fora de hora que você nem se dá conta que só se sente algo perto de um ser pleno porque do seu lado (real ou metaforicamente) existe outro ser, também buraquento, mas que espera ser pleno e que é por causa dele que existe alguma plenitude na sua vida. A grande coisa é que isso acontece várias e repetidas vezes, os buracos são tapados de maneiras diferentes a cada vez e não existe um padrão, nem regras nem um manual de instruções de como agir com tudo. É muito normal nos seres humanos que eles tropecem, descuidem e estraguem as relações das quais participam. É também notável a incrível capacidade desses mesmos seres em forçar a plenitude, projetando a felicidade em alguém que não pode supri-la. Tentativas desenfreadas de tapar buracos por pessoas que não podem tampá-los, coisa que só faz alimentar o tal buraco negro da alma.
É que talvez a regra da alma seja ser esse imenso buraco negro. A regra é o vazio, o imenso, o infinito. A exceção é o preenchimento das vontades. A sensação de eternidade palpável, que não incomoda nem dói. Talvez seja isso o amor. Uma certa aceitação da estranheza que traz a eternidade. Um aquietamento. Um sorriso em meio a dor. A aceitação do estado de dor e vulnerabilidade como coisa palpável, e bonita. A plenitude em existir. Talvez seja isso. Talvez o amor seja na verdade o que eu pensei esses dias. O amor é fazer cosquinhas. O amor é como se alguém estivesse fazendo cosquinhas em você. As cócegas te fazem rir, mas ao mesmo tempo te deixam sem ar. Te dão uma sensação de que aquilo nunca vai acabar. É bom e ao mesmo tempo sufoca. Você gosta do que recebe mas ao mesmo tempo não quer mais. Você sorri em meio a uma sensação de aflição. A pessoa que faz as cócegas sente prazer com o seu riso ao mesmo tempo que sente prazer com a sua aflição. Ela possui a outra pessoa nas mãos. Sabe que é a responsável pelo riso e pela aflição. É só ela que pode parar o riso e a aflição. E a pessoa que recebe as cócegas quer que aquilo pare, mas ao mesmo tempo não quer. Pois gosta de rir, e gosta também da aflição. Gosta de ser possuida por outra pessoa. Gosta da vulnerabilidade, do riso e do sufoco. Durante a relação muda quem faz as cócegas e quem recebe. Às vezes é um, às vezes é outro. Mas a plenitude do amor acontece mesmo quando os dois sorriem, o fazedor de cócegas aquieta, beija a outra pessoa e os dois riem e se deitam abraçados.
Achei que isso definia, um dia enquanto andava na rua.
A grande verdade é que eu não sei de amor, nem de cócegas faz algum tempo. Não tanto, mas faz. Hoje encontro pequenos "tapa-buracos-existenciais" em cada canto. Um amigo, um affair, um possível-amor, um amor-impossível. A plenitude da vida tem se feito sozinha. Nos livros, nos filmes, nas novas pessoas aqui e ali. Nos momentos como esse. A minha alma continua um imenso buraco negro, e às vezes suga. Desacredito nos meus buracos tapados já faz um tempo. Às vezes me convenço que vou ser um vazio de alma pra sempre. Às vezes acho que terei os buracos tapados e uma aquietação em meio ao sentimento de eternidade. Eu, que não se lidar com sempres, ou com pra-sempres e que enjoo de tudo num mínimo espaço de tempo. É que só sei ser plena enquanto escrevo e escritores parecem se auto-boicotar para conseguir histórias bonitas, narrativas fantásticas e metáforas interessantes. Eu pareço inventar constantemente isso que chamam de sentimento, por vezes me ferindo só pra ver se ainda sei sangrar. E sei. Mas sangro groselha com água, ralinha ralinha e já não tenho talento pro melodrama. Sou esburacada porque gosto de ser assim e no fundo no fundo só quero alguém que alimente esse meu buraco negro com um pouco de poesia e três tantos de verdade. A vida é esse lençol em branco onde eu dei de inventar histórias. Sorrio enquanto sei que eu estou comigo e só. Um dia o amor acontece. Um dia a gente recebe as cócegas certas, deita na cama e aquieta. Daí o buraco negro se desmazela em poeira estrelar. Eu ainda alimento o meu buraco negro com mil frustrações, e sozinha. Nunca pareceu tão confortável, o caos. Não há nenhum equilíbrio como o caos.
