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14.9.12

A desconstrução dos mitos

De Chico Buarque à Mutarelli (passando por tom zé e zeca baleiro).

Dois mil e doze, eu já disse e repeti bangalô três vezes, foi o pior ano da minha vida até agora. Na contramão disso, alguns inesperados aconteceram. Não sou fã de ninguém, não corro descontroladamente atrás de autógrafos e admiro pouquíssima gente a ponto de ficar sem ar perto do objeto de admiração. Algumas pessoas, entretanto, dão em mim um friozinho na barriga. Ouço falar e penso: "gênio". Na minha lista de gênios figuram o Thom Yorke, o Chico Buarque, o Tom Zé, o Zeca Baleiro e o Lourenço Mutarelli. É claro que eu admiro o cortázar, bateria uns bons papos com o garcia marquéz, e ficaria sem palavras na frente do bauman, ou do baudrillard. Mas de gente assim, gente mais palpável, são esses que me fariam perder as estribeiras.



O Tom zé eu desmistifiquei logo que comecei a amar um pouco mais. Meu pai sempre foi fã, meu namorado da época também, e foi assim, meio que do nada, que Tom Zé anunciou um show aqui em Londrina. Não só fui como fiquei na grade do palco, ouvindo ele dar bronca na platéia e filosofar sobre as coisas que só ele sabe. O Tom Zé existia, usava sainhas e agradecia os desenhos mandados à ele no palco. O Tom Zé é um desses gênios que se acha pouco genial. Ele se curva frente a Gil e Caetano sem perceber que é tanto-quanto (ou mais) do que eles. De camisetinha do festival ele conta que um de seus filhos é casado com uma Londrinense e se a gente não soubesse que ele-é-ele, a gente confundiria com um outro artista qualquer. Tom Zé, pulando no palco há menos de dois metros de distância de mim era um sonho realizado. Ele existe.



Depois foi o Chico. Chico Buarque de Hollanda, o ídolo de uma vida-toda adentra o palco e senta sóbrio e calmo com a sua roupa inteira preta. Sorri tímido, parece palpável. Canta todas as músicas que eu amo e eu custo a acreditar que ele não é CD nem DVD, é o Chico Buarque em carne, osso e violão. Depois ele passa correndo dando a mão pra platéia e a gente percebe se tratar de um ser humano normal. Não sei como me portaria frente a Chico Buarque. Acho que dele não quereria foto nem autógrafo. Agora que tenho certeza de sua existência no planeta terra eu não quero saber de mais nada. A simples foto tirada da terceira fila com o zoom da câmera em toda a sua potência já me é o bastante. Eu vi o Chico cantar e o Chico estava ali.



Esse ano eu fui no meu terceiro show do Zeca Baleiro da vida. O Zeca, assim como o Chico, me embalou em vários momentos da vida. Tinha uma música do Zeca pra cada amor e pra cada desilusão. Zeca Baleiro também não parece ter noção de sua importância ou da sua genialidade. Canta e conversa com a platéia com a naturalidade de quem faz um show no quintal de casa. Depois que termina o show ele atende os fãs. Solicitamente tira uma foto comigo e autografa a setlist que eu tinha conseguido momentos antes com o rodie que tirava as coisas do palco. Me deseja "Prazer e Poesia" e diz que foi um prazer me conhecer. Zeca Baleiro existe, usa chapéus pra esconder a careca, fica bastante cansado depois do show e é um tico mais alto do que eu pensava. Sorri solicito, e parece ser gentil. Tenho uma foto do Zeca Baleiro no meu Facebook e um autógrafo na parede do meu quarto. Não existe mais mito.

