John Fante tem um livro chamado "1933 foi um ano ruim". Meu ano de 2012, excluindo algumas partes, poderiam dar um livro com esse título. Todo momento de crise é, também, um momento de auto descobrimento. Quando sento no meu quarto de paredes beges completamente descascadas (tinha nelas fotografias coladas que arranquei num desses momentos de auto descobrimento e com a fita saiu também a tinta, o que culminou numa parede bastante - mas bastante mesmo - descascada), percebo que cheguei ao fim de um ciclo estranho que poderia ter me levado pra outros caminhos, mas não levou. Não digo isso com pesar. Digo até com um certo alívio. Estive num período de euforia bastante complicado. É muito estranho não saber o que se quer já que, quando não se sabe o que se quer, teoricamente, qualquer coisa serve. O gato da alice já diria que, quando você não sabe pra onde ir, qualquer caminho serve. Quase me enfiei num emprego qualquer, aluguei um apartamento qualquer e fui viver os riscos que a vida podia me oferecer. Eu sei, eu sei, eu não morreria. Meu vô continua certíssimo em dizer que só se morre quando tem que morrer e, talvez, eu pudesse ter usado todo esse erro como aprendizado lá pra frente, e curado minhas crises com um porre ou outro no meu apartamentinho pequeno na grande São Paulo.
Mas daí o emprego não vingou, e quando eu tinha resolvido procurar tudo com um pouco mais de afinco, a vida veio de viés. Por algumas semanas, talvez meses, eu quis maldizer a vida - e a mim mesma - por tudo que aconteceu. Não é justo afinal que, toda vez que a gente pareça ter achado um caminho, ela chegue com os seus caminhos irônicos e nos mande pra longe. Não era a primeira vez que a vida tinha me pregado peças. É claro que eu já caí de cara no chão milhares de vezes, e levantei. De nariz sangrante, mas levantei. Não seria diferente dessa vez. Não seria, mas foi. Tudo foi se acumulando de um jeito meio louco. Perdi o emprego, não sabia mais se era aquilo mesmo que eu queria. Fui pra outra cidade, conheci outras pessoas, ensaiei outras possibilidades. Tudo sem muita certeza. Eu não sabia o que eu realmente gostava e quase sempre aceitava as sugestões dos outros sobre o que comer, ou a que lugar ir. Aceitava, inclusive, sugestões sobre a minha vida. Se me diziam que talvez fosse melhor ir por ali, eu cogitava ir por ali. Decorei poucos caminhos, comi coisas que nem gostava tanto assim, frequentei lugares por hábito e fui indo. Barquinho na correnteza. Desacreditei da minha capacidade milhares de vezes. Tinha dificuldade em listar meus escritores preferidos. Não sabia quem (ou o quê) eu gostava mesmo de ouvir. Meu estilo de roupas acabou ficando uma coisa meio editorial de moda, nada original. Tudo que eu estava sendo eu via nos outros. Não via mais filmes. Lidava com gente que nada tinha a ver comigo porque eu tinha me tornado adaptável. Eu ria de piadas que eu não achava graça e cogitei seriamente parar de esfumar o canto do olho. A maquiagem que eu usava tinha aprendido num tutorial da internet. Eu não falava muito de mim. Eu não pensava muito em mim. Eu corria todas as manhãs ouvindo músicas pop que me distrairiam da vida. Eu corria 10km por dia e não conseguia encontrar nada, nem me livrar de mim mesma. Eu nunca soube que sabor de café do starbucks eu gostava mais. Eu não sabia sequer se eu gostava mesmo de starbucks. Ou das minhas roupas. Ou da padaria. Ou de londrina. Ou da minha pós graduação. Ou do jeito que me tratavam. Eu pintei meu cabelo de loiro e deixei crescer. Eu e as minhas roupinhas do sartorialist. Um copinho de starbucks na mão. Uma identidade paulistana que eu criei.
Em São Paulo, saibam, todo mundo é passível de ser confundido com um morador nativo porque tem tanta gente que ninguém tem cara de nada.
Daí eu perdi a última coisa que eu ainda tinha. Desastrosamente. Eu me distanciei tanto de mim que eu nem sabia mais quando eu estava ou não feliz. Podia ser qualquer coisa. Podia morar em qualquer lugar, comer qualquer comida, apreciar qualquer vinho. Me vestir do jeito que soasse mais interessante. Eu editoraria livros, se fosse o caso. Ou trabalharia no jornal. Ou seria social media. Designer Gráfica, quem sabe? Webdesigner. Assistente de usabilidade. Fazer aplicativos pra dispositivos móveis. Mandar textos para vagas de redatora. Escrever pequenos contos e tentar as revistas femininas. Vomitar uma casa inteira e continuar ouvindo arctic monkeys na sala. Sair no outro dia como se nada tivesse acontecido. Me vestir de hipster em meio aos hipsters. Cantar todas as músicas de uma banda que nunca foi a minha banda preferida. Me portar como se nada nunca tivesse me pertencido. Voltar pra casa e entrar num buraco negro tão profundo que ficava difícil acreditar que fundo do posso tem alguma coisa a mais que subsolo.