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13.4.11
Heart shaped-box
"Quando o amor acaba todas as coisas as quais foram atribuídas significados viram coisas". Tinha lido essa frase em algum lugar, não sabe mais onde. Talvez em algum livro famoso, talvez numa dessas revistas de mulher - tem lido muitas dessas ultimamente, daquelas que ensinam truques de beleza e dicas para chegar ao orgasmo. Mas pensou na tal frase no momento em que olhou o guarda-roupas aberto e conseguiu lembrar, por um momento breve, a roupa que tinha escolhido pra usar no primeiro encontro com aquele que viria a ser o seu (grande?) amor. É engraçado como em cada época da vida de uma pessoa (do sexo feminino, em sua maioria) existe uma roupa que possui dentro de si a falsa capacidade de conquistar a pessoa amada. A daquela época era uma calça jeans skinny, muito apertada no corpo - mas que tinha ficado larga, emagrecera demais naqueles tempos difíceis -, uma blusa rosa por baixo de um casaco roxo, com botões de plástico, com cara de retro. Ainda tinha no guarda roupa todas aquelas peças. As lembranças já tinham se tornado um tanto rarefeitas. Mas olhando com atenção tinha uma bolsa, um doce, um livro. Algumas várias coisas que podiam fazer uma espécie de inventário daquele amor que um dia tinha sido, e não é mais.
Não sabia se de fato enxergava naqueles presentes apenas "coisas". Conseguia se lembrar do momento exato em que eles tinham sido dados. Tinha uma afeição especial por um sapo de pelúcia que tinha sido comprado de surpresa. Tinha afeições menores, mas não menos importantes, por todos os outros objetos. Os pegava na mão e conseguia lembrar que, naquele momento, tinha sido muito feliz. Às vezes a felicidade também vira coisa. Lembrança longe e que a gente tenta pegar com a mão, e não consegue. Milhares de sorrisos eternizados em um objeto que hoje é enfeite no quarto do lado de outros mil objetos diferentes. Os sorrisos embalsamados. Guardados dentro da bolsa, dentro da lata, embaixo dos cachecóis. Hoje, já não sorria tanto. Não com amores, pelo menos. Tinha uma certa felicidade em estar só. Não era comodismo, era outra coisa. A solidão é mais imensa que o amor, porque o amor se divide. A solidão é só sua. E é tão imensa que às vezes aprisiona. Ela se sentia aprisionada dentro da própria solidão. Os passos mudos, os pensamentos rápidos, as músicas. Tudo muito dela, solitário, íntimo, indivisível. Uma paz. A paz de não depender de ninguém. Não esperar ligações, mensagens, e-mails, congratulações. Não ter que esperar jantares, rosas, beijos inesperados as cinco da tarde. Não ter que preparar a comida preferida, desejar 'boa sorte', 'bom trabalho' nem dizer "te cuida, garoto, o mundo é mal". Fora do amor era menos ciumenta, menos posse, menos cuidado com o outro. Bem mais com ela. Pequenos objetos novos fazendo um inventário novo, o inventário da solidão. Roupas compradas em liquidações na rua, livros, filmes, tickets de passeios solitários no cinema, cartões das cafeterias onde ia dividir cappucinos com creme com ela mesma, e fazer um balanço geral do dia. A solidão não cabe dentro da gente.
Sentiu então uma certa inveja daquela pessoa que um dia mereceu presentes, surpresas, declarações, cartas. Um certo rancor de si mesma de ter transformado tanta coisa repleta de significado em pequenos bibelôs espelhados pela casa. Bibelôs empoeirados, esquecidos, etiquetados com datas mentais e que sempre diziam "você já pôde ser feliz". E tinha sido. Mas sempre procurou uma espécie de felicidade completa e nada, nada a preenchia. Nem o emprego (razoavelmente bem sucedido), nem os amigos (vários, sempre presentes), muito menos as novas conquistas (costumava ser apaixonante). Tinha uma preguiça imensa de dividir sua vida com outra pessoa, ensaiar novos ritos, dar significado à novas coisas. Ficava ali, então. Ela, sua solidão amiga, os livros, os discos, as falsas demonstrações de afeto que costumavam vir de tempos em tempos, conforme a necessidade de um novo amor que raramente saia do campo platônico. É que as pessoas costumam ser extremamente desinteressantes quando chegam à luz da realidade. Quase feias. Esse amor ideal não existe, amor acontece no dia-a-dia. Acontece nos passeios de mãos dadas no mercado, quando resolvem trocar o almoço por nuggets. Amor acontece nos domingos à tarde deitados na cama olhando o teto e conversando sobre a vida. Amor acontece quando a gente não está prestando muita atenção, não está fazendo nada de muito grandioso. Nenhuma declaração muito ensaiada, nenhum presente muito caro. Amor é um troço cotidiano, nem tão bonito assim, porque é meio frágil. É mais ou menos como um arco íris, ou uma borboleta. Um dia acaba, ou se tocar muito fundo pode desintegrar. A última coisa que lembra, sobre um desses amores aconteceu na cama do quarto, quando os dois deitados não esboçavam mais emoção, só cansaço. As pernas entrelaçadas, os rostos colados e um eterno cansaço. O cansaço do fim do amor. De quem andou demais, esfolou os pés e de repente não sente mais forças pra continuar.
