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20.6.12

minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos


Pai, eu nunca te disse nada (e nem vou dizer, pois não espero te ver lendo isso nunca-nunquinha) e até pretendia quem-sabe tratar em meio a psicólogos, analistas, freud, jungs e lacans esse nosso problema de comunicação que nos faz falar sobre futebol, construções e clima. O você não saber sobre a minha vida exceto quando doente, quando se dá conta por causa do seu desequilibrio químico, que não somos próximos. Já fomos, talvez. No meio da minha espontaneidade infantil, passava com você manhãs em que me sentia útil, apertando botões no banco e fazendo jogos da mega-sena. Hoje acho essa sua mania de jogos vício e vejo dinheiro escorrendo pelo ralo. Vejo também, uma relação que pouco existiu, escorrendo pelo ralo. Talvez você ache que gosto mais da minha mãe. Talvez. Somos mais próximas porque somos diferentes. Você é igual a mim. Eu me enxergo na sua compulsão e na sua teimosia. Eu sou cada doce que você come apesar da diabetes. Eu sou a sua mania de deixar tudo pra depois. Eu sou seus surtos elétricos de vontade de aprender uma coisa, e depois deixá-la. Eu, assim como você, não sei lidar com amor. Precisamos os dois da mãe, enquanto repetimos pra nós mesmos que não precisamos de ninguém. Eu finjo uma compaixão, você é mais sincero. Precisamos da mãe em meio ao seu rancor por nós e suas vingancinhas de almoço porque ela sabe amar mais que nós. Sabe sim, pai. Sabe deixar as coisas arrumadas, sabe perder noites de sono, sabe acordar cedo pra vigiar nossos horários (nós que não sabemos dormir antes das duas, e acordar antes das dez). Ela sabe tolerar nossos gritos altos nos jogos do são paulo, embora deteste. Às vezes ela cansa de nós. Espeta pequenas agulhas aqui e ali, de rancor reprimido que ela acha que não tem. Você explode. Grita. Fala o que não deve. Eu te odeio nessas horas porque me vejo ali. Espatifando o coração da outra pessoa como se eu não morasse lá dentro. É que eu e você, pai, a gente só sabe demonstrar amor fazendo comida, dando presentes, comprando o doce preferido na padaria do lado. E desajeitamos porque erramos por vezes o doce preferido, porque não prestamos tanta atenção assim nos outros. E não sabemos amar com fervor nada que não seja nós mesmos. Mas eu sei te amar um pouco mais do que eu amo a mim mesma. Eu sei que você sabe me amar um pouco mais do que ama a si mesmo. Mesmo que não admitamos nunca. Eu queria te dizer essas coisas, mas só sei te dar discos dos beatles e comprar chocolates diet, de quando em vez. Eu quis escrever tudo isso porque achei, sempre achei, que tinha virado assim escritora porque minha mãe me incentivou a ler. Depois percebi, agora, ouvindo secos e molhados (coisa que é sua em mim), que o escritor é antes de mais nada feito das experiências que viveu. E metade do que eu experenciei, vem de você. Porque metade (ou mais) do que sou é você, pai. 

(meu sanggue latino, minha alma cativa). 

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