O fundo do poço tem muitas casinhas. Inúmeras casinhas. Quartos fechados com monstros que você nunca imaginou que existissem dentro de você. Nas portinhas do fundo do poço tem pânico. Tem compulsão. Tem culpa. No fundo do poço só tem apatia. Mais nada. Amor? Não tem. Raiva? Também não. Arrependimento? Não tem também. Tem só apatia e desespero. Um desespero tão grande que te faz pensar se um dia você vai mesmo sair dali. Você sobe alguns degraus, depois. Nesses as portinhas te assombram com tudo aquilo que te fez mal. A não identidade do sujeito cria um sujeito frankstein. Milhares de pedacinhos remendados. Chega uma hora que os remendos doem. Tudo aquilo que eu passei por cima pra agradar, ou simplesmente por não saber o que fazer me doia. Eu tinha sido mutilada. Ninguém me forçou, ninguém colocou uma arma na minha cabeça. Ninguém me estuprou, mas estupraram. A cada vez que eu fiz algo que não era exatamente meu, eu fui violentada. Chegou uma hora que eu tinha noção que a violência era tanta que o simples fato de me olhar no espelho me deixava estranha. Teve uma vez, num dos meus únicos episódios de bebedeira, em que eu tomei um drink com algumas coisas. Não se sabe que coisas eram essas, mas tudo que eu me lembro era de me olhar no espelho e sentir que a minha cara estava derretendo. Toda vez que eu colocava a mão no meu rosto, ao olhar no espelho, eu me sentia colocando a mão no rosto de outra pessoa. A pessoa que eu via minha mão tocar no espelho não era eu, era outra. Pois bem, eu também não era eu: era outra. Uma outra qualquer.
É claro que essa conclusão não veio assim, tipo foguete. Não se saber é um troço muito dolorido. No começo eu não queria nem sair da minha cama. Depois comecei a me culpar. Eu devia estar bem sucedida, sabe? Todo mundo faz alguma coisa. Todo mundo sabe se portar. Algumas vezes eu pensei em arrumar um emprego qualquer, só pra fazer parte de algo. Outras vezes eu pensava em mudar de vez pra aquele ser centrado e organizado que exigiram que eu fosse. Tinha vezes que eu queria pedir desculpas publicamente por ser uma bagunça. E era aí que eu continuava sentadinha no sofá da minha sala com meu pijama sujo de comida. Nas últimas semanas, eu subi um tanto mais pra borda do poço. Daí percebi que, antes de tudo, eu sou uma pessoa. Ok, isso soa débil. Uma pessoa independente de qualquer outra coisa. Eu tenho gostos que formei, maneiras de me portar, tiques nervosos, traços de personalidade herdados genéticamente, gostos muito próprios, um humor construído ao longo de vinte e poucos anos. Bagagens. Sofrimentos vários. Sonhos. Planos pro resto da vida. Coisas que me fazem sorrir. Gente que eu admiro. Lugares que amo e lugares que detesto. Eu quero ser feliz também, como todo mundo quer.
Só que pra ser feliz a gente não pode ficar sendo estuprada por aí. Os fluidos dos gostos de alguém, ou daquilo que esperam que eu seja, não podem entrar assim, indiscriminadamente, pelo meu corpo. Foi aí que eu descobri que eu nunca soube de verdade se eu queria mesmo mudar pra São Paulo e resolvi me ater ao presente. O presente inclui o que eu tenho que fazer. Eu tenho que fazer uma monografia pra um TCC de pós graduação que, pra uma menina de 23 anos é um avanço bastante grande, obrigada. Eu realmente não sei se eu quero mesmo trabalhar com design. E enquanto eu não souber, eu pretendo ficar quieta. Eu não sou uma fracassada, sabe. Eu sou um pouco espontânea, eu escrevo razoavelmente bem (embora eu erre bastante as vírgulas), as pessoas costumam gostar bastante de mim. Eu posso esperar seis meses pra começar a construir uma carreira, seja ela qual for. Daí eu mudo de cidade. Ano que vem sim, mudarei de cidade. Eu não preciso me vestir igual um ediorialzinho de moda o tempo todo. Eu não sou uma bagunça, e eu tenho todo o direito de ser desajeitada. Todo mundo quebra seus copos de vez em quando e isso não torna ninguém pior ou melhor. Eu ainda gosto muito de cinema. E de literatura. E de futebol. E de redes sociais. E estou muito, mas muito feliz em ser (ainda) essa mulher de ideais feministas que não se submete a qualquer coisa. Eu assisto tv, eu desmembro meus lanches todos ao comer, eu tenho preguiça de ler alguns livros, eu não sei dizer que tenho saudades, eu ainda sou péssima em fazer convites. Eu falo alto demais, rio alto demais, uso gíria de gay demais. Meu escritor preferido continua sendo o mutarelli, meu roteirista preferido continua sendo o kaufman. Minha banda preferida continua sendo o Oasis. Eu ainda amo o chico buarque. Eu sou uma escritorazinha de merda, mas tenho devaneios de grandeza. Isso sou eu, sabe. Precisa de ajustes (porque sempre precisa), mas sou eu. Tudo isso me constrói. Eu tenho 23 anos, e olha, eu não sei exatamente o que eu quero da minha vida. Porque eu acho que ninguém sabe exatamente. Sair correndo louca atrás de um propósito não vai me fazer melhor. Só vai fazer com que eu visite o fundo do poço mais frequência. Eu visitei ele esse ano. Eu estraguei bastante a minha vida, mas podia ter sido pior. Tudo é um ridículo aprendizado. E todo aprendizado, eventualmente, consiste em descascar paredes. O tempo destrói tudo - e reconstrói tudo depois.
Eu podia ter morrido, mas eu continuo aqui. Todos nós sobrevivemos. A grande verdade é que a gente não sabe da gente quando se olha no espelho, o espelho nos mostra invertidos. A gente sabe da gente quando olha pra dentro. No fundo do poço. No silêncio. Mutarelli diria que a vaidade destrói tudo. Eu diria que a vida também destrói. E constrói mais uma vez. O eterno retorno. A leminscata. No meu quarto de paredes sem tinta eu chego à conclusão derradeira: eu estou exatamente onde eu deveria estar agora.
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