Mas as despedidas são bonitas. Os ritos, sempre os ritos. Um último beijo, a misericórdia, um gosto doce. Nenhum desses presentes sabia que um dia torna-se-ia bibelô. Enfeite de mesinha de centro, de cabeceira, empoeirado pelo tempo e pesado de tanta lembrança. Pegou um deles na mão, lembrou do momento. Talvez os significados ainda estivessem ali. O sentimento não. Mesmo que ainda existisse, existiria transmutado. E, além do mais, depois de tanta solidão ancestral nem tinha como tirar a poeira que o tempo deixou nos presentes - e no coração. Sentiu uma espécie de gratidão. Ao mundo, ao amor, ao sentimento, à ele. Queria deixar eternizado em algum lugar que já tinha sido feliz. Colou uma etiqueta embaixo de uma boneca, escreveu a data que se lembrava "por volta de setembro" e completou "alguém me fez feliz com isso". Botou de volta no lugar, limpou a poeira e sorriu. Tinha criado uma espécie de mausoléu para a felicidade. Que hoje jazia enterrada a sete palmos e tomava cada vez mais distância do amor.
Não sabia se de fato enxergava naqueles presentes apenas "coisas". Conseguia se lembrar do momento exato em que eles tinham sido dados. Tinha uma afeição especial por um sapo de pelúcia que tinha sido comprado de surpresa. Tinha afeições menores, mas não menos importantes, por todos os outros objetos. Os pegava na mão e conseguia lembrar que, naquele momento, tinha sido muito feliz. Às vezes a felicidade também vira coisa. Lembrança longe e que a gente tenta pegar com a mão, e não consegue. Milhares de sorrisos eternizados em um objeto que hoje é enfeite no quarto do lado de outros mil objetos diferentes. Os sorrisos embalsamados. Guardados dentro da bolsa, dentro da lata, embaixo dos cachecóis. Hoje, já não sorria tanto. Não com amores, pelo menos. Tinha uma certa felicidade em estar só. Não era comodismo, era outra coisa. A solidão é mais imensa que o amor, porque o amor se divide. A solidão é só sua. E é tão imensa que às vezes aprisiona. Ela se sentia aprisionada dentro da própria solidão. Os passos mudos, os pensamentos rápidos, as músicas. Tudo muito dela, solitário, íntimo, indivisível. Uma paz. A paz de não depender de ninguém. Não esperar ligações, mensagens, e-mails, congratulações. Não ter que esperar jantares, rosas, beijos inesperados as cinco da tarde. Não ter que preparar a comida preferida, desejar 'boa sorte', 'bom trabalho' nem dizer "te cuida, garoto, o mundo é mal". Fora do amor era menos ciumenta, menos posse, menos cuidado com o outro. Bem mais com ela. Pequenos objetos novos fazendo um inventário novo, o inventário da solidão. Roupas compradas em liquidações na rua, livros, filmes, tickets de passeios solitários no cinema, cartões das cafeterias onde ia dividir cappucinos com creme com ela mesma, e fazer um balanço geral do dia. A solidão não cabe dentro da gente.