Mas foi ontem que o inacreditável aconteceu. Desde que li lourenço mutarelli pela primeira vez comecei a me achar inapta pra escrever. Só faz sentido escrever se você puder chegar próximo do que Lourenço Mutarelli é. Li quase todos os seus livros. Abdiquei a uma biblioteca inteira de todos os títulos do mundo pra ler "Miguel e seus demônios". Vi todas as entrevistas que ele concedeu. Sempre genial, sempre brilhante, sempre falando todas as coisas que eu espero que alguém que eu admire fale. Mutarelli tem um bom humor involuntário e acha normal escrever um livro como "O cheiro do Ralo" em três dias. Lourenço Mutarelli esteve ontem dando uma palestra na minha frente e eu não soube exatamente como reagir. Era difícil acreditar que o objeto solene da minha admiração estava ocupando o mesmo espaço que eu. Eu levava dois livros na bolsa e uma câmera fotográfica. Não sabia se ia ter coragem de pedir uma foto, ou um autógrafo. Eu tinha um autógrafo dele que meu ex namorado me deu num quadrinho - talvez a surpresa mais bonita que alguém já me fez - e não tinha certeza se queria com ele mais do que aquele autógrafo desenhadinho que ele me fez, dedicado, sem saber quem eu era.



Saí da palestra e fui atrás dele. Ele fuma cigarros, conversa como qualquer outra pessoa, e os alunos da universidade passavam por ele como se ele fosse um cara qualquer. Mutarelli parece mesmo um cara qualquer. Ele me alertou sobre os cadarços desamarrados (estão sempre desamarrados), e se oferece pra tirar fotos num lugar com mais luz. Tira uma foto comigo, ri do fato da câmera demorar pra acertar a foto e me dá um autógrafo (dessa vez sem o desenhinho). Eu não consigo falar nada na presença dele. Encontrar com algo que você admira desde sempre, estar em contato com alguém que você queria ser é, provavelmente, uma das sensações mais estranhas que a vida pode te oferecer.

Hoje escrevi uma matéria sobre ele. Eu, que sempre li entrevistas com ele, era a porta-voz de uma matéria inteirinha sobre o até então mito, Lourenço Mutarelli. Li e reli a matéria várias vezes até perder a sensação que aquilo tinha sido escrito por uma pessoa que não eu. Olho a foto com o Lourenço várias vezes e desacredito que ele sorri espontâneo na foto que tirou comigo. De vez em quando fico pensando se devia mesmo ter tido essa proximidade toda, se eu não devia ter deixado o mito no lugar do mito: mitificado. Conhecer o escritor que mais admirei durante essa breve existência no planeta terra me deu uma sensação estranha de vazio. O meu mito é vivo, e é uma pessoa como outra qualquer. Tudo isso o torna ainda mais admirável. Ter encontrado com Mutarelli tirou de mim aquela sensação de "algo a ser descoberto" e deixou uma estranheza. Uma foto é talvez o máximo que posso chegar perto de quem admiro. Não quero criar relações, fazer perguntas, não quero entrar na vida do mito. Quero que ele permaneça a uma certa distância pra que eu possa admirar debaixo. Tudo isso é bastante louco. Conhecer o alvo da minha admiração me deixou com uma sensação de vazio. Eu não tenho mais ninguém que deseje conhecer.

Hoje fiquei pensando que talvez o woody allen, talvez os irmãos coen, talvez o jude law. Talvez alguma leve histeria ao conhecer eliane brum. Talvez o bauman, o baudrillard, o maffesoli. Talvez tivesse de novo essa sensação de estranheza de estar perto da coisa idolatrada se conhecesse alguns deles. Não sei se quero. Talvez seja bom ter alguns objetivos inatingíveis. Não quero uma foto com o Woody Allen e acho que não saberia lidar com um abraço no jude law. Um autógrafo do bauman, do baudrillard e do maffesoli não faria sentido. Tudo que eu quero deles já está nos livros. Olho pros meus infinitos livros do Drummond, pra antologia poética do Bandeira, pro encontro marcado do Sabino, pra queda do Cammus e fico feliz por eles estarem mortos e não poderem aparecer em feira de faculdade nenhuma. É bom cultivar os mitos. É bom ter contato com coisas inatingíveis. É reconfortante ter algo pra ainda olhar de baixo. Deixa uns ídolos no altar.

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