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17.6.12

os amigos dos amores

(ou, como é difícil competir com uma possibilidade).

Quando ele me amava, eu não o amava de volta. Não por nada em especial, ele tinha os jeitos certos de me tratar desde a primeira vez em que me viu. Não atrasou no primeiro encontro e, mesmo dizendo que talvez chegaria atrasado, resolveu sair correndo porque ele é quem devia esperar. Confessou ele, alguns meses depois, que tinha medo que eu fosse embora. Ele estava certo mesmo sem saber: sou dessas de ir embora. Por ele - ele também não sabia - eu não iria embora não. Alguma coisa nele tinha me encantado o suficiente pra que eu quisesse ficar. Nem que fosse pra ter certeza que aquela figura que eu tinha imaginado na minha cabeça nada tinha a ver com a personificação do real. No fim das contas tinha sim, mas por alguma razão, não ficamos juntos. Antes eu culpava ele. Achava que ele nunca tinha  se irritado muito com esse meu jeito expansivo e piadas fora de hora quando colocada em situações limite. Depois percebi que nossa não-junção foi muito mais por uma falta de comunicação mútua do que por um não-querer. Agora eu acho que foi coisa da vida mesmo: não era pra ser. Assim, bem fatal.

Eis que, como acontece com toda relação que não funciona não por briga, mas sim por impossibilidade: nos tornamos amigos. Muito amigos. Nossa relação foi sempre pautada numa admiração mútua (e meio louca). Uma vez, conversando com um outro amigo, ele me disse que só se ama aquilo que se admira muito. Quanto maior a admiração, maior o amor. Talvez essa seja uma grande verdade da vida ou, talvez, só tenhamos acreditado nisso porque éramos os dois aquarianos. Eu concordei. Eu admirava aquela outra criatura que fazia parte da minha vida como uma coisa quase-perfeita. Até os defeitos dele eram bonitos. Os jeitos estranhos de se portar, as piadas ruins: tudo nele era passível de ser admirado. E tinha mais: ele nunca me decepcionaria, porque a nossa relação era uma das relações mais puras: a amizade. Ele tinha comigo uma idealização louca. Sempre me achava inteligente demais, muito bem vestida, dona das boas piadas, das boas sacadas, das boas comidas. Levava minha opinião em conta, como uma espécie de guru. Se eu não gostasse da coisa a coisa tinha grandes chances de não prestar. Era assim com as bandas, com os livros e, até, com os amores. Os amores dele (foram muito poucos durante a minha estada em sua vida), tinham que passar pelo meu crivo. O que esperar de uma pessoa que a dona da sua admiração não aprova? Nada, ele supunha. Nada de fascinante, ao menos. E foi assim que concluí aquilo que disse logo no início dessa divagação: quando ele me amava, eu não amava de volta.

Um dia, ele me disse, muito convicto que não podia continuar com uma das meninas com quem estava por uma simples razão: eu não gostava dela. Me envaideci, claro, porque qualquer uma se envaideceria diante dessa constatação, mas me assustei. O gosto era dele, assim como a vida, e eu não tinha nenhum direito de intervir como uma espécie de fantasma, ou até mesmo de modelo, na vida amorosa dele. Não tinha, mas intervi. Imagino que eu ficava ali, na memória dele como um espírito ruim. A toda vez que a menina não se aproximava do que eu era, ela perdia pontos. Imaginei ela tentando fazer as piadas que não eram minhas, ou não derrubando um tico que seja de coca na mesa, ou não sabendo dos livros que ele gostaria que ela soubesse (porque eu sabia). Naquele dia ele me disse que desistiria de vez daquela garota, e que eu não me preocupasse, ele encontraria alguém que tivesse mais a ver comigo. Ele falava dela pouquissimas vezes antes do término. Não me contava as histórias dela, e por vezes omitia a presença dela na vida dele. Era como se ela não existisse mesmo quando havia existido. Tudo que eu soube dela foi o começo - em que reprovei um pouco, e o final. O final pra ele parecia um alívio. Ele finalmente tinha se livrado da pessoa que eu não aprovaria. Ele agora estava livre do meu fantasma.

Qualquer pessoa digna da admiração de alguém se torna um fantasma. Ele também era o meu, eu só não dizia. Todas as vezes que os meus amores não agiam como ele agia comigo eu me sentia mal. Eu quase passava tutoriais pra eles de como eles deviam se portar. "Não conta essa piada boa não, conta essa que é ruim, mas que eu vou achar engraçadinha" "Segure minhas sacolas no mercado, erre as combinações de roupa. Cuide de mim. Qualquer coisa assim. A verdade é que ninguém compete com uma possibilidade, uma idealização. Nenhuma menina nunca competiria comigo, porque a nossa relação era perfeita. Nunca uma briga, nunca um defeito grave, algo que irritasse. Nenhum cara nunca competiria com ele, porque ele era o cara perfeito. Éramos, e não éramos. Éramos porque nos admirávamos e nos gostavamos sem restrições. Não éramos porque uma relação de amizade, por mais estreita que seja, não é um relacionamento. É mais. De um amigo você aguenta coisas que, talvez, em um namorado não suportaria. Os amigos fazem tudo um pelo outro. É um amor irrestrito assim como é um amor que não se vê todo dia, não se cobra jantares, onde não se tem direito de brigar por ciúmes. É um amor sem a obrigação do amor. Nenhuma menina nunca chegaria a ser o que eu era porque a relação é outra. Nenhum cara nunca seria o que ele foi, porque a relação é outra. Eu sou outra. Ele é outro. A verdade é simples: não há como competir com uma idealização. Não tem como competir com a pessoa pra quem você não tem medo de ser exatamente aquilo que é. Não tem como competir com a pessoa com quem você divide a vida, que sabe todos os seus gostos, que entendeu seus traumas de infância e sua visão sobre deus e o diabo. Não terá nunca como competir com quem te livra de você mesmo todas as vezes que seu mundo desaba. Não tem como competir com a possibilidade de uma coisa que ainda não foi. Não tem como competir com o amigo ou a amiga que seria seu namorado perfeito, mas que nunca foi seu namorado (ou namorada).

A gente deixou de ser os fantasmas um do outro quando nos tiramos dos pedestais. Ele foi namorar outra menina (que nada tinha a ver comigo) e se libertou. Eu demorei um pouco mais, mas percebi que uma relação (mesmo se fosse com ele) estaria fadada a fracassos. Porque o amor é isso, é um passo antes do fracasso. Estamos sempre um passo antes do fracasso. Nós podíamos nos odiar se namorássemos. Podíamos nos degladiar em terríveis brigas sobre o jeito errado que ele tem de deixar o copo na pia. É a intimidade que afasta. Todos nós nos decepcionaremos. Resta saber se a decepção é maior ou menor que o amor. Ninguém pode competir com uma possibilidade. Elas não conseguiram, eles não conseguiram, e eu já perdi também pra uma possibilidade. Você nunca vai ganhar de uma idealização. Nem sendo a melhor pessoa do mundo. Nem dando o máximo que conseguir. Eu só percebi quando estive do outro lado. Do lado da menina que foi deixada porque não era ela (e competia com seu fantasma).

Os amigos dos amores sempre ganharão, porque eles querem eles e não a gente. E eles não existem. Ninguém nunca vai ser melhor do que alguém que não existe.

Não há como competir com uma possibilidade.
E sucumbiremos. Até que a possibilidade se torne realidade, e a realidade faça o que sabe fazer de melhor: fustrar-nos.

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