Sentiu então uma certa inveja daquela pessoa que um dia mereceu presentes, surpresas, declarações, cartas. Um certo rancor de si mesma de ter transformado tanta coisa repleta de significado em pequenos bibelôs espelhados pela casa. Bibelôs empoeirados, esquecidos, etiquetados com datas mentais e que sempre diziam "você já pôde ser feliz". E tinha sido. Mas sempre procurou uma espécie de felicidade completa e nada, nada a preenchia. Nem o emprego (razoavelmente bem sucedido), nem os amigos (vários, sempre presentes), muito menos as novas conquistas (costumava ser apaixonante). Tinha uma preguiça imensa de dividir sua vida com outra pessoa, ensaiar novos ritos, dar significado à novas coisas. Ficava ali, então. Ela, sua solidão amiga, os livros, os discos, as falsas demonstrações de afeto que costumavam vir de tempos em tempos, conforme a necessidade de um novo amor que raramente saia do campo platônico. É que as pessoas costumam ser extremamente desinteressantes quando chegam à luz da realidade. Quase feias. Esse amor ideal não existe, amor acontece no dia-a-dia. Acontece nos passeios de mãos dadas no mercado, quando resolvem trocar o almoço por nuggets. Amor acontece nos domingos à tarde deitados na cama olhando o teto e conversando sobre a vida. Amor acontece quando a gente não está prestando muita atenção, não está fazendo nada de muito grandioso. Nenhuma declaração muito ensaiada, nenhum presente muito caro. Amor é um troço cotidiano, nem tão bonito assim, porque é meio frágil. É mais ou menos como um arco íris, ou uma borboleta. Um dia acaba, ou se tocar muito fundo pode desintegrar. A última coisa que lembra, sobre um desses amores aconteceu na cama do quarto, quando os dois deitados não esboçavam mais emoção, só cansaço. As pernas entrelaçadas, os rostos colados e um eterno cansaço. O cansaço do fim do amor. De quem andou demais, esfolou os pés e de repente não sente mais forças pra continuar.
Mas as despedidas são bonitas. Os ritos, sempre os ritos. Um último beijo, a misericórdia, um gosto doce. Nenhum desses presentes sabia que um dia torna-se-ia bibelô. Enfeite de mesinha de centro, de cabeceira, empoeirado pelo tempo e pesado de tanta lembrança. Pegou um deles na mão, lembrou do momento. Talvez os significados ainda estivessem ali. O sentimento não. Mesmo que ainda existisse, existiria transmutado. E, além do mais, depois de tanta solidão ancestral nem tinha como tirar a poeira que o tempo deixou nos presentes - e no coração. Sentiu uma espécie de gratidão. Ao mundo, ao amor, ao sentimento, à ele. Queria deixar eternizado em algum lugar que já tinha sido feliz. Colou uma etiqueta embaixo de uma boneca, escreveu a data que se lembrava "por volta de setembro" e completou "alguém me fez feliz com isso". Botou de volta no lugar, limpou a poeira e sorriu. Tinha criado uma espécie de mausoléu para a felicidade. Que hoje jazia enterrada a sete palmos e tomava cada vez mais distância do amor.
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Fim
8.4.11
De novo, aquela palavra.
E passam-se três anos desde. E vê-se sentindo da mesma maneira. Só que diferente. Percebe então que não está sentindo-se ainda da mesma maneira, e sim que se sente de novo da mesma maneira. Dessa vez sem filme, sem sacada, sem livro. Sem olhos e sem encontro. Coisa que acontece no meio de novos marços, entrando novos abris, que fazem nascer outras coisas. Mas o sentimento é o mesmo. Há três anos atrás não sabia o que isso significava. Hoje sabe que essa coisa arrebatadora e ridícula atende por um nome. Nome que prefere guardar. Melhor não dizer que a palavra quebra. É cheio de quebrar essa tal palavra. É cheio de fazer doer quando se sente. Há três anos atrás não sabia no que ia dar isso tudo. Hoje já deu, já acabou, foi-se. Depois de três anos ainda não sabe o que a coisa nova vai dar. Pode nem começar. Pode não dar em nada, mas não sabe. Desligaria com um simples apertar de botão, se pudesse. Mas sabe que não vai. A tal palavra ainda não dita não é coisa de botão. É coisa de sentir. A gente desliga e ela continua pulsando. A gente tenta ligar e ela não funciona. É que essa tal coisa não aceita estímulo, nem mandinga, nem simpatia. É que às vezes a vida dá de fazer nascer na gente coisas nos lugares em que a gente não imagina que possa. Nasce um dia, como se nasce uma flor. Vida nascendo no sertão. Improvável como flor nascendo na pedra. Um jardim inteiro brotando numa pedra. Florescendo. Ainda os brotos. Não se sabe se darão flores. Talvez morram antes, onde já se viu flor nascer na pedra? Mas nasceu. O sentimento. Aquela palavra